Rota do Românico: há uma História de Portugal em obras
Há uma parcela da História de Portugal, relativa à fundação da nacionalidade, que se encontra em obras. Quase meia centena de monumentos da Rota do Românico, nos vales do Sousa, do Tâmega e do Douro, estão a ser objecto de restauros e beneficiações. Um programa para promover uma região deprimida no Norte do país.
No chão, um tapete de flores calcadas e já murchadas conduzindo até à porta principal do templo denunciava a festa, que, de facto, aí tinha ocorrido no sábado anterior. Foi a cerimónia de dedicação do novo altar da igreja numa missa celebrada por D. António Taipa, bispo auxiliar do Porto, e que fez lotar de novo este templo no Vale do Tâmega, terminadas as obras de remodelação e conservação realizadas ao longo do último ano.
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No chão, um tapete de flores calcadas e já murchadas conduzindo até à porta principal do templo denunciava a festa, que, de facto, aí tinha ocorrido no sábado anterior. Foi a cerimónia de dedicação do novo altar da igreja numa missa celebrada por D. António Taipa, bispo auxiliar do Porto, e que fez lotar de novo este templo no Vale do Tâmega, terminadas as obras de remodelação e conservação realizadas ao longo do último ano.
De facto, o Mosteiro de Travanca e quatro dezenas de outros monumentos – igrejas, capelas, torres, castelos, pontes… – da Rota do Românico dos vales do Sousa, do Tâmega e do Douro estiveram, estão ou vão entrar em obras de conservação e beneficiação, num projecto integrado lançado pelas autarquias desta região do Norte do país.
Ao todo, são 58 os monumentos (25 dos quais classificados como património nacional) actualmente ancorados nesta Rota, que foi lançada em 1998 pela associação de municípios do Vale do Sousa, e que posteriormente se estendeu aos concelhos vizinhos.
“Para além de salvaguardar o património, queremos apostar na promoção cultural, consciencializar para a identidade local a partir das escolas, reforçar o orgulho próprio das populações”, explica ao PÚBLICO, na sede da Rota do Românico, em Lousada, a directora do programa, Rosário Correia Machado.
A confirmar esta aposta da região – uma população de meio milhão de habitantes dispersa por uma área de quase 2 mil kms2, e que se encontra no centro do “Triângulo das Bermudas” do Património Mundial constituído pelo Porto, Guimarães e o Douro Vinhateiro – está já um vasto catálogo de realizações (as obras), ao lado de edições, eventos culturais e de lazer, incremento do turismo, e vários prémios nacionais e internacionais acumulados na última década e meia.
Uma aposta de sete milhões de euros
O presente ciclo de obras nesta região que coincide territorialmente com a história da formação da nacionalidade – D. Afonso Henriques e Egas Moniz são as principais figuras de referência –, iniciado em 2010, orça já os 7 milhões de euros, maioritariamente comparticipados por verbas da União Europeia.
O PÚBLICO visitou meia dúzia dos sítios que estão (ou estiveram) a ser intervencionados numa longa viagem entre a geografia dos montes e vales inclinados para os rios Sousa, Tâmega e Douro, com passagens por Lousada, Paredes, Penafiel, Amarante, Baião e Marco de Canaveses. E parou mais demoradamente no Mosteiro de Travanca, fundado no séc. XI e reconhecidamente um dos espécimes mais notáveis do património medieval e românico de toda a região.
A igreja e a torre senhorial construída separadamente – um caso raro, e uma das mais elevadas torres medievais existentes em Portugal – parecem agora novas, depois da limpeza e beneficiação realizadas, com um custo superior a meio milhão de euros. Além da renovação das coberturas e da conservação de várias secções do conjunto monumental, foram introduzidas inovações com a marca do nosso tempo: um altar com sete pilares, certamente representando os sete dons do Espírito Santo, esculpido pelo arquitecto Miguel Malheiro, que foi o responsável pelo programa geral da intervenção, mas também novo mobiliário e iluminária.
“É importante assumirmos o tempo presente”, diz o engenheiro civil Ricardo Magalhães, responsável técnico pela obra na equipa da Rota do Românico, e, com o historiador e intérprete José Augusto Costa, um dos guias da viagem.
A igreja do Mosteiro de Travanca é um dos três monumentos da região que tem três naves (com as de Pombeiro, Felgueiras, e do Paço de Sousa, Penafiel). É um bom exemplar do chamado “românico português”, ou “nacionalizado”, resultante da utilização das técnicas construtivas e decorativas de cada região, bem como da sua sucessiva actualização ao longo dos séculos e dos estilos.
“No contexto do românico português, a arquitetura do Tâmega e Sousa apresenta características muito peculiares” – diz o bem documentado Guia da Rota do Românico, que acaba de ser editado –, manifestas na singularidade da sua escultura decorativa, onde pontuam representações vegetalistas e animalistas bem desenhadas, segundo a técnica do bisel, normalmente inspiradas na sintaxe introduzida pelas sés de Coimbra (considerada a casa-mãe do românico nacionalizado), do Porto e de Braga.
Além do interior da igreja com os seus arcos cruciformes – “Estamos diante de um dos mais ritmados espaços da arquitectura românica portuguesa”, salienta o Guia, apesar das notórias imperfeições que também apresenta –, o Mosteiro de Travanca contém “uma das sacristias mais interessantes da região”, ampliada no séc. XVI e depois reformada ao gosto barroco nos dois séculos seguintes, nota José Augusto Costa, explicando-nos o significado dos “emblemas cristológicos e marianos, todos cheios de mensagem”, que decoram os coloridos caixotões do tecto.
Numa das paredes, está exposta uma tela de estética claramente popular e naïf, mas que tem a curiosidade de representar o Conde D. Henrique e D. Teresa, com a seguinte legenda: “Pais do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, sendo senhores de Portugal pelo ano de 1094 até 1112, foram os que doaram a este mosteiro do Salvador de Travanca o couto de que ele é senhor donatário”.
Há ainda pinturas a fresco – e José Augusto Costa nota que é também possível fazer todo um percurso pelo património da região através da Rota do Fresco, dos séculos XVII e XVIII, ou mesmo da Rota do Azulejo –, bustos de santos beneditinos, braços-relicários, além de dois belíssimos arcazes de decoração oriental que guardam valiosos paramentos do séc. XVIII, em damasco bordado a fio de ouro.
“Este seria um belo sítio para fazer a sede do Centro de Estudos do Românico”, dizem em coro José Augusto e Ricardo Magalhães, olhando o edifício do mosteiro, que já foi também hospital psiquiátrico e escola primária, e que hoje mostra marcas de degradação. Trata-se de um património recuperado apenas em metade, que agora continuará à espera de verbas que permitam uma utilização consentânea com a sua história e monumentalidade.
Não que a Rota do Românico não tenha (ou vá ter) espaços suficientes de instalação. Para além da actual sede provisória em Lousada, vai contar brevemente com dois centros de interpretação já em construção nesta cidade e em Penafiel. Em Lousada, em pleno centro urbano, está a nascer um icónico puzzle de sete “cubos” em betão aparente, com a assinatura do atelier Spaceworkers (arquitectos Rui Dinis e Henrique Marques, recentemente distinguidos pelo site Archdaily). Sérgio Sousa é o arquitecto do edifício em construção em Penafiel. As duas custarão cerca de 2 milhões de euros.
“O edifício mais gótico do românico”
Mas a viagem do PÚBLICO começou em Paredes, junto de outro dos exemplares mais notáveis de toda a Rota: o Mosteiro de São Pedro de Cête. Do lado de fora, trabalhadores retiram as ervas das paredes e dos telhados, desvendando uma porta e um gradeamento antigos. Lá dentro, os andaimes permitem o acesso aos tectos, janelas, vitrais, paramentos, em trabalhos que se estenderão também à sacristia, que será igualmente dotada de mobiliário moderno.
“Este é o edifício mais gótico da Rota do Românico” – explica José Augusto –, mesmo se a edificação original remonta ao séc. X. Simultaneamente, é um dos monumentos que melhor documenta não só as sucessivas actualizações estruturais e decorativas – paredes almofadadas românicas, portal e capela-mor góticos, altares maneiristas e neo-clássicos… – como a intervenção “definitiva” realizada a partir da década de 1930 pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), que, por todo o país, veio enformar todo um imaginário patrimonial português promovido pelo Estado Novo, e que consistiu em fazer regressar os monumentos à sua suposta pureza original.
Frente a uma pintura mural do mártir São Sebastião, José Augusto comentava: “Costumo dizer que a Rota do Românico é como a Santa Irene que curou São Sebastião depois de este ter sido cravado de setas; nós estamos a fazer o mesmo com estas obras”, referindo-se às intervenções que agora se propõem desvendar, reparar e documentar as várias camadas de tempo, e de história, que cada edifício encerra.
Mas alguns monumentos exigem medidas mais radicais. É o caso da Torre dos Alcoforados (ou dos Mouros), em Paredes, onde foi já preciso demolir uma casa acoplada, e onde há a expectativa de se conseguir também retirar um galinheiro “geminado” com esta torre militar (domus-fortis) e senhorial do séc. XIV.
“A primeira fase da nossa intervenção foi para salvaguardar a torre”, diz o engenheiro Nélson Antunes, da equipa da Rota do Vale do Sousa, acrescentando que é preciso agora garantir novos financiamentos para a instalação de uma quinta pedagógica nos terrenos envolventes.
E há trabalhos interrompidos pelas circunstâncias da própria intervenção, como acontece na pequena Igreja de Lufrei, em Amarante, cuja escavação no adro revelou a existência de mais túmulos do que aqueles que se conheciam. “São coisas inevitáveis. Quando começamos a escavar o solo sagrado, nunca sabemos o que vamos encontrar”, nota Ricardo Magalhães.
Um monte de sacos de plástico numerados e cheios de ossos humanos retirados da terra marcam este compasso de espera que a Rota do Românico tem de respeitar até terminarem as escavações arqueológicas.
Outro exemplo é a Ponte de Esmoriz, em Baião, cuja intervenção revelou um lajedo a uma cota inferior ao chão conhecido desta pequena passagem que parece ter sido principalmente construída como carril para gados – e que agora serve também de “recreio” bucólico para os pequenos cabritos pretos que saltitam e pastam nos prados em volta.
No final da viagem, já ao cair do dia, a Capela da Senhora da Livração de Fandinhães, em Marco de Canaveses, documenta um dos grandes enigmas desta Rota do Românico. Trata-se da capela-mor de um templo que, ou nunca chegou a ser construído, ou foi demolido antes de meados do séc. XVI, vendo-se ainda os arranques do restante edifício – um caso que só as escavações arqueológicas já aprazadas irão desvendar.
Mas, no seu aparato singular, esta capela permite ver pequenas pérolas do decorativismo românico português (e estilos subsequentes), com que os mestres-pedreiros esconjuravam os pensamentos mais obscuros da mente humana, desde os capitéis ornados com cobras e cabeças de gato até uma estranha figura de homem com uma mão a cofiar a barba e outra a… afagar o pénis! Chamam-lhe “o exibicionista”.