Mais do que saber as causas, as famílias querem "os seus restos mortais"

O trabalho de recuperação e identificação dos corpos dos passageiros do Airbus A320 pode demorar várias semanas, no cenário desolador das montanhas que rodeiam a pequena localidade de Seyne-les-Alpes.

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A paisagem de cortar a respiração a quem chega à pequena localidade francesa de Seyne-les-Alpes, com as suas montanhas cobertas de neve, é hoje um cenário de pesadelo para os familiares das 150 pessoas que viajavam no Airbus da companhia Germanwings. Do outro lado, invisível a quem lá quer chegar apenas com o olhar, as equipas de resgate vasculham entre fragmentos de fuselagem e corpos espalhados por uma área difícil de delimitar.

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A paisagem de cortar a respiração a quem chega à pequena localidade francesa de Seyne-les-Alpes, com as suas montanhas cobertas de neve, é hoje um cenário de pesadelo para os familiares das 150 pessoas que viajavam no Airbus da companhia Germanwings. Do outro lado, invisível a quem lá quer chegar apenas com o olhar, as equipas de resgate vasculham entre fragmentos de fuselagem e corpos espalhados por uma área difícil de delimitar.

"A área é muito extensa, é possível que haja corpos em outras partes das montanhas. Toda a operação vai ser feita por via aérea, porque é muito difícil chegar lá a pé", disse aos jornalistas o general David Galtier, coordenador das operações de resgate no quartel-general improvisado em que se transformou Seyne-les-Alpes.

O cenário escapa à compreensão até dos mais experientes, como Fabrice Rouve, um socorrista de 46 anos de idade que passou os últimos 14 a retirar corpos de avalanchas nos Alpes franceses.

"Eu e os meus colegas concordamos que nunca vimos nada assim. É difícil imaginar que isto possa ter acontecido a um avião tão grande, mas não resta nada", disse Rouve numa declaração aos jornalistas no local.

Xavier Roy, outro dos responsáveis pelas operações de resgate, disse ao The New York Times que ficou surpreendido com a ausência de pedaços de fuselagem maiores; de partes que pudessem imediatamente identificar um motor, qualquer coisa que os investigadores estejam habituados a encontrar em acidentes deste género. "Não conseguimos ver nada a não ser pequenos pedaços. O maior fragmento que vimos é do tamanho da porta de um carro", disse Roy.

A importância do luto
"A identificação dos corpos para as famílias é extremamente importante. As pessoas querem os seus restos mortais, e não os dos outros; e quando há trocas, é o fim do mundo. As famílias querem os seus restos mortais, isso é muito importante", disse ao PÚBLICO João Pinheiro, vice-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF).

Para lá chegar, é preciso o esforço conjunto de centenas de especialistas em inúmeras áreas, o que no caso do Airbus A320 que se despenhou nos Alpes franceses terá muitos obstáculos, mas também poderá ter algumas vantagens.

"No sítio em que é, em montanhas, com baixas temperaturas, isso naturalmente favorece", considera João Pinheiro, numa referência ao facto de o frio e a dificuldade de acesso poderem abrandar a decomposição dos corpos e limitar a contaminação da área do desastre – um problema que terá acontecido, por exemplo, no caso da queda do avião da Malaysia Airlines no espaço aéreo da Ucrânia, em Julho do ano passado.

"Em relação ao tempo, quanto mais demorar, pior é; e quanto mais se recolher, melhor é. Se os fragmentos estiverem espalhados por muitos sítios e nem todos forem recolhidos, podem perder-se evidências. A dispersão dificulta", aponta.

Por outro lado, o facto de se estar perante um desastre "fechado" – uma situação em que as potenciais vítimas são conhecidas – facilita o trabalho de identificação, já que existe uma lista de passageiros.

"É muito mais fácil, nestes casos que nós consideramos fechados. Saber quem são as potenciais vítimas facilita muito a vida aos investigadores, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu [nos atentados] do 11 de Setembro", sublinha o vice-presidente do INMLCF.

Em casos como os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, que fizeram quase 3000 mortos, e o tsunami no Sudeste Asiático de Dezembro de 2004, que fez mais de 220.000 mortos, o trabalho de identificação é naturalmente mais difícil, quer pelo maior número de vítimas, quer pela ausência de uma lista com nomes.

Mas mesmo em situações semelhantes à do desastre do Airbus A320 da Germanwings, há muitas coisas que podem correr mal. No ano passado, os corpos de alguns jovens que morreram no naufrágio de um ferryboat na Coreia do Sul foram entregues às famílias erradas.

Para João Pinheiro, desde que as equipas consigam recuperar os restos mortais dos passageiros do Airbus – ainda que esse trabalho possa demorar semanas –, "é possível" que o processo de identificação seja bem-sucedido.

"Não havendo sinais de incêndio, estando num local frio, só se estiverem quase pulverizados é que não será possível. Não digo que seja possível entregar corpos inteiros às famílias, mas pelo menos alguns fragmentos”, admite o vice-presidente do INMLCF.

"Do ponto de vista da metodologia, o avião caiu num sítio bom. Quer França, quer Espanha, quer a Alemanha têm equipas preparadas – como, aliás, Portugal também tem – e com experiência para fazerem esse trabalho com alto nível de qualidade, o melhor possível. Será garantidamente feito um bom trabalho no que diz respeito à identificação destes corpos", afirma João Pinheiro.

O processo de identificação é feito em três etapas. Enquanto os médicos legistas tentam recolher os sinais possíveis (da fisionomia à roupa; do uso de objectos como anéis ou pulseiras a cicatrizes ou tatuagens; de próteses a placas dentárias), outras equipas vão recolher informações sobre as vítimas junto das famílias – os dados ante mortem.

"Esses dados ficam registados. Não só dados físicos, mas também o ADN, que é imediatamente colhido. Enquanto isso acontece, recolhem-se as amostras para o ADN durante as autópsias. Essas amostras são enviadas para o laboratório e depois faz-se a confrontação dos dados" – os que foram recolhidos junto das famílias e os detectados durante as autópsias e nas análises.

É no meio deste cenário que os familiares das vítimas começam a chegar a Seyne-les-Alpes, onde os espera o apoio psicológico que irá ajudá-los a sobreviver ao choque, mas também semanas de angústia até receberem "os seus restos mortais", nas palavras de João Pinheiro – e para que possam finalmente começar a fazer o seu luto.