Em Arraiolos ainda há tapeteiras a bordar contra a crise
Câmara luta há mais de dez anos pela certificação do tapete, imagem de marca daquela vila alentejana. Na última década fecharam mais de metade das lojas mas ainda há resistentes.
A falsificação dos tapetes de Arraiolos anda de mãos dadas com a crise que abalou o negócio há mais de uma década. Paula Ramalho, proprietária da loja Arte em Casa aberta no centro da vila há 35 anos, tem uma teoria: “Há uns 15 anos andou por aqui um senhor que comprou uma série de tapetes e levou-os para a China". Poucos meses depois já havia réplicas à venda no mercado. Começou assim um capítulo negro na história desta arte secular.
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A falsificação dos tapetes de Arraiolos anda de mãos dadas com a crise que abalou o negócio há mais de uma década. Paula Ramalho, proprietária da loja Arte em Casa aberta no centro da vila há 35 anos, tem uma teoria: “Há uns 15 anos andou por aqui um senhor que comprou uma série de tapetes e levou-os para a China". Poucos meses depois já havia réplicas à venda no mercado. Começou assim um capítulo negro na história desta arte secular.
Segundo a autarquia, em 2003 existiam em Arraiolos 26 empresas de tapetes. Actualmente são pouco mais de dez. Na Rua Alexandre Herculano, uma via estreita e pedonal no centro da vila, as lojas de tapetes contam-se pelos dedos de uma mão. Até a Kalifa, a casa mais antiga (fundada em 1916), fechou – embora neste caso tenha sido mais a morte do patriarca a ditar o fim do negócio familiar. A marca subsiste porque foi vendida.
Em contrapartida, em vários pontos do país e mesmo no concelho surgiram espaços comerciais onde se vendem tapetes semelhantes aos de Arraiolos – em lã e tela, com o ponto cruzado oblíquo e desenhos que já têm séculos –, produzidos fora do concelho, em grandes quantidades e a preços inferiores aos de fabrico genuíno, ou até superiores. “Há quem diga que são feitos à máquina, mas não sei se acredito”, diz Paula Ramalho, de 42 anos, tapeteira desde os "seis ou sete". Outra tapeteira, Antónia Franco, de 57 anos, acrescenta que os tapetes falsificados também evoluíram na técnica, dificultando a distinção. "Antigamente virávamos o canto do avesso e víamos que não era perfeito mas hoje [o desenho] já tem a forma de espiga", como manda a regra, afirma.
Há mais de uma década que a Câmara de Arraiolos e os produtores de tapetes lutam pela certificação deste produto que se transformou na imagem de marca da pacata vila do distrito de Évora. Em 2001, a Assembleia da República aprovou por unanimidade a criação do Centro para a Promoção e Valorização do Tapete de Arraiolos, que iria estabelecer critérios para a definição do autêntico tapete. Criou-se um grupo de trabalho e a proposta de estatutos do centro chegou em 2006 ao gabinete do então secretário de Estado do Emprego e da Formação Profissional, Fernando Medina, actual vice-presidente da Câmara de Lisboa.
Nos termos da proposta, a autarquia deveria ceder o espaço para a instalação do centro e caberia ao Estado o financiamento da maioria das despesas correntes, naquele ano estimadas em 96 mil euros. Desde então o processo andou por vários ministérios: Cultura, Economia e Finanças. Actualmente, segundo o ministério da Economia, o dossiê está na gaveta do secretário de Estado do Emprego, Octávio de Oliveira. Contactado pelo PÚBLICO através do assessor de imprensa, o gabinete do governante não deu resposta em tempo útil.
"O país tem mais a perder com as imitações feitas no estrangeiro do que se valorizar o produto que é autêntico", diz a presidente do município, Sílvia Pinto (CDU).
Perante esta demora a câmara tem apostado em iniciativas de promoção, como “O Tapete está na Rua”, que se realiza este ano de 5 a 10 de Junho. Nestes dias há tapetes estendidos nas ruas da vila e pendurados nas varandas dos edifícios do centro histórico. Na edição do ano passado foi fabricado um tapete com 240 quilos, o maior alguma vez feito na vila, uma espécie de grito de alerta para a necessidade de proteger este património. Também em Junho, a autarquia espera entregar à UNESCO a candidatura do tapete e da tradição associada a Património Imaterial da Humanidade.
Seis séculos de história
Apesar das lojas fechadas ainda há mulheres a bordar em casa. Só a casa Lóios, onde trabalha Antónia Franco, dá serviço a mais de 30 bordadeiras, todas mais velhas. "As jovens até podem aprender mas não fazem disto profissão", constata, enquanto desmancha uma almofada, sentada numa pequena cadeira de madeira. Ao lado, no chão, tem um enorme tapetão para recuperar preenchendo os desenhos já "comidos" pelo tempo. Nos últimos anos, o restauro de tapetes usados foi a tábua de salvação para muitas lojas.
Paula Ramalho, que herdou o negócio da mãe, também está a restaurar um tapete que vendeu há um ano para o terraço de uma casa algarvia. "A dona deu uma festa e entornaram sumo de melancia." A tapeteira, formada em Comunicação Social mas apaixonada pelo bordado, dá trabalho a 40 mulheres. "Já tivemos 300 senhoras e daqui por uns anos quero ter outras tantas porque isto está a melhorar", garante, optimista. Diz que o Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos, construído pela câmara e aberto desde meados de 2013, tem atraído outro tipo de clientes. "Japoneses, russos, gregos, australianos, até argentinos".
O edifício, que já foi visitado por 20 mil pessoas, fica situado na Praça do Município sobre um complexo arqueológico com 95 fossas escavadas no solo, onde terá funcionado uma tinturaria associada ao tingimento da lã. As salas contam a história de uma indústria que ocupou famílias inteiras nos vários ofícios ligados à produção do tapete – desde a tosquia da lã até ao bordado. É possível ver tapetes, originais e réplicas, que mostram a evolução do bordado desde o século XVII, bem como os objectos usados em todo o processo.
A referência mais antiga aos tapetes de Arraiolos data de 1598 e os investigadores acreditam que a origem esteja ligada aos tapeteiros muçulmanos de Lisboa, expulsos por D. Manuel em 1496. A caminho de Espanha e do Norte de África, alguns mouros ter-se-ão instalado em Arraiolos, território mais tolerante no que toca à religião, onde mantiveram as profissões que desempenhavam na capital. Isso explica a influência oriental nos tapetes mais antigos, sobretudo de padrões persas e turcos.
Muitos exemplares foram encontrados em conventos, igrejas ou casas senhoriais. É por isso que os tapetes têm nomes, como Santa Clara, Santo António ou Seteais, que as tapeteiras sabem de cor. Basta-lhes olhar para os padrões. "Agora somos nós que baptizamos os tapetes modernos", brinca Paula Ramalho. A inovação nos desenhos e nos formatos é bem capaz de ser a chave para a sobrevivência desta arte. Na loja revestida a carpetes de vários tamanhos, Paula mostra a tela que há-de ser um tapete com o desenho e a forma de uma pele de corça. Também já reproduziu um quadro de Picasso. "Há mais de 20 anos uma pintora encomendou-nos tapetes com o desenho de todos os quadros dela. Foi numa altura boa, em que era bom para todos."
Para contornar a crise, Paula Ramalho faz peças mais pequenas e baratas. Por exemplo, um íman com um pedaço de tela e um desenho bordado custa três euros. Também tem pequenos sacos para o pão, pufes. Um tapete pode custar 200 euros ou alguns milhares, depende do tamanho. Uma carpete de seis metros quadrados, que demora quatro a cinco meses a fazer, pode custar 1300 euros. A lã, comprada nas poucas fábricas que ainda existem no país, "está muito cara", lamenta, reconhecendo que hoje ninguém enriquece a bordar. Ainda assim, as tapeteiras recusam baixar os braços.