Fim é vida

A actriz brasileira Fernanda Torres estreou-se na ficção com Fim, um primeiro romance que conta a história de cinco homens: os cariocas Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro.

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nuno ferreira santos

Fim, o primeiro romance da actriz brasileira Fernanda Torres, estará com ela para o resto da sua vida. Aos 49 anos, a actriz que conhecemos de séries de televisão como Os Normais ou Tapas e Beijos, do palco do monólogo A Casa dos Budas Ditosos (adaptação que fez do livro de João Ubaldo Ribeiro) ou da sua interpretação no cinema de Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, que lhe valeu o Prémio de Melhor Actriz do Festival de Cannes, diz que se sente como se voltasse a ser uma estreante. Está a ter sensações que não tinha desde os 20 anos. No final de Janeiro Fernanda Torres, filha da actriz Fernanda Montenegro e do actor Fernando Torres, esteve em Lisboa a passar férias. Fim, que acaba de sair em Portugal pela Companhia das Letras, foi o pretexto para esta conversa.  

Uma vez disse que um filme dura sete anos na vida de alguém, desde que se tem a ideia até estar pronto. E um livro?
Esse demorei 40 anos para escrever, não é? Depois demorou um ano para ser feito, saiu relativamente rápido. Foi uma surpresa, sem dores, acompanhada pela [editora] Companhia das Letras, eles me dando uma mão. Agora, olho para a frente, e não sei quanto tempo vou demorar até conseguir escrever outro. Esse livro demorou 40 anos para sair, vou ter de viver mais 40 para escrever outro.

Não tem capítulos escritos de um próximo?
Mas parei no quarto [gargalhada]. Estão lá, estão promissores, mas parei.  

De onde veio Fim?
Veio de uma descoberta minha da maturidade, da mortalidade, dos 40 anos, do meu pai que morreu, do meu enteado que adoeceu e da compreensão de que a gente morre.

No livro passa a ideia de que todos seremos um dia o próximo a morrer.
Aliás [essa cena do livro] é do enterro da minha avó. Estávamos no enterro e o capelão do cemitério abriu a porta e disse: “Quem será o próximo?” Todos parámos, ele repetiu e foi embora. Nasceu disso. O padre Graça é um personagem totalmente fora dos outros da história.

Como é que a sua experiência de actriz a ajudou na escrita?
Todo o processo de improviso, de se estar dentro de um personagem, ajuda na hora de escrever. Sempre acham que o actor é alguém que repete as palavras de outra pessoa, mas o processo de se apropriar de uma linguagem é um processo autoral. Tanto que você vê um actor lendo um texto e você vê outro, e um é um génio e o outro péssimo. O processo de apropriação, de estar na pele de um personagem, me ajudou muito no livro.

Como se infiltrou isso na sua escrita?
Em cada personagem – porque são cinco homens escritos na primeira pessoa. “Meu Deus, agora que dei conta de um, será que darei conta do outro?” A meio, quando já estava totalmente envolvida, quando já era totalmente aquele [homem], tinha de matá-lo. Mas cada vez que me lançava num novo personagem havia um novo frisson de actriz: “Será que darei conta de dar vida a esse outro personagem?” É parecido com o monólogo interno que o actor tem na hora de fazer um personagem.

Já disse que aprendeu a escrever fazendo a peça A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro.
Porque fiz o argumento. Fiz a adaptação com [o encenador] Domingos de Oliveira. Todo o nosso processo de ensaio não foi mais do que adaptar o livro e, ao adaptar, compreender o texto. Separámos trechos do livro e fui para casa. Poderia ter feito um copy-paste do texto, mas decidi que ia redactilografar, me ajudaria a memorizar. Quando fui redactilografando, fui falando: “Desgraçado, olha o ponto, olha a vírgula, olha o parágrafo.” Entendia o ritmo do Ubaldo e fiquei muito impressionada. Essa compreensão íntima de A Casa dos Budas Ditosos me ajudou muito na hora de escrever.

Na verdade, Fim começou por ser uma encomenda de um conto sobre a velhice que lhe fez o realizador Fernando Meirelles.
Fiz esse conto em quatro dias. Tive dificuldade na terça parte do livro. Uma hora tentei juntar – porque já tinha o último morto – e levei uma espinafrada do [editor] Luiz Schwarcz. Me disse que o maior pecado na literatura é a pressa. Percebi que ele tinha toda a razão e que eu tinha de me sentar e de escrever aquele miolo. Aprendi muito.

Quis mostrar o lado hedonista do Rio de Janeiro e falar dessas “pessoas que não têm importância”. Porquê?
Somos um país que teve uma escravidão imensa, uma desigualdade social inacreditável, então parece que quando você vai fazer uma peça ou um filme deve tocar na questão social. A cultura brasileira tem uma questão culpada, a do “com quem você está falando”. Uma questão que, por exemplo, não vejo no cinema argentino. O argentino fala do ponto de vista da classe média branca. Eu queria falar da classe média branca e inútil, de pessoas que não tinham tido nenhum acto grandioso, mas o facto de morrerem dava-lhes uma grandeza imensa. Queria falar do hedonismo carioca, que é uma marca tão forte no Rio de Janeiro. Queria falar de brancos, hedonistas, classe média carioca.

Da zona sul.
Sim. A zona sul é o beautiful people, é o jet set, é a classe média Nova Iorque. E a classe média do além túnel, de quem não mora na zona sul ou de quem mora na zona norte, é Nelson Rodrigues. A Tijuca é a origem. É a Ipanema do subúrbio. É Nelson Rodrigues. A minha família era dividida entre isso – de um lado, são imigrantes italianos que vieram ocupar mão-de-obra escrava no Brasil plantando café, e, do outro lado, é uma classe média decadente, da antiga política brasileira e que é a Tijuca.

Por parte de pai?
Sim. Por parte da mãe são os italianos descendentes que vieram ocupar o lugar dos escravos. Meu pai e minha mãe migraram para a zona sul através da cultura. Então sempre convivi com a zona norte. Muitas histórias da minha família estão presentes no livro. À minha tia não mandei o livro com vergonha. Depois ela leu e disse: “A Ruth sou eu.”

Os homens da zona norte inspiraram de alguma maneira os homens do livro?
Não, os homens são todos da zona sul. Convivi a vida inteira com essa classe média suburbana e que é muito a origem dos meus pais e cresci em colégios experimentais da zona sul. Os anos 70 para mim foram muito chocantes, porque todos os pais das minhas amigas eram separados, davam loucamente. Os anos 70 eu os vivi como um choque de infância e isso está no livro. Eles são figuras conservadoras que casaram conservadoramente e são atropelados pela revolução de costumes, que para eles é uma libertação e é uma tragédia. Eles casaram para ter filhos, com os anos 70 os casamentos acabam e eles se drogam enlouquecidamente e bebem. É um livro que fala desse choque de comportamento que tive, porque sou uma menina conservadora…

O crítico Manuel da Costa Pinto defendeu que em Fim reescreve Quadrilha às avessas. Na página 68 há até ecos do poema.
Inconscientemente, porque Drummond já nasce com a gente, é igual ao Fernando Pessoa. Essa passagem do livro existe porque um amigo meu contou que aos 18 anos foi com um amigo no apartamento de um pintor muito rico numa cobertura no Rio de Janeiro. Quando abriram a porta, tinha 100 pessoas nuas numa suruba. Ficaram até de manhã naquele lugar e quando saíram nunca mais foram os mesmos.

Tal como grupo de amigos que inventa um bloco e se traveste de mulheres para comer todo o mundo…
É uma história maravilhosa que veio de Marisa Orth, actriz, minha amiga. Uma vez foi à Itália com uma outra amiga, era o ano novo, viram uma mesa com quatro gays e se sentaram com eles. Todos bebendo, bebendo, uma hora ela olhou e a amiga estava se agarrando com um, um outro se agarrou a ela e eram quatro machos italianos que fingiam ser veados para comer mulheres [gargalhadas]. São histórias que tenho até medo de contar e depois me pedirem direitos autorais.

Vive rodeada de homens, num mundo masculino, os seus filhos e enteados são todos rapazes. Teve alguma influência no livro? E o seu pai, Fernando Torres?
A minha mãe nunca teve dúvida de que era actriz. O meu pai sempre foi a pessoa que dirigiu, produziu. Ele deu a primeira câmara de filmar para o meu irmão, quase foi médico, quase chegou a se formar. O meu pai era aquele que tinha interesses múltiplos. O meu pai morreu. Teve uma depressão de 26 anos, todo o processo do meu pai é um mistério para mim. É como se ele fosse o lado oculto da minha personalidade. Acho que escrever tem muito que ver com ele.

E quanto ao facto de ter escrito o romance só depois de ele ter morrido?
O ano em que meu pai morreu foi o ano em que o meu enteado ficou doente e foram três anos de uma coisa violenta que acabou com um transplante de medula. E meu filho menor nasceu no mesmo ano. Então esse livro tem muito que ver com esse processo de aos 40 anos você estar vivendo tendo uma sensação de plenitude, de auge da vida e também de conhecimento da morte. O Álvaro [personagem que abre o livro] tem muito do meu pai. Minha mãe [a actriz Fernanda Montenegro] fala: “Você não pode dizer isso.” Porque o Álvaro tem péssimas qualidades [gargalhadas]. Mas o Álvaro é o meu pai. Minha mãe fica danada. Mas é o meu pai figurativamente: o humor atravessado do Álvaro, o meu pai tinha isso. Ele morava ali na praia, em Ipanema, olhava e dizia: “Está vendo? Não adianta fazer ginástica, ele passou correndo ontem e hoje está numa cadeira de rodas [gargalhadas].”

Todo o romance fala do fim, mas está usando a morte para falar da vida.
Fim é um livro sobre a vida – porque a morte dá perspectiva à vida, sem a morte a gente não teria o sentido da vida. Qualquer um de nós, a gente pode ter tido uma vida inútil, mas ao morrer… Você olha para trás e diz: “Que pessoa extraordinária foi aquela [gargalhadas].” Só o facto de ter estado vivo é um milagre. É curioso, para escrever outro livro tenho tido dificuldade, porque me parece que não há outro assunto relevante que não a morte e a vida em relação à sua morte. Então paro e acho que é inútil, acho que já escrevi o livro que tinha de escrever. Por quê outro assunto? Talvez o amor.

Os quatro capítulos já escritos são sobre o amor?
Seriam. Comecei na Tijuca e não quero sair de lá, porque sinto que lá é o meu Nelson Rodrigues, sinto que é lá que devo ficar.

Na Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, passou a ideia de que o actor não vale nada e que o escritor vale tudo. A escrita parece ter sido a grande libertação para si.
É a grande libertação, porque é sempre incrível mudar. Mas acredito que se passasse a minha vida só escrevendo e uma hora me chamassem para actuar, iria ser uma libertação. Agora que me vejo no fim de um processo de esvaziamento da escrita – lancei os dois livros – poder actuar é extraordinário. A profissão de actriz é colectiva, mesmo num monólogo tem o público, tem sempre o outro. Na literatura, poder à noite, sozinha, mandar 20 elefantes entrar numa sala e eles entrarem é incrível.

O primeiro parágrafo do seu livro tem que ver com Portugal de alguma maneira. “Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito D. Manuel I e a sua corja de tenentes Eusébios.” Como se os males do Brasil tivessem vindo daqui…
Não é tanto, a calçada portuguesa é linda, mas é um problema para qualquer pessoa que tenha um problema no joelho. E uma mulher de salto alto numa calçada portuguesa? E as calçadas brasileiras são todas esburacadas. Adoro Portugal. Aliás, a colonização portuguesa miscigenou o Brasil. Acho a mistura de Portugal com Brasil interessantíssima e adoro começar com D. Manuel e os tenentes Eusébios. Entrei na Internet para saber a história da calçada portuguesa e tinha a história de um tal tenente Eusébio. Não é nenhuma reclamação, é que Álvaro [a personagem] é um pessimista. O Álvaro tem uma alma portuguesa imensa.

A que atribui o sucesso deste romance no Brasil, onde já vendeu 100 mil exemplares?
Mais de 150 mil! Tenho vontade de subir a Igreja da Penha de joelhos. É um livro que se lê rápido, tem um sentido profundo da finitude, da morte, é mal-comportado, tem muita suruba, muita droga, os personagens são péssimos elementos e tem uma escrita ágil. Junta tudo isso. É um livro que você lê rápido e ao mesmo tempo não é um livro raso, tem alguma qualidade profunda. Tem essa característica de ser curto, fulminante e te dar alguma noção de tempo, de finitude, de sentimento de reflexão sobre você. É humorado e é trágico. É trágico-cómico.

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Fim, o primeiro romance da actriz brasileira Fernanda Torres, estará com ela para o resto da sua vida. Aos 49 anos, a actriz que conhecemos de séries de televisão como Os Normais ou Tapas e Beijos, do palco do monólogo A Casa dos Budas Ditosos (adaptação que fez do livro de João Ubaldo Ribeiro) ou da sua interpretação no cinema de Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, que lhe valeu o Prémio de Melhor Actriz do Festival de Cannes, diz que se sente como se voltasse a ser uma estreante. Está a ter sensações que não tinha desde os 20 anos. No final de Janeiro Fernanda Torres, filha da actriz Fernanda Montenegro e do actor Fernando Torres, esteve em Lisboa a passar férias. Fim, que acaba de sair em Portugal pela Companhia das Letras, foi o pretexto para esta conversa.  

Uma vez disse que um filme dura sete anos na vida de alguém, desde que se tem a ideia até estar pronto. E um livro?
Esse demorei 40 anos para escrever, não é? Depois demorou um ano para ser feito, saiu relativamente rápido. Foi uma surpresa, sem dores, acompanhada pela [editora] Companhia das Letras, eles me dando uma mão. Agora, olho para a frente, e não sei quanto tempo vou demorar até conseguir escrever outro. Esse livro demorou 40 anos para sair, vou ter de viver mais 40 para escrever outro.

Não tem capítulos escritos de um próximo?
Mas parei no quarto [gargalhada]. Estão lá, estão promissores, mas parei.  

De onde veio Fim?
Veio de uma descoberta minha da maturidade, da mortalidade, dos 40 anos, do meu pai que morreu, do meu enteado que adoeceu e da compreensão de que a gente morre.

No livro passa a ideia de que todos seremos um dia o próximo a morrer.
Aliás [essa cena do livro] é do enterro da minha avó. Estávamos no enterro e o capelão do cemitério abriu a porta e disse: “Quem será o próximo?” Todos parámos, ele repetiu e foi embora. Nasceu disso. O padre Graça é um personagem totalmente fora dos outros da história.

Como é que a sua experiência de actriz a ajudou na escrita?
Todo o processo de improviso, de se estar dentro de um personagem, ajuda na hora de escrever. Sempre acham que o actor é alguém que repete as palavras de outra pessoa, mas o processo de se apropriar de uma linguagem é um processo autoral. Tanto que você vê um actor lendo um texto e você vê outro, e um é um génio e o outro péssimo. O processo de apropriação, de estar na pele de um personagem, me ajudou muito no livro.

Como se infiltrou isso na sua escrita?
Em cada personagem – porque são cinco homens escritos na primeira pessoa. “Meu Deus, agora que dei conta de um, será que darei conta do outro?” A meio, quando já estava totalmente envolvida, quando já era totalmente aquele [homem], tinha de matá-lo. Mas cada vez que me lançava num novo personagem havia um novo frisson de actriz: “Será que darei conta de dar vida a esse outro personagem?” É parecido com o monólogo interno que o actor tem na hora de fazer um personagem.

Já disse que aprendeu a escrever fazendo a peça A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro.
Porque fiz o argumento. Fiz a adaptação com [o encenador] Domingos de Oliveira. Todo o nosso processo de ensaio não foi mais do que adaptar o livro e, ao adaptar, compreender o texto. Separámos trechos do livro e fui para casa. Poderia ter feito um copy-paste do texto, mas decidi que ia redactilografar, me ajudaria a memorizar. Quando fui redactilografando, fui falando: “Desgraçado, olha o ponto, olha a vírgula, olha o parágrafo.” Entendia o ritmo do Ubaldo e fiquei muito impressionada. Essa compreensão íntima de A Casa dos Budas Ditosos me ajudou muito na hora de escrever.

Na verdade, Fim começou por ser uma encomenda de um conto sobre a velhice que lhe fez o realizador Fernando Meirelles.
Fiz esse conto em quatro dias. Tive dificuldade na terça parte do livro. Uma hora tentei juntar – porque já tinha o último morto – e levei uma espinafrada do [editor] Luiz Schwarcz. Me disse que o maior pecado na literatura é a pressa. Percebi que ele tinha toda a razão e que eu tinha de me sentar e de escrever aquele miolo. Aprendi muito.

Quis mostrar o lado hedonista do Rio de Janeiro e falar dessas “pessoas que não têm importância”. Porquê?
Somos um país que teve uma escravidão imensa, uma desigualdade social inacreditável, então parece que quando você vai fazer uma peça ou um filme deve tocar na questão social. A cultura brasileira tem uma questão culpada, a do “com quem você está falando”. Uma questão que, por exemplo, não vejo no cinema argentino. O argentino fala do ponto de vista da classe média branca. Eu queria falar da classe média branca e inútil, de pessoas que não tinham tido nenhum acto grandioso, mas o facto de morrerem dava-lhes uma grandeza imensa. Queria falar do hedonismo carioca, que é uma marca tão forte no Rio de Janeiro. Queria falar de brancos, hedonistas, classe média carioca.

Da zona sul.
Sim. A zona sul é o beautiful people, é o jet set, é a classe média Nova Iorque. E a classe média do além túnel, de quem não mora na zona sul ou de quem mora na zona norte, é Nelson Rodrigues. A Tijuca é a origem. É a Ipanema do subúrbio. É Nelson Rodrigues. A minha família era dividida entre isso – de um lado, são imigrantes italianos que vieram ocupar mão-de-obra escrava no Brasil plantando café, e, do outro lado, é uma classe média decadente, da antiga política brasileira e que é a Tijuca.

Por parte de pai?
Sim. Por parte da mãe são os italianos descendentes que vieram ocupar o lugar dos escravos. Meu pai e minha mãe migraram para a zona sul através da cultura. Então sempre convivi com a zona norte. Muitas histórias da minha família estão presentes no livro. À minha tia não mandei o livro com vergonha. Depois ela leu e disse: “A Ruth sou eu.”

Os homens da zona norte inspiraram de alguma maneira os homens do livro?
Não, os homens são todos da zona sul. Convivi a vida inteira com essa classe média suburbana e que é muito a origem dos meus pais e cresci em colégios experimentais da zona sul. Os anos 70 para mim foram muito chocantes, porque todos os pais das minhas amigas eram separados, davam loucamente. Os anos 70 eu os vivi como um choque de infância e isso está no livro. Eles são figuras conservadoras que casaram conservadoramente e são atropelados pela revolução de costumes, que para eles é uma libertação e é uma tragédia. Eles casaram para ter filhos, com os anos 70 os casamentos acabam e eles se drogam enlouquecidamente e bebem. É um livro que fala desse choque de comportamento que tive, porque sou uma menina conservadora…

O crítico Manuel da Costa Pinto defendeu que em Fim reescreve Quadrilha às avessas. Na página 68 há até ecos do poema.
Inconscientemente, porque Drummond já nasce com a gente, é igual ao Fernando Pessoa. Essa passagem do livro existe porque um amigo meu contou que aos 18 anos foi com um amigo no apartamento de um pintor muito rico numa cobertura no Rio de Janeiro. Quando abriram a porta, tinha 100 pessoas nuas numa suruba. Ficaram até de manhã naquele lugar e quando saíram nunca mais foram os mesmos.

Tal como grupo de amigos que inventa um bloco e se traveste de mulheres para comer todo o mundo…
É uma história maravilhosa que veio de Marisa Orth, actriz, minha amiga. Uma vez foi à Itália com uma outra amiga, era o ano novo, viram uma mesa com quatro gays e se sentaram com eles. Todos bebendo, bebendo, uma hora ela olhou e a amiga estava se agarrando com um, um outro se agarrou a ela e eram quatro machos italianos que fingiam ser veados para comer mulheres [gargalhadas]. São histórias que tenho até medo de contar e depois me pedirem direitos autorais.

Vive rodeada de homens, num mundo masculino, os seus filhos e enteados são todos rapazes. Teve alguma influência no livro? E o seu pai, Fernando Torres?
A minha mãe nunca teve dúvida de que era actriz. O meu pai sempre foi a pessoa que dirigiu, produziu. Ele deu a primeira câmara de filmar para o meu irmão, quase foi médico, quase chegou a se formar. O meu pai era aquele que tinha interesses múltiplos. O meu pai morreu. Teve uma depressão de 26 anos, todo o processo do meu pai é um mistério para mim. É como se ele fosse o lado oculto da minha personalidade. Acho que escrever tem muito que ver com ele.

E quanto ao facto de ter escrito o romance só depois de ele ter morrido?
O ano em que meu pai morreu foi o ano em que o meu enteado ficou doente e foram três anos de uma coisa violenta que acabou com um transplante de medula. E meu filho menor nasceu no mesmo ano. Então esse livro tem muito que ver com esse processo de aos 40 anos você estar vivendo tendo uma sensação de plenitude, de auge da vida e também de conhecimento da morte. O Álvaro [personagem que abre o livro] tem muito do meu pai. Minha mãe [a actriz Fernanda Montenegro] fala: “Você não pode dizer isso.” Porque o Álvaro tem péssimas qualidades [gargalhadas]. Mas o Álvaro é o meu pai. Minha mãe fica danada. Mas é o meu pai figurativamente: o humor atravessado do Álvaro, o meu pai tinha isso. Ele morava ali na praia, em Ipanema, olhava e dizia: “Está vendo? Não adianta fazer ginástica, ele passou correndo ontem e hoje está numa cadeira de rodas [gargalhadas].”

Todo o romance fala do fim, mas está usando a morte para falar da vida.
Fim é um livro sobre a vida – porque a morte dá perspectiva à vida, sem a morte a gente não teria o sentido da vida. Qualquer um de nós, a gente pode ter tido uma vida inútil, mas ao morrer… Você olha para trás e diz: “Que pessoa extraordinária foi aquela [gargalhadas].” Só o facto de ter estado vivo é um milagre. É curioso, para escrever outro livro tenho tido dificuldade, porque me parece que não há outro assunto relevante que não a morte e a vida em relação à sua morte. Então paro e acho que é inútil, acho que já escrevi o livro que tinha de escrever. Por quê outro assunto? Talvez o amor.

Os quatro capítulos já escritos são sobre o amor?
Seriam. Comecei na Tijuca e não quero sair de lá, porque sinto que lá é o meu Nelson Rodrigues, sinto que é lá que devo ficar.

Na Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, passou a ideia de que o actor não vale nada e que o escritor vale tudo. A escrita parece ter sido a grande libertação para si.
É a grande libertação, porque é sempre incrível mudar. Mas acredito que se passasse a minha vida só escrevendo e uma hora me chamassem para actuar, iria ser uma libertação. Agora que me vejo no fim de um processo de esvaziamento da escrita – lancei os dois livros – poder actuar é extraordinário. A profissão de actriz é colectiva, mesmo num monólogo tem o público, tem sempre o outro. Na literatura, poder à noite, sozinha, mandar 20 elefantes entrar numa sala e eles entrarem é incrível.

O primeiro parágrafo do seu livro tem que ver com Portugal de alguma maneira. “Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito D. Manuel I e a sua corja de tenentes Eusébios.” Como se os males do Brasil tivessem vindo daqui…
Não é tanto, a calçada portuguesa é linda, mas é um problema para qualquer pessoa que tenha um problema no joelho. E uma mulher de salto alto numa calçada portuguesa? E as calçadas brasileiras são todas esburacadas. Adoro Portugal. Aliás, a colonização portuguesa miscigenou o Brasil. Acho a mistura de Portugal com Brasil interessantíssima e adoro começar com D. Manuel e os tenentes Eusébios. Entrei na Internet para saber a história da calçada portuguesa e tinha a história de um tal tenente Eusébio. Não é nenhuma reclamação, é que Álvaro [a personagem] é um pessimista. O Álvaro tem uma alma portuguesa imensa.

A que atribui o sucesso deste romance no Brasil, onde já vendeu 100 mil exemplares?
Mais de 150 mil! Tenho vontade de subir a Igreja da Penha de joelhos. É um livro que se lê rápido, tem um sentido profundo da finitude, da morte, é mal-comportado, tem muita suruba, muita droga, os personagens são péssimos elementos e tem uma escrita ágil. Junta tudo isso. É um livro que você lê rápido e ao mesmo tempo não é um livro raso, tem alguma qualidade profunda. Tem essa característica de ser curto, fulminante e te dar alguma noção de tempo, de finitude, de sentimento de reflexão sobre você. É humorado e é trágico. É trágico-cómico.

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