O inferno de Ulrich e a divina comédia do BES
A Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito Santo está prestes a terminar. E agora?
Foram mais de quatro meses e cerca de meia centena de audições. Desfilaram na sala n.º 6 da Assembleia da República gestores, políticos, reguladores e banqueiros. Passaram por lá mentirosos, pessoas honestas, indivíduos com amnésia e outros com memória de elefante. Foram apontados dedos acusadores, foram omitidos factos, foram contadas histórias, foram ditas verdades, meias-verdades e mentiras.
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Foram mais de quatro meses e cerca de meia centena de audições. Desfilaram na sala n.º 6 da Assembleia da República gestores, políticos, reguladores e banqueiros. Passaram por lá mentirosos, pessoas honestas, indivíduos com amnésia e outros com memória de elefante. Foram apontados dedos acusadores, foram omitidos factos, foram contadas histórias, foram ditas verdades, meias-verdades e mentiras.
Os deputados até agora têm feito um trabalho exemplar. Deixaram a politiquice à porta do Parlamento e arregaçaram as mangas para tentar deslindar o que provocou o colapso do banco da família Espírito Santo. Foi necessário ler milhares de páginas, apêndices, apensos, anexos, relatórios, pilhas de documentos. Ainda ontem Ricardo Salgado citava o padre António Vieira: “Em nenhuma parte tanto como em Portugal se gasta tanto papel, ou se gasta tanto em papéis”. Cada um fez o seu papel na Comissão. Os deputados fizeram o papel de deputados diligentes. Foram centenas de horas de audições intermináveis. Foi preciso ter uma paciência de Job e um presidente da Comissão, Fernando Negrão, que esteve sempre à altura da isenção e da moderação que lhe eram exigidas.
Aqui chegados, perguntar-se-á o que se segue? A Comissão Parlamentar não é um tribunal. Não julga, não condena e não absolve. Por muito que lhes apeteça, os deputados têm de se contentar com um olhar reprovador ou com uma insinuação mais velada. Perante a mais descarada das mentidas só lhes resta engolir em seco. E perante aquilo que acham ser verdade anuem com um acenar de cabeça.
Então para que serve a Comissão? Serve para sugerir e propor iniciativas legislativas para evitar novas derrocadas no sistema financeiro. O Bloco de Esquerda até já anunciou que vai propor uma alteração à lei bancária para travar a criação de grandes conglomerados mistos no sector financeiro. Faz sentido. Foram as relações incestuosas entre o BES e o GES, entre o BESA e a Escom, entre o BPN e a SLN, entre o BPP e a Privado Holding que ajudaram a esconder e a camuflar as perdas e as alegadas irregularidades cometidas.
Fernando Ulrich levou as mãos à cabeça e foi à Comissão pedir que "não façam mais leis, isto é um inferno. O que conta são as pessoas". Ulrich faz parte de uma raça em vias de extinção, os chamados banqueiros honestos. E tem a obrigação de saber que inferno é a vida de quem investiu as poupanças de uma vida em papel comercial do Espírito Santo ou em produtos de retorno absoluto do BPP.
Mas nem só de leis se faz a justiça. A justiça também se faz de julgamentos, de condenações ou absolvições. Perante a gravidade de tudo o que já ouvimos na Comissão de Inquérito é legítimo perguntar: ainda ninguém foi preso? Ricardo Salgado deu uma entrevista em Maio de 2014 ao Jornal de Negócios a confessar que foi cometido um crime no Grupo Espírito Santo, que as contas foram falsificadas. O contabilista do grupo confessou no Parlamento: “O que eu fiz é algo de que não me orgulho nada. Estou muito arrependido. Estou, nos últimos anos, em angústia". De arrependidos o inferno está cheio. Não o inferno de Fernando Ulrich, não o inferno dos clientes do BES, mas o inferno da Carregueira, de Caxias e do Linhó. O contabilista arrastou consigo Ricardo Salgado e os amigos: "Não fui eu que tive a ideia de ocultação, foi Ricardo Salgado, em 2008." E mais: todo o Conselho Superior sabia do passivo da ESI.
O PÚBLICO também noticiou a existência de um saco azul no banco para fazer pagamentos paralelos. Também foi noticiado que um construtor deu uma “prenda” de 14 milhões de euros a Salgado, que juristas contratados pelo banqueiro justificaram com o “espírito de entreajuda e solidariedade” que deve existir entre as pessoas. Uma auditoria encomendada pelo Banco de Portugal aponta para uma mão-cheia de indícios de potenciais crimes, contra-ordenações e actos de gestão ruinosa. A auditoria da Deloitte fala ainda em alegadas transferências de dinheiro do BES Angola para offshores de Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires e Álvaro Sobrinho. Para uns, o BES foi um inferno, para outros foi o paraíso. Isto mais parece a divina comédia.
Claro que todo este inferno que foi o colapso do BES muito provavelmente não teria assumido as proporções que assumiu se tivéssemos supervisores mais atentos, que não permitiram que banqueiros suspeitos de cometer graves irregularidades se eternizassem nos seus cargos e continuassem a gerir as poupanças de milhares de portugueses. Foi o próprio Ulrich que foi à Comissão de Inquérito dizer que já no final de Maio ou início de Junho de 2013 (sim, mais de um ano antes de o BES falir) alertou Vítor Gaspar sobre as preocupações que ele tinha em relação ao BES e ao GES. Gaspar terá falado de imediato com Carlos Costa, que terá pedido a um alto funcionário do Banco de Portugal para contactar Ulrich. "O que se passou a partir daí já não sei", diz o presidente do BPI. Não sabe Ulrich e não sabemos nós.