O envelhecimento, a corrupção, o PCP e Abril preservaram o sistema político
Há uma pergunta recorrente: Por que não surgiu, em Portugal, um partido como o Podemos, ou o Syriza? Se a crise que afectou os países do Sul da Europa é semelhante, qual a razão para que PS e PSD resistam melhor aos efeitos da austeridade?
No entanto, o PS é o partido que lidera as sondagens. Aquele que surge melhor colocado para chegar ao Governo. Ou seja, a julgar pela sua vida “interna”, os cidadãos estão a fugir-lhe; mas quando se trata de saber quem preferem ver no Governo, os cidadãos portugueses (mais de 35% deles, pelo menos) continuam a mostrar confiança no partido.
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No entanto, o PS é o partido que lidera as sondagens. Aquele que surge melhor colocado para chegar ao Governo. Ou seja, a julgar pela sua vida “interna”, os cidadãos estão a fugir-lhe; mas quando se trata de saber quem preferem ver no Governo, os cidadãos portugueses (mais de 35% deles, pelo menos) continuam a mostrar confiança no partido.
O PS é apenas o exemplo dado, desta vez. O mesmo poderia ser dito para o PSD. E outra coisa para os dois, juntos: o “centro” partidário português continua a merecer a confiança, ainda hoje, de dois terços do eleitorado. E essa é, nos dias que correm, uma originalidade portuguesa. Somos o único dos países afectados pela crise que parece manter intacto o sistema partidário que existia antes da austeridade. Na Grécia, o partido equivalente ao PS, o PASOK, que governou o País em alternância com a Nova Democracia (o partido-irmão do PSD), quase que desapareceu. Em Espanha, o PSOE e o PP, a dupla que exerceu o poder em rotatividade, estão agora ameaçados por dois partidos que nasceram nos últimos anos, o Podemos e o Ciudadanos. E não só: Itália, França, Reino Unido, Irlanda, todos têm novidades partidárias e parecem estar a viver o fim do bi-partidarismo tradicional. E Portugal? Por que resistem melhor os partidos do centro aos efeitos da crise?
“O caso português está a fugir dessa tendência de ruptura na Europa do Sul”, avalia o cientista político Marco Lisi. Nos países onde o sistema político se está a fragmentar rapidamente verifica-se que co-existem duas tendências: “um líder que consegue estruturar uma mensagem, para além das questões conjunturais”, como Pablo Iglesias, em Espanha, ou Beppe Grillo, em Itália; e “uma enorme descrença em relação à elite política”, originada por grandes escândalos de corrupção como os que marcam a actualidade na Espanha ou na Grécia.
“Em Portugal a percepção da corrupção é elevada, segundo todos os indicadores, mas não há aproveitamento político”, prossegue Marco Lisi, nem nos media, nem no surgimento de novos partidos com essa retórica. “Isso deve-se, em parte, ao papel do PCP, que consegue parlamentarizar as atitudes mais anti-sistémicas”, conclui o professor da Universidade Nova de Lisboa.
Lisi não é o único a apontar o PCP como “tampão” ao surgimento de novos partidos, como o Syriza ou o Podemos. Gustavo Cardoso, sociólogo, considera que “o PCP oferece a muitos cidadãos um repositório de revolta e, ao mesmo tempo, de confiança”. Raquel Freire, realizadora e organizadora do movimento 12 de Março - a primeira grande manifestação anti-crise, ainda durante o Governo de José Sócrates, em 2011 - atribui, aliás, aos comunistas o mérito de uma “grande vantagem democrática” portuguesa: “Portugal não tem extrema-direita porque tem um PCP forte, que absorve esse voto de protesto, enquanto em França, por exemplo, há transferências directas de votos entre o partido comunista e a Frente Nacional.”
Mas o PCP não parece estar, como o Syriza, a transformar-se num partido eleitoralmente capaz de discutir a vitória nas próximas eleições. Ou seja, pode conter o surgimento de outras forças, mas não recolhe os votos de descontentamento. João Bonifácio Serra, historiador e ex-chefe da Casa Civil de Jorge Sampaio, vê outra forma de esse descontentamento se manifestar: A abstenção. “A crise do sistema político vai-se manifestar. Pode não dar origem a um Podemos, mas pode resultar numa grande abstenção. Os cidadãos vão penalizar os partidos não votando.”
Essa espécie de revolta silenciosa, que se manifesta não se manifestando, resulta, para João Serra, de Portugal ser, nesta altura, “uma sociedade que envelheceu muito, e muito rapidamente”. Com a demografia a favorecer o “conformismo”, faltam as evidências de que os partidos vejam estes “sinais de grande preocupação”, conclui.
Nuno Garoupa, professor de Direito, presidente da comissão executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também sublinha a “apatia da sociedade portuguesa”. Um sinal disso é a evidência de que “a juventude que emigrou não tem nenhum envolvimento com o País”. Depois, Portugal tem um “espaço público muito viciado, em que 95% do comentário nas TVs em canal aberto, que é o que chega à grande maioria das pessoas, é feito por ex-ministros, ex-primeiros-ministros, muito concentrado em dois partidos.”
Apesar de tudo, afirma João B. Serra, “a Presidência da República foi no passado um factor decisivo para aliviar a pressão, com a legitimidade que tem por ser um órgão de eleição directa e com o poder de orientar o sistema político.” Este é um ponto em que nem a Grécia, com a sua presidência esvaziada de poderes, nem a Espanha, que é uma monarquia, se assemelham a Portugal.
Embora admita que o nosso “semi-presidencialismo” possa “ter sido uma válvula de escape do descontentamento”, Marco Lisi parece pessimista: “Não sei se irá manter-se no futuro…”
Adriano Moreira, fundador do CDS, reforça este tom: “Em toda a Europa decresce a relação de confiança entre as populações e os governos. Uma das razões é a falta de definição do conceito estratégico europeu, e a frequente dúvida sobre quem de facto governa a Europa. O movimento das pequenas pátrias soma-se aos evidentes riscos vindos do ambiente contra a paz. Portugal, uma das Nações mais antigas da Europa, tem um sentido cívico invulgar e um cimento de afetos das diferenças, que mais de uma vez na história se manifestaram. Quem decide, agredindo esses valores, arrisca respostas inconvenientes.”
Os sinais de que podem vir a surgir essas “respostas inconvenientes” estão aí. Gustavo Cardoso cita-os: “Apenas 8% dos portugueses considera que o sistema económico tem sido justo para si. 60% considera que o sistema económico actual afecta negativamente a sua vida pessoal. 83% considera que a distribuição de rendimentos é mais desigual do que na maioria dos países da Europa. 85% considera que precisamos de novas políticas com ideias novas.”
A estes números, Duarte Marques, deputado do PSD, acrescenta um outro, de sentido diferente. Na sua opinião “a principal razão para que em Portugal não tenha surgido nenhum abalo partidário é o efeito do desemprego, que aqui nunca passou dos 20%”, explica. Ao contrário da Grécia e de Espanha, onde os partidos do centro sofrem uma crise evidente graças ao desespero social, “a rede social portuguesa deu resposta às pessoas”.
Os novos partidos
Pode até ser que oito em 10 portugueses queiram novas políticas e ideias. Mas os novos partidos que entretanto surgiram (ver texto nas páginas seguintes) não têm tido o êxito do Podemos, em Espanha. Marinho Pinto, eleito pelo MPT para o Parlamento Europeu, no ano passado, foi o mais bem sucedido, e rejeita qualquer comparação: “As realidades políticas, sociais e económicas de Portugal, Espanha e Grécia são muito diferentes”. Mas aproveita para deixar um recado aos partidos de esquerda: “Quanto ao futuro, acho que nos devemos preparar para um aumento de intensidade da retórica populista e panfletária do esquerdismo caseiro, como aliás sucede sempre em tempos de crise. Espero que o povo português não se deixe enganar pelos programas de ilusões e de fantasias que vão tentar impingir-lhe.”
Rui Tavares diverge da análise de Marinho e vê muitas semelhanças entre os países do Sul da Europa: “A crise europeia, tanto na sua dimensão económica como na crise de representação democrática, é comum a todos. Mas em cada país devem ser encontradas respostas específicas, que nasçam naturalmente, e que não sejam meras fotocópias de algo que teve sucesso no país do lado.”
Outra protagonista de novos projectos políticos é Joana Amaral Dias. Quando lhe perguntamos por que não têm êxito os novos partidos, a sua resposta aponta o dedo à comunicação social portuguesa: “Não existe mais nenhum país que tenha uma comunicação social com tão pouca diversidade como a portuguesa, onde os debates e os espaços de comentário político continuam claramente dominados pelos defensores da austeridade. Esta hegemonia tem dificultado a passagem para os cidadãos de alternativas, outras ideias e novas possibilidades. Por outro lado, em Portugal não surgiu uma alternativa política que desse resposta ao descontentamento manifesto dos portugueses e que os fizesse sentir representados.”
Voltemos, então, à nossa pergunta inicial: Porquê? Raquel Freire conta como, em Espanha, contactou com o líder do Podemos, Pablo Iglesias, e este lhe garantiu, “estamos a fazer o nosso 25 de Abril”. Para a realizadora portuguesa, é isso que justifica o empenho do novo partido espanhol num “processo constituinte” como o que Portugal viveu, logo a seguir à revolução. E essa é, sem dúvida, outra diferença fundamental entre Portugal e a Espanha e a Grécia. A forma como a ditadura foi deposta e todo processo político dos anos seguintes acabou por criar uma constituição que parece ainda hoje unir a esquerda. Dos novos partidos aos velhos, do PCP ao Bloco e ao PS. Este “arco constitucional”, como lhe chama Rui Tavares, será o que impede o PS de ser tão penalizado eleitoralmente com os seus converse grego e espanhol. De facto, quem critica a constituição - como o Podemos faz em Espanha - é o PSD… Sobram, aliás, os exemplos disso, nos discursos de Pedro Passos Coelho sobre “os poderosos” (a “casta” de Iglesias) e nas suas críticas à Constituição.
Ou seja, a esquerda, em Portugal, ao contrário da grega ou da espanhola, está a defender o que conquistou no passado deixando menos espaço para um movimento, como o Podemos, ou até o Syriza, de “refundação” constitucional. Perguntamos a Duarte Marques se esta razão histórica pode também explicar a falta de espaço para um partido novo anti-sistema: “Faz sentido…”
Num ponto, quase todas as pessoas a quem perguntámos coincidem. Esta aparente “saúde” do sistema partidário tradicional português é frágil. Gustavo Cardoso prevê que “se houver um Bloco Central no Governo, após as eleições, corremos o risco de vir a a aparecer alguma coisa parecida com o Podemos”. Nessa altura, adianta, estará cumprida a “profecia auto-realizada” que diz que “eles são todos iguais”.
Nuno Garoupa avança outra conclusão possível: “Não sei se a próxima será a última do ciclo anterior ou a primeira do novo ciclo. Uma coisa é certa: Portugal não vai ficar imune a esta tendência.”