Devassa, delação e listas
O Fisco integra o panóptico dos tempos modernos. Sabe tudo sobre os nossos rendimentos. Quando, como e onde os aplicamos ou gastamos. É um polícia omnipresente na nossa vida privada.
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O Fisco integra o panóptico dos tempos modernos. Sabe tudo sobre os nossos rendimentos. Quando, como e onde os aplicamos ou gastamos. É um polícia omnipresente na nossa vida privada.
Alimenta um prazer mórbido por listas delatoras. Publica-as, sem pudor. Quem deve ao Fisco vê a sua identificação no espaço global, a Internet.
Outras imaginou-as muito discretas. As VIPs na filosofia de Orwell. O poder nega a sua existência. Acaba por dar o dito por não dito. Do Fisco, implacável nas faltas e atrasos, exige-se uma posição de gente de bem. De respeito absoluto pelo princípio universal da igualdade. Tratamento igual do que é igual, desigual do que é desigual.
A dúvida gera mal estar. Descrença e revolta. Sem coincidência ou acaso, a Procuradoria-Geral da República decidiu recolher elementos para actuar no domínio da sua competência. Leia-se, na investigação criminal. A matéria faz suspeitar da existência de crimes. Devassa da vida privada, devassa por meio de informática, violação de segredo por funcionário.
Os cadastros fiscal e bancário exibem muito da vida privada e até íntima dos titulares. Devem ser preservados. Os dados fiscais e bancários não são mealheiros de bisbilhotices, alimento de intuitos ocultos e deploráveis. A sua razão coloca-se na esfera dos direitos, liberdades e garantias constitucionais.
O Estado deve impedir a devassa da vida privada e íntima de todos os cidadãos. Exerçam funções públicas ou privadas.Com o mesmo vigor com que saca impostos, publica listas de devedores, executa sumariamente quem não paga.
Certas circunstâncias exigem meios mais eficazes nessa matéria. Altos cargos do Estado. Entidades de muita relevância na vida social. Não é difícil entender, desde que não se esteja a privilegiar seja quem for. Não por via administrativa, antes por força de lei. Não há aí qualquer ofensa ao princípio da igualdade. Trata-se da sua afirmação.
Pululam listas.
A ministra da Justiça não quis ficar atrás.
Em Dezembro de 2011, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia aprovaram uma importante directiva sobre a prevenção e repressão do crime de abuso sexual de menores. A directiva 20011/92/EU impõe aos Estados-membros que, até 18 de Dezembro de 2013, prestem contas do que fizeram sobre a matéria, no domínio legislativo, regulamentar e administrativo.
As coisas andam sempre muito devagarinho. A governante anunciou “que tudo está a ser ponderado, pensado e acautelado…”. Três anos de trabalho hercúleo.
Criou listas de abusadores sexuais de menores já condenados em juízo, que ficam também inibidos de exercer actividades profissionais que impliquem contactos directos e regulares com crianças.
Conjecturou cumprir a directiva europeia!
Não é um documento de listas, proibições e inibições. Exige muito mais dos Estados. Prevê um complexo apreciável de medidas a adoptar para a protecção dos menores. Tratamento de abusadores condenados. Instrumentos eficazes de investigação criminal.
O direito penal não é um ramo de direito meramente punitivo. Assenta na ideia da recuperação social do delinquente. Quem cumpre penas, nada mais tem a cumprir. O enfoque deve estar na protecção das crianças. Não na promoção da perseguição pública ad aeternum de quem praticou um facto criminal. A prevenção criminal cabe ao Estado. Não às famílias, séria e justamente preocupadas. A directiva europeia tem isto tudo em conta. Exige o respeito pelos “direitos fundamentais”, a “protecção da dignidade humana”, a “protecção dos dados pessoais”.
O poder ficou-se por listas que vai ceder aos pais. Estes, numa atitude perfeitamente compreensível, vão pedi-las. Depois, não se sabe o que acontecerá.
O ministério ficciona cumprir a directiva europeia. Projectos concretos de protecção das crianças, encaminhamento e tratamento adequado de abusadores condenados dá trabalho. Exige meios financeiros e outros. A ministra lava as mãos no lavatório de Pilatos.
As questões políticas e sociais exigem muito mais que listas.