Feios, porcos... e bons

A Festa do Cinema Italiano homenageia Sergio Leone com a exibição dos sete filmes que realizou – oportunidade para compreender como um dos maiores estilistas do cinema italiano mudou para sempre o cinema americano

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Um realizador italiano hoje aclamado como um mestre do cinema europeu passou a maioria da sua carreira a filmar a América – e um “sonho americano” que talvez já estivesse a dar as últimas Sunset Boulevard/Corbis

A ironia é uma fórmula muito pós-moderna, e esse pós-modernismo é perfeito para falar da carreira do mestre que foi Sergio Leone (1929-1989). Nascido no meio do cinema, filho de um realizador e de uma actriz do tempo do mudo, assistente de Vittorio de Sica em Ladrões de Bicicletas ou de William Wyler em Ben-Hur, Leone treinou nos baixos orçamentos das séries B feitas “a despachar” - e tornou-se num dos autores mais aclamados e influentes do cinema moderno. Um cineasta italiano que não falava inglês, nem nunca tinha viajado aos EUA, mudou para sempre a imagem do cinema americano e é celebrado como um dos nomes maiores da cinematografia transalpina – mas nunca dirigiu um filme ambientado no seu país natal.

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A ironia é uma fórmula muito pós-moderna, e esse pós-modernismo é perfeito para falar da carreira do mestre que foi Sergio Leone (1929-1989). Nascido no meio do cinema, filho de um realizador e de uma actriz do tempo do mudo, assistente de Vittorio de Sica em Ladrões de Bicicletas ou de William Wyler em Ben-Hur, Leone treinou nos baixos orçamentos das séries B feitas “a despachar” - e tornou-se num dos autores mais aclamados e influentes do cinema moderno. Um cineasta italiano que não falava inglês, nem nunca tinha viajado aos EUA, mudou para sempre a imagem do cinema americano e é celebrado como um dos nomes maiores da cinematografia transalpina – mas nunca dirigiu um filme ambientado no seu país natal.

Sergio Leone é homenageado a partir da próxima quarta-feira, dia 25, na 8ª edição da 8 ½ - Festa do Cinema Italiano. O evento mostra as suas sete longas-metragens “oficiais” - isto é, as sete onde o seu nome surge abertamente creditado no genérico como realizador. A primeira de todas, O Colosso de Rodes (1961), é um dos velhos peplums da Antiguidade que Itália fazia como ninguém na passagem dos anos 1950 para os 1960. Depois, vieram as duas trilogias que o celebrizaram. Primeiro, os três filmes do “pistoleiro sem nome” que fizeram de Clint Eastwood uma vedeta e lançaram a moda do western-spaghetti - Por um Punhado de Dólares (1964), Por Mais Alguns Dólares (1965) e O Bom, o Mau e o Vilão (1966); depois, a trilogia “Era uma Vez”, constituída por Aconteceu no Oeste (1968), Aguenta-te, Canalha! (1971) e Era uma Vez na América (1984).

Que o mesmo é dizer, um realizador italiano hoje aclamado como um mestre do cinema europeu passou a maioria da sua carreira a filmar a América – e um “sonho americano” que (e aqui regressa a ironia, não por acaso) talvez já estivesse a dar as últimas, uma ideia (e um ideal) que os novos tempos estavam já a deixar para trás. Afinal, o filme ainda hoje mais unânime do realizador, Aconteceu no Oeste, de 1968, é contemporâneo da explosão da “nova Hollywood”, iniciada em 1967 com Bonnie e Clyde de Arthur Penn. E o que Leone havia feito nos filmes do “pistoleiro sem nome” terá forçosamente tido um papel nessa explosão. Hoje, dificilmente conseguimos pensar na obra de gente tão díspar como Scorsese ou Tarantino sem reconhecermos a dívida ao cineasta romano. E à idiossincrasia que fez a diferença do seu cinema: no processo de produção em linha de montagem de um cinema popular comercial, feito “à maneira de” mas à distância, criou-se uma variação genética, uma mutação se quisermos.

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Por Mais Alguns Dólares (1964) DR

O spaghetti foi o primeiro western abertamente revisionista (sem que isso houvesse forçosamente sido pensado): hiper-realista e violento onde o western tradicional estava prisioneiro dos códigos morais e narrativos hollywoodianos, sem problemas em exibir a dimensão de “feios, porcos e maus” dos seus anti-heróis (provavelmente muito mais próxima da realidade do Velho Oeste), desenrascado por tuta e meia por gente a brincar aos “cóbois”, injectava novidade e frescura num género por demais formatado. Inverteu por breves momentos o fluxo da criatividade – onde era a Europa que se mudava para os EUA para aí alimentar a “fábrica de sonhos” de Hollywood, aqui era Hollywood que viajava até à Cinecittà (ou aos estúdios de Almería que faziam as vezes dos exteriores californianos e não só) para se rejuvenescer. De certo modo, Por um Punhado de Dólares, Por Mais Alguns Dólares e O Bom, o Mau e o Vilão (e os filmes que vieram na sua sequência) “mataram” o western clássico, mas nesse processo também o relançaram; a sua desintegração do mito apenas ajudou a perpetuá-lo.

O que Leone fez em seguida foi expandir essa visão de modo operático e grandioso, para lá do western, para a América ela própria. Quando Aconteceu no Oeste surgiu em 1968, era como se estivéssemos a assistir em directo ao fim de uma era - John Ford tinha filmado o seu último western, O Grande Combate, quatro anos antes; A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, surgiria em 1969. Aconteceu no Oeste seria o último western assumido de Leone - com Aguenta-te, Canalha! (que inicialmente apenas deveria produzir, mas dirigiu depois de Peter Bogdanovich se ter afastado), transporia o “último estertor” do espírito rebelde e pioneiro para o México imediatamente pré-I Guerra Mundial e para a revolta de Pancho Villa. O tom épico, funéreo, de Aconteceu no Oeste não era um mero fogacho. Um dos muitos títulos alternativos de Aguenta-te, Canalha! foi Era uma Vez a Revolução, fazendo a ponte entre o “era uma vez no Oeste” e o “era uma vez na América” que, em 1984, depois de quase duas décadas de trabalho, daria por encerrada a carreira do realizador.

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Substituindo os pistoleiros dos westerns e os revolucionários mexicanos pelos gangsters dos anos 1920 e 1930, Era uma Vez na América tornou-se inicialmente célebre pelos problemas de produção que o rodearam: mesmo com Robert de Niro no papel principal, as suas quase quatro horas de duração foram brutalmente amputadas pelos co-produtores americanos e o filme ganhou uma aura de “obra maldita”, incompreendida, que só com o correr do tempo – e o reconhecimento eventual do “director's cut” original – foi verdadeiramente reconhecida. Tarde demais para Leone, que faleceu em 1989 sem voltar a rodar, alimentando projectos que nunca chegaram a ser feitos e magoado com a recepção gelada à sua opera prima.

Talvez essa frieza não fosse surpreendente: à medida que o seu cinema ganhava em ambição e dimensão, começava a confrontar-se com um mundo que mudava mais depressa à sua volta do que seria desejável. O seu spaghetti fizera parte uma das fases mais férteis do cinema italiano (os giallos de Dario Argento e Mario Bava, as angústias de Antonioni e Bertolucci, o cinema político de Francesco Rosi e Elio Petri); o momento que agarrara, no exacto ponto de equilíbrio entre a revisitação do cinema clássico à luz dos novos paradigmas autorais e as “novas vagas” que procuravam inventar outras maneiras de filmar, fechara-se entretanto. Já dizia Norma Desmond no Crepúsculo dos Deuses de Billy Wilder que “foram os filmes que se tornaram pequenos” - e a desmesura épica de Sergio Leone parecia já não ter lugar nestes novos tempos. A obra sobreviveu, contudo, singular e inspirada – cápsula do tempo e momento histórico.

A retrospectiva de Sergio Leone no âmbito da 8 ½ – Festa do Cinema Italiano decorrerá em Abril na Cinemateca Portuguesa, com a exibição dos sete filmes que dirigiu oficialmente. Antes, a Festa exibe no cinema São Jorge as versões integrais restauradas de Era uma Vez na América, sábado, 28 de Março, às 15h00, e O Bom, o Mau e o Vilão, quarta, 1 de Abril, às 21h00