Caminhar na intempérie
O negrume de uma escrita cujo ímpeto é tão arrasador ao virar-se para a voragem do sujeito como quando aponta ao vendaval do mundo
A escrita de Jorge Roque convida a poucas comparações. Dizer que o seu lugar é solitário seria o mesmo que pintar de negro a escuridão. Negro e escuro são, afinal, mutuamente inclusivos. Assim este universo: negro sobre negrume, escuro sobre escuridão. Até ao fim. Que não há. Subsiste uma espécie de tempo em regime onírico, encostado à órbita das voragens, suspenso na modalidade do pesadelo que apenas a mais inclemente introspecção criasse. Há quanto tempo não víamos tanto rigor no olhar que transita para dentro de si? Há quanto tempo o sujeito da escrita não se rasgava tão plenamente diante do seu leitor?
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A escrita de Jorge Roque convida a poucas comparações. Dizer que o seu lugar é solitário seria o mesmo que pintar de negro a escuridão. Negro e escuro são, afinal, mutuamente inclusivos. Assim este universo: negro sobre negrume, escuro sobre escuridão. Até ao fim. Que não há. Subsiste uma espécie de tempo em regime onírico, encostado à órbita das voragens, suspenso na modalidade do pesadelo que apenas a mais inclemente introspecção criasse. Há quanto tempo não víamos tanto rigor no olhar que transita para dentro de si? Há quanto tempo o sujeito da escrita não se rasgava tão plenamente diante do seu leitor?
Pegue-se no primeiro texto de Nu contra Nu, O ferro das grades. Nele, a atenção que pousa sobre um cão vai percorrer o animal clássico do caso humano, nas dimensões imediatamente físicas daquela espécie, mas desferindo golpes sobre a camada que nela provoca a aparição de um âmbito imaterial — “Não ladrava a transeunte algum que passasse. Tão pouco ladrava a Deus que, por natureza, só existe para os homens e não para todos. Fazia como eu. Vociferava para ninguém por trás das grades do pátio estreito que lhe coube em vida” (p. 9). Que Jorge Roque faça equivaler o instinto canino à identidade do sujeito destas palavras não é indício de um simbolismo estreme, tão-pouco de qualquer excesso da expressão, mas sim a assunção de um modo problemático, mas também desabrido, de conceber o sujeito e os seus objectos — “Por melhor que eu fingisse continuaria a ser eu” (p. 87).
Nu contra Nu, como, de resto, registos anteriores, é uma construção cujo sólido engenho ergue muros contra os normativos, desde logo, os da forma. O poema em prosa que Jorge Roque vem escrevendo, e que, possivelmente, atingiu num livro como
Broto Sofro(Averno, 2008) a sua mais perfeita expressão, desmantela barreiras definitivas. Vale como discurso. Um discurso de uma violência que talvez só encontre paralelo em autores como Rui Nunes, ou Rui Baião. Note-se, contudo, que duas paralelas só muito longe se encontram.
O universo de Jorge Roque é o do Húmus. O negrume não é uma coloração, mas um estado. Quando muito, e a manter-se a trivialidade da analogia, seria um primário, a preceder qualquer camada de cor, e toda a impressão anímica. Já em Broto Sofro podíamos ler: “entre tantas cores escolher a única”. O negro era a cor. O negro como acumulação de todas as cores, negação de qualquer uma delas. Mesmo a expressão física — a reacção do corpo àquilo que Nu contra Nu faz acontecer — parece emanar desse subsolo, dessa manta morta, de onde as suas energias são constantemente arrancadas — “Uma farsa o riso que ri. Verdade apenas o tempo que morre nas dobras do riso em que o mentiu” (p. 14). Talvez não seja por acaso que a palavra “farsa” se introduz nesta negrura. O que aqui mais nos impressiona, além do inflexível culto do terrífico, é que as coisas tomaram conta do que pertenceria aos seres. E o imaterial recobre o concreto; no entanto, isso só intensifica o nível a que se dá o pesadelo. As dobras são do riso, e não da boca, ou dos lábios. A acção, tipificada num nome abstracto, dissipou toda a concretude, petrificou-se, como um fragmento em decadência de estatuária. Ao isolar “a vida, o dia que nasce para lá da janela que agora fecha, a persiana que desce, o candeeiro que acende para não ver que é manhã” (p. 14) numa expressão parentética, Jorge Roque forja uma identificação, faz uma rudíssima tomada de pulso do animado pelo inanimado. Essa vai da possibilidade de sobrevida até à neutralidade, aparentemente total, dos objectos — “janela”, “persiana”, “candeeiro”. E por fim, são elas, as coisas, que vão ficar com tudo. Até com a capacidade dos sentidos: “ver” cabe-lhes a elas.
Quando Jorge Roque escreve “todos os dias a morte diante dos olhos (muro tão espesso, sofro tão espesso, ar sufocado o que respiras)” (p. 15), não é só a sintaxe que se desvia do seu carreiro normal — numa operação que lembra as palavras finais de Broto Sofro: “Dói-me aqui estou só” —, mas toda a funcionalidade gramatical que se desconforma. E é, sobretudo, uma relação com o mundo, com a sua gramática, a sintaxe do mundo e das coisas, que entra em turbilhão. Fazer seguir um verbo como “sofrer” do adjectivo (e não de um advérbio, como seria de esperar) “espesso” dá expressão manifesta a esse descontrolo da norma posto em circuito pelo poderio evocador desta escrita. Mas faz mais: a escolha do vocábulo “espesso”, geminado, para mais, confirma a textura que neste discurso, desde a sua génese, fermentava. Não podia ser fluido nada que acontecesse nesta escrita. Antes espesso — como “o espesso negro da noite do horror” (p.19) —, turvo, como a matéria que prende à terra, como o magnetismo que, neste entendimento da escrita, nos compele a compreender o húmus — “Recebeu-a o chão que sempre a havia chamado do alto em que se suspendia” (p. 16). E neste ponto, o que começa por ser uma operação florícola ostenta uma afinidade com o corpo humano que o texto insinua, mesmo se aparentemente está em contradição com isso. Não se trata aqui da reposição, que não podia se não ser serôdia, de um qualquer ultra-romantismo. Sim de uma desarticulação que se recusa a capitular, uma sedição irredutível, erguida contra qualquer espécie de norma. Seja ela moral ou do que há de mais consuetudinário nas práticas literárias. Mas esta escrita é anacrónica, e é-o com um brio refractário, altivo, mesmo. Porque não se afaz aos tempos, nem trai essa deterioração que poderia dar-lhe um sarro detectável. Se o mundo entra nela — e é indesmentível que tal sucede: “o casamento é para mim um caso semelhante ao do micro-ondas, ou seja, uma circunstância de que não suporto o barulho” (p. 70) —, fá-lo de rastos; e é de borco que fazem a sua aparição os sinais da contemporaneidade. É como se o mundo entrasse por um buraco escavado na terra — “A minha dor é um buraco», escrevia Jorge Roque em Broto Sofro — e como se houvesse, em resultado desse atrito, limalhas orgânicas por todo o lado, a contaminar o texto e as suas ressonâncias. Tudo se submete à prensa de uma escrita que esmaga com o peso de um escrutínio sem embaraços.
Quanto à matéria-prima do poema — “Preciso tanto das palavras” (p. 51) —, ela é vistoriada com o mesmo nível de impiedade e furor com que a escrita incide sobre o sujeito. As palavras são, mais do que debatidas, espoliadas da sua soberania — “tão pouco tudo, tão para lá de todas as palavras, o que vês” (p. 15). Não será indiferente a presença de vocábulos como preposições e advérbios, já que é da descrença nas palavras — nos nomes, nos adjectivos, nos verbos — que aqui se trata. Essa revisão desiludida da vida das palavras desagua num saldo explicitamente negativo — “A princípio somos nós que queremos as palavras, que elas se entregassem era o nosso desejo mais fundo (…) Mas nada acontece como pensamos” (p. 97).