Paulo Pacheco, o filho do escritor, o filho leitor

A entrevista ao filho do Luiz Pacheco é sobre o Luiz Pacheco. Estão à espera da grande figuraça, das pachecadas? Há disso. Anabela Mota Ribeiro conversa com Paulo Pacheco.

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Paulo Pacheco nasceu em 1963. Formou-se em História, trabalha na Câmara de Palmela desde 1987 (actualmente é director de departamento, das áreas financeiras e dos recursos humanos). É casado, tem dois filhos (um de 23 anos, outro de 19). Toda a gente lhe pergunta como é que não saiu maluco. É filho de Luiz Pacheco, é a vez em que Luiz Pacheco se encheu de brio e decidiu que ia educar uma criança. É um homem estável que fala do pai com amor e admiração, e uma réstia de zanga, uma réstia. Encontrámo-nos para evocar o Luiz Pacheco. O Pacheco pai, o Pacheco artista (e aqui se engloba a escrita, a edição, a tradução, a crítica), a figura apetitosa para os jornalistas e para os leitores (“apetitosa” é uma palavra de Paulo). Além da figura apetitosa que fazia manguitos para a fotografia, havia o escritor cru e valente, textos onde se lê a vida sem biombos. O Libertino, o Comunidade, o Teodolito...

Pacheco era uma espécie de urro que vinha de dentro da vida, coisa indómita e inclassificável, uma provocação ao sistema. A rua com o seu nome fica num bairro popular de Lisboa, em Marvila. O Crocodilo Que Voa, um conjunto de entrevistas organizado pelo seu biógrafo, João Pedro George, foi agora reeditado. A biografia recomenda-se: Puta Que os PariuSobre Paulo Pacheco, o “Paulocas”: o pai dizia dele que era um factótum. Um faz-tudo.

Como é que aprendeu a fazer a separação entre aquele que era o seu pai e o iconoclasta Luiz Pacheco?

Vivi com o meu pai dos seis aos 13 anos. Já foi há 46 anos. Não tenho os ódios, as reacções, os afectos tão apurados como tinha. Há uma fronteira muito distinta que é a passagem do filho ao leitor. Foi assim que fiz a história da relação. Conforto-me com ela. Comecei a ler muito cedo e compulsivamente. A minha relação com a literatura foi muito condicionada por ele. Olhar para o pai como se olha para um Mario Soldati, um Cholokov, um Dostoievski...

Olhar para ele como um escritor, objecto de admiração.

Fez toda a diferença. Nessa altura, perdoei ao meu pai o que não correu bem enquanto pai. Passei a aceitar um conjunto de coisas que são inaceitáveis. Como é que eu vinha sozinho, com dois sacos de plástico, vender livros para Lisboa? Largar um puto de oito anos, sozinho, nas Caldas da Rainha, porque se esqueceu dele...

Com que idade começou a lê-lo?

Tinha 18, 20 anos. Quando comecei a descobrir o artista, a relação mudou completamente. Comecei por ler o
Exercícios de Estilo (1971) todo. Depois fixei-me no Comunidade (1964), por razões óbvias.

As suas razões óbvias: é a história do seu núcleo familiar.

Estou lá, é o meu nascimento. Aquilo é a minha terra.

É a sua terra? Como assim?

Tive cinco famílias de acolhimento, dezenas de casas. Não tenho nenhum sentimento de pertença a uma terra. Quando pergunta onde é a minha terra, é aquilo. Naquele texto está tudo o que é relevante.

Não teve uma sensação de estranheza? Ou só teve uma sensação de pertença quando leu o Comunidade? Do ponto de vista familiar, é fortíssimo: estão lá a sua mãe e a sua tia, com quem o seu pai teve uma relação, os seus irmãos/primos.

O
Comunidade é um objecto literário com o qual tenho uma relação afectiva. Mas antes de mais é um grande objecto literário. A minha primeira abordagem: foi como se tivesse lido um livro de que gostava muito. Um Cesare Pavese.

Portanto, a partir daí, não só passou a admirá-lo como se reconciliou com ele enquanto pai?

Sim. Não falávamos das coisas do passado. Falávamos de literatura, da vida dele. E fui ajudando a produzir livros. A fazer a paginação disto, a revisão daquilo. Coisas que eram cumplicidades nossas e tarefas nossas. Ele foi viver para Setúbal, depois esteve [num lar] em Palmela uns tempos. Fartou-se de produzir livros da Contraponto.

Ele referia-se a si como o “Paulocas”. Como se fosse o filho dilecto.

Ter encontrado um artista de que gostava permitiu-me perceber as opções dele, as consequências que as opções têm, o risco, a diferença. Acabo por ter uma relação com o Pacheco-pai, que andou comigo às costas — ou eu andei com ele às costas — não sei quantos anos, e com o Pacheco-artista, para quem se olha com admiração, com estima. 
Em relação ao folclore, também aí tudo se resolveu. Ele e eu sabíamos que aquela história era uma grande invenção, mas até era gira [risos].

Algumas histórias, inúmeras histórias, que circulavam sobre o Pacheco eram uma espécie de enredo, para divertir o pagode e a ele mesmo?

Sim. E não eram muito relevantes. Também o mataram três vezes! Uma vez estávamos em Massamá, entraram em casa: “O teu pai morreu!” E o contraponto? Eu sei que as pessoas ficam seduzidas pela historieta, pela coisa fantástica, mas vejam tudo o resto.

O contraponto é a força do escritor, a crueza da escrita?

Agora falo como leitor e conhecedor. O meu pai escreveu pouco, mas escreveu coisas muito acertadas e tendem a desaparecer no meio do folclore. Fez aquela história do Voltaire, é verdade, mas tem traduções fantásticas. Passei fome em Massamá para ele poder traduzir umas porcarias.

Qual é a história do Voltaire?

Foi uma tradução em fatias. O Bruno da Ponte agarrou no Dicionário Filosófico de Voltaire, dividiu em três, uma para ele, uma para outro, uma para o meu pai. Cada um fazia uma parte e depois juntavam tudo. Aquilo foi traduzido pelo meu pai nas Caldas da Rainha, numa situação já de miséria, muito alcoólico. Acabou os prazos todos, a última parte traduziu directamente do livro. Assinalou a vermelho as palavras que não sabia bem, para ir ver ao dicionário. E nessas coisas estavam “merda”, “porra”. Mandou aquilo e esqueceu-se... Há uma edição do Voltaire em que aparece: “Era o que o autor diria, que seria uma verdadeira sandes de merda”!

Porque é que acha que era um excelente tradutor? Traduzia sobretudo do francês e do espanhol.

Era exigente, sabedor de que a tradução é a reinvenção de um texto e que é preciso saber como é que se reinventa. Trabalhador, se o texto remetia para um conjunto de informação que não sabia, ia à procura. Comprou uma versão russa do Tchekhov quando fez a tradução do
A Minha Mulher porque sabia que em todos os países os tradutores são mal pagos e esfomeados. E quando a fome começava a apertar e o tempo a acabar, comiam capítulos e punham páginas em branco. O meu pai comprou a versão russa só para contar os parágrafos, para verificar se a versão francesa que tinha como objecto para traduzir batia certo, ou se aquele tradutor francês não teria, com a fomeca, queimado uns paragrafozitos.

A parte folclórica tende a abafar essa preocupação, o brio. Na escrita, na tradução, na edição.

Sim. Outro dia, ao fazer uma pesquisa, no Google, apareceu uma tese de mestrado de uma rapariga, que não conheço de lado nenhum, sobre a crítica literária do meu pai. E aponta para um texto que eu não conhecia e que é um texto fundador da crítica literária em Portugal. Aquilo não é duas bicadas no Urbano [Tavares Rodrigues] porque está chateado. É uma reflexão profunda sobre a função social do crítico literário. E um programa completo sobre o que o crítico literário deve fazer. O que é que vai aparecer? Era um tipo horroroso, dizia mal de toda a gente.

Aparecem muito os ódios de estimação. Ao Urbano, ao Vergílio Ferreira, ao Ary dos Santos. Sempre na base da embirração.

O meu pai, como editor, como crítico literário e como escritor, tem um papel importante na cultura portuguesa. E marcou pontos essenciais. Num país em que ninguém revela as suas intenções — por cobardia, por cálculo —, ter um gajo que diz o que pensa... Não é que o que ele diga seja verdade, seja justo. Não, é dizer o que pensa. Isso é deslumbrante. E continua a fazer muita falta.

Ele parece ter vivido contra a vida. No sentido de fazer o movimento ao contrário. E de não se importar de estar sozinho nesse movimento ao contrário. Contra o modo burguês, contra o conformismo, contra o respeitinho.

Completamente. Há uma dimensão positiva, o da pessoa que, correndo todos os riscos, com todo o desassombro, e muitas vezes acertando, diz o que pensou maduramente. Há também uma dimensão mais maldizente, da busca do conflito inútil. Dizia: “Preciso destas guerras.”

Precisava para quê, para se sentir vivo?

Para estar vivo. Guerras com as senhorias. Viveu anos em quartos. Aquilo começava sempre muito bem. “A casa é óptima, tem excelente luz, a senhora é simpatiquíssima.” Ao fim de três semanas, ligava: “Vou matá-la.” E contava todos os pormenores dos conflitos. O conflito inútil, o reproduzir maledicência de terceiros (“Se me estão a dizer, é porque é verdade”), nunca percebi se era ingenuidade ou se era táctica. E nunca percebi aquela guerra com o Cardoso Pires.

Quando entrevistei Luiz Pacheco, em 1998, falámos de Cardoso Pires, que tinha morrido recentemente. Disse que tinham sido colegas de liceu e seguido percursos opostos. Reproduzo: “Uma vez, encontrei na Estrela o Saramago, que vinha do hospital, e disse-lhe: ‘Não te deixes ir abaixo que temos de ir ao funeral do Cardoso Pires’.” Podia ser inveja? A inveja podia ser um motor para ele?

Não sei se tinha muito tempo para isso. A inveja implica uma disponibilidade para concorrer com o outro. Nunca o vi concorrer com ninguém. Concorrer no sentido de fazer o que o outro fez e melhor. 
Parte dos conflitos com a geração dele — não sei se com o Pires é isso — resulta de um compromisso que foi abandonado. Uma espécie de traição. Há um aburguesamento, um acomodamento dos outros, e ele diz: “Então, isso não pode ser, o que é que a gente combinou?” Aquelas coisas de o Mário Cesariny começar a ser artista mainstream, para ele, não batiam certo.

Na mesma entrevista, dizia do Cesariny: “Nós tínhamos no grupinho umas certas regras em relação ao meio literário, em relação ao surrealismo, e ele entrou na grande bagunça, tornou-se pintor! Perguntarem-me porque é que eu me zanguei com o Cesariny, tem alguma coisa a ver com paneleiragem? Era uma questão de ética, estética, camaradagem, de ele ser um tipo exigentíssimo, contra o mercenarismo na arte e essa coisa toda.”

Nessas coisas, o homem era terrível.

E, à partida, como é que lidava com as pessoas? Aberto ou desconfiado?

Encontra-a, não a conhece de lado nenhum, acha-lhe piada: a maior das confianças, a maior das aberturas. Os meus amigos adoravam o meu pai! Estavam com um tipo escritor, falavam com ele, ele perguntava-lhes isto e aquilo.

Ele perguntava aos outros o que é que eles pensavam?

Sim, claro.

Não é nada claro. A maior parte das pessoas não pergunta aos outros o que é que pensam.

Dava livros. Depois estava ali a olhar para si, a descobrir os pequenos defeitos. Os lapsos de linguagem, as coisas comportamentais. De repente, era um juiz a descascar todas as suas deficiências de humano. Por exemplo, na minha casa nova, chegou lá e descobriu que eu tinha posto a biblioteca no sótão. Crime. Nunca mais lá foi. Os livros não se põem no sótão. Os livros têm de estar na sala.

E com as coisas de carácter?

Todos temos pequenos deslizes de carácter, pequenas mentiras. É assim a vida do quotidiano. Ele estava atentíssimo a isso. Às vezes, era um bocado chato. Especialmente quando entrava na dimensão aristocrata.

Nasceu ou não nasceu numa família aristocrata? Ele diz que não, que era uma casa de tesura, mas a armar ao pingarelho.

Claro. A informação que tenho disso é lateral, de conhecer a história do meu avô paterno. Havia um livro da família que remontava ao século XVIII, que passou de geração em geração. A família é de militares (generais, coronéis) ou poetas. Descambou tudo na geração do meu avô. (O meu avô dizia que era um poeta intimista. Fui à Biblioteca Nacional pedir o livro, era um poeta muito intimista, não se percebia nada [risos].) O meu avô queria ir para a carreira diplomática. Faz os dois primeiros anos do curso superior de Letras, o que coincidiu com a [Segunda] Guerra. Ninguém queria gente para a carreira diplomática. Quando a guerra acabou, já não foi acabar o curso. Fez aquela coisa nacional portuguesinha: arranjar um emprego. Mas era melómano. Organizava óperas no Coliseu, era músico amador e maestro. E vivia no mundo dele, de
bon vivant. Também li a autobiografia dele — o primogénito fazia a autobiografia. Aquele homem faz todo o século XX, morre em 1959 ou 60, não tem uma referência à família, ao país, ao mundo!

O que é que fazia, afinal?

Acaba como oficial administrativo no Instituto Nacional de Estatística a fazer contas. A família vem de uma média burguesia rural. Tem uma casa, onde o meu pai nasceu, na Estefânia. Vive de pequenos rendimentos e da miséria nacional. Havia três empregadas lá em casa, mas nunca se pagou ordenado. Trabalhavam por roupa, cama, comida. Com poucos recursos, podia-se dar um ar de rico.

E a aristocracia, algum fundo de verdade nisso?

Fala-se de que havia uma descendência brasonada. O meu avô foi a Sintra buscar o brasão, mandou fazer um anel de ouro e platina. Claro que no dia seguinte estavam filho e pai a pôr aquilo no prego. Comecei a relacionar-me com o prego com o meu pai (púnhamos tudo no prego), mas o prego já era uma tradição familiar. Os castiçais iam diminuindo ao longo do mês, depois voltavam a aparecer.

O seu pai tinha gosto nessa ascendência aristocrata?

Não. Teve uma boa educação, muito clássica, e uma vantagem, ou desvantagem: ser muito doente. Faltava muito às aulas, mas tinha uma biblioteca fabulosa do meu bisavô. Sabia muito de latim, muito de português. Teve muito tempo para ler. Passava horas e horas deitado. Não imagina a capacidade de leitura dele. Absurda, doentia. E atento, sempre com a canetinha na mão para corrigir, mesmo que fosse um livro de cobóis. Ou o diário do Vergílio Ferreira, todo ele riscado.

Tinha um sentimento de superioridade?

Tinha brio profissional: “Eu sei escrever bem.” E dizia: “Eu tive 18, o Urbano teve 12.” Com o Vitorino Nemésio. Tinha consciência da qualidade intelectual de que era portador. E tinha consciência, ou achava que tinha, ou queria ter, de a sua opção de vida ser uma opção de coragem. Em contraciclo com o resto. Toda a gente quis arranjar-se, resolver-se. 
Aquela boca dele: “Só entrei para o Partido Comunista quando isto começou a correr mal”, é verdade. O meu pai nunca entrou num partido antes do 25 de Abril porque não se achava digno nem capaz. Dizia: “Sou torturado e morro, não tenho hipótese nenhuma.” Tinha receio de falhar.

O lado político, comunista, era muito importante nele?

Não activa, mas filosoficamente, sim.

Tinge isso com folclore quando diz que quer ser enterrado com a bandeira do PC, que quer ter um enterro como o Ary.

E queria. Tinha acesso às obras completas do Marx e leu-as. Esteve envolvido no MUD Juvenil, nas candidaturas do Humberto [Delgado], do Norton de Matos. Para ele, e para a geração dele, o partido era o Partido Comunista. Não havia outro. O meu pai é da geração morta, nasce com o regime e vai vivendo com o regime. Tem uma leve esperança em 45, com os Aliados e a derrota das ditaduras, e depois aquilo tudo se esvai. O Salazar consolida-se. O meu pai nunca acreditou que em vida visse o regime cair. Quem começa a acreditar é a geração dos anos 1960, que vai para Paris, que regressa.

Como foi no 25 de Abril?

Nessa altura, eu vivia com ele. Comprava os jornais todos! Chegava a uma banca e comprava
O Diabo e o Luta Popular. Íamos aos comícios todos. Do MES, do MRPP, do PCP, do PS. Ou seja, uma enorme sede de perceber o que era isto. Uma descoberta incrível. A seguir tem uma grande desilusão. Vê toda a intelectualidade entrar [para os partidos]. “Vão à procura do empregozinho.” Aí, recolhe-se. “Não, não tenho nada a ver com isto.” Quando cai o muro de Berlim, e quando o interesse pelo emprego desaparece, diz: “Já posso ser [do partido].”

Formalmente, só se filiou depois de 1989?

Sim. É uma afirmação política. Claro que não valia a pena fazerem coisas como aquela de o convocarem para trabalho de célula [risos]. O meu pai começava a imaginar: “O quê, estão a contar que eu vá colar cartazes, estão malucos ou quê?” Era a delícia dos controleiros que cobravam as quotas, porque queria pagar as quotas. E participava nas coisas políticas em que podia participar. Assinar papéis, votar, tomar posição.

O não compromisso, essa atitude de vida ou morte, era marca dele. O que é que estava no cimo disso, a literatura? A família não era.

A família era numa dimensão utópica. Ele gostava de ter a família do
Comunidade, e incentivava isso. A família: somos oito filhos, três ninhadas. O meu pai casou na prisão. A primeira mulher do meu pai, a Maria Helena, era uma das empregadas não pagas lá de casa. Os dois eram menores.

Ela tinha 15 e ele ainda não tinha 18.

Uma coisa assim. Um tio dela descobriu a coisa, achou que tinha ali um grande negócio. Para quem está de fora, era um menino rico a dormir com a empregada. E o meu pai foi preso, com a condescendência do meu avô, que achou que não tinha nada a ver com aquilo. O meu pai nessas coisas era muito recto: pediu a emancipação, para não afectar a família. A conclusão do juiz: ou casa ou fica preso. Levou dois anos de pena suspensa e casou no Limoeiro.

Mas foi só um beijo, como ele diz?

Não, claro que não.

Ela estava grávida?

Estava quase. [O beijo] é o segundo processo do meu pai, com a Maria Eugénia. Deu um beijo na rua, teve um processo em tribunal e foi preso por isso. Uma coisa estúpida. No caso da primeira mulher do meu pai, não, já iam muito avançados. Casaram, tiveram três filhos.

Segunda mulher.

É a minha tia Maria do Carmo. Foi empregada do meu pai, quando vivia com a mulher e os três filhos. Depois fugiu com ela [tia] e teve dois filhos. E depois foi à terra da minha mãe, acompanhar a minha tia, futuro marido que vai visitar os sogros, e conheceu a minha mãe. Engravidou a minha mãe, nessa altura com 14 anos. Nasci eu.

A sua mãe tinha 15 anos quando nasceu. E o seu pai, tinha quantos?

Tinha 38. O único cimento que une estes rapazinhos e estas rapariguinhas é o meu pai. E ele fomentava esse cimento. Era uma coisa que eu odiava!, não tinha dinheiro para comer, mas ia pôr no prego a máquina de escrever para comprar uma prenda, 500 ou mil escudos, porque fazia anos um irmão meu. Mandava um vale. A história do
Comunidade é assim mesmo. “Eu, chefe de família, com o meu rebanho em cima da cama.” Sei lá como é que isso se ia concretizar. A utopia não tem que se justificar.

É diferente ter um filho aos quase 40 anos ou aos 20.

Eu fui a experiência dele a querer ser pai. O Pacheco da minha irmã mais velha não é o meu Pacheco. Apercebi-me disso pouco tempo antes de o meu pai morrer. A minha irmã mais velha — mais velha que a minha mãe —, a Maria Luísa, quando ele estava em casa do meu irmão João Miguel e precisava de ajuda, ia lá limpar, dar banho. Eu às vezes vinha trazê-la a Lisboa, íamos conversando. A minha irmã tratava o pai por paizinho. “O paizinho era muito exigente com a roupa. Se uma camisa não estivesse bem passada, mandava ir buscar outra.” Eu conheci um tipo que não comprava roupa. As meias, as calças, grandes, pequenas… O pior que podia acontecer: vestir as calças do Artur Ramos, que dobravam [em largura]. Não conhecia aquele pai que dizia: “Ninguém começa a comer sem estarem todos à mesa.”

Resquícios da educação burguesa, aristocrata...

É outro tempo histórico. Não sei explicar como é que uma personagem que se vestia escrupulosamente (quando era inspector de espectáculos, ia de gravata, fato completo), que pôs os meninos no Liceu Francês, como é que este pai é o mesmo pai que dormiu comigo nas escadas. São duas personagens completamente diferentes.

Não consegue perceber como é que se faz a transição?

Não faço ideia.

O álcool…

Pode ser indicador. Mas a ruptura é muito grande.

Ou seja, pode ser motor de degradação, mas não único.

Não sei. Se dou muita importância à gravata e de um dia para o outro deixo de usar gravata, há uma ruptura. Deixou de ser importante? Como é que essas duas personagens de repente saem de um lado para o outro?

Acha que houve algum momento em que ele enlouqueceu?

Andou sempre nas fronteiras. Ele próprio reconhece isso. Não se espeta uma faca na perna de um filho porque não se está sóbrio. Não é são. Mesmo que se esteja com os copos, não é uma coisa que se faça.

Tinha que idade quando ele lhe espetou uma faca na perna?

Onze. Há sempre uma insanidade ali metida. Aceite, tratada. É o primeiro da geração dele a reconhecer que o álcool é um problema. Só muito perto dos 80 é que se sentiu livre.

Mas o álcool é uma coisa e estar na franja da loucura é outra.

O álcool potencia, mas tem de se ter alguma coisa lá.

Alguma vez falaram sobre a faca espetada?

Que me lembre, não. Deixei passar. Ele também nunca perguntou.

De quem é que ele gostava? Por quem é que sentia amor?

Pelas três mulheres com quem viveu, sentiu. Teve outras paixonetas, não conheço as pessoas. E pelos filhos, sim, claro. Há um episódio muito giro. Fui conhecer os meus avós maternos, que são de uma aldeia no meio da serra da Sertã. Uma coisa que nos anos 60 era a Idade Média pura e dura. Tinham muitos filhos para ter mão-de-obra para cultivar os campos. Fui vê-los quando a minha mãe deixou lá ficar o meu irmão mais novo. O meu pai soube. Chego à Macieira e o meu avô, que nunca tinha visto na vida, exibia um casaco de bombazina. E agradecia-me muito, dava-me muitos beijos. Sabe porquê? Porque dias antes o meu pai agarrou numa cesta, andou a comprar roupa, pôs lá dentro um envelope com 500 paus e mandou para o meu avô em meu nome. “Então, ias ser recebido pelos teus avós, tinhas de ser bem recebido.” Ele tinha uma admiração enorme por eles, gente do campo.

Pergunto pelas pessoas de quem gostava porque parece sempre muito egocêntrico, megalómano e tomado pela ideia de que a vida é para viver consoante se é, sem condescendência. E não há nada que o ponha em causa, nem o amor por um filho.

Não sei como classifico isso, mas é assim mesmo. Aí é que me reconciliei. Isso que estou a contar, para um filho, é uma tragédia, para um leitor, é uma maravilha. “Este gajo tem uma pinta do caraças, não perdoa nada a ninguém.” Como filho, lá no meio, não acha piada nenhuma.

Refere-se especialmente a esse período em que viveram só os dois, entre os seis e os 13. Mas viveu com ele antes disso?

Vivi com o meu pai até aos três anos.

Nessa fase, que corresponde ao Comunidade, vivia também a sua tia com os seus primos/irmãos?

Éramos os que estão aqui [mostra uma fotografia em que está a mãe com os filhos e os primos/irmãos]. Depois vem
O Caso das Criancinhas Desaparecidas. É essa comunidade a desaparecer. Sai um que vai para a Casa Pia, sai outro que é adoptado. Quando a minha mãe fugiu com o meu pai, os meus avós puseram um processo em tribunal por rapto e estupro. Esse processo nunca parou. Houve uma decisão do tribunal da Sertã, foi preso. Eu tinha três anos.

Separámo-nos todos. A minha mãe fica com o meu irmão mais novo, que vai depois viver com os meus avós. E depois casa e tem outros filhos, faz a vida dela. Eu venho para a casa da minha primeira família de acolhimento. Quando o meu pai saiu da prisão, foi-me buscar. Vivi com ele durante uns períodos em quartos, em Lisboa. Até que é preso outra vez. Fui viver com o poeta Fernando Saldanha da Gama, seis ou sete meses. Voltei porque o meu pai saiu e me foi buscar. Depois foi preso outra vez.

Sempre pelo mesmo motivo?

Variações. Fui viver com uma família, na Costa do Castelo, onde fiz a 1.ª classe. Era uma família deliciosa, mas não podiam continuar comigo. Começaram a tratar do processo para eu ir para a Casa Pia. O meu pai soube e conformou-se. E tudo rebenta porque o [editor] Vítor Silva Tavares lhe dá uma enorme descompostura. Que ele era um incapaz, que ia mais um filho para a Casa Pia. Encheu-se de brio: “Vou educar este filho.”

É então que vão para Massamá?

Fomos a Tercena e fomos a Massamá ver casas. Fomos para Massamá porque era 20 paus mais barato. A casa não tinha água, não tinha luz, não tinha mobília. Mas não podia contar nada a ninguém. Se contasse em Lisboa que havia aquela casa, toda a chusma ia lá parar. Como, aliás, aconteceu. Ao fim de seis meses, já estava a casa cheia de bêbedos e malucos, e de confusão.

Como é que se safaram?

Funcionam aquelas coisas de solidariedade à portuga. “Vizinho, não tem luz? Faz-se uma ligação clandestina.”

Ele escrevia todos os dias durante esses anos?

O diário tem isso tudo relatado. Quando estava com os copos, e estar com os copos podia durar semanas, não escrevia. Mas o regresso ao diário era a primeira terapia.

Escrevia para publicar?

Não. O meu pai teve sempre grande preconceito em publicar o diário porque o diário não foi feito para isso. Se se é um autor consciencioso e respeitador do seu público, tem de se ter cuidado com o que se publica. “Quem é que quer saber de 50 ressacas?”

Percebia que nem tudo é bom. Há uma parte no diário que é terapia, mas nem tudo é bom para ser publicado.

Aquilo para ele era impublicável.

Em suma, viveu nessa casa com o seu pai entre os seis e os 13. Que aventura. Memórias?

O meu pai era um menino que tinha uma empregada para o vestir. Não sabe o que é um fogão. Comprámos uma frigideira para fazer uma omeleta. Primeiro obstáculo: quanto sal é que se põe numa omeleta? [risos]. Dedução cartesiana, uma colher de sopa de sal por ovo.

A literatura, a cultura, metia-se em expressões do dia-a-dia, em coisas que ele dizia? Ocorreu-me isto por causa da sua dedução cartesiana para falar de sal e ovos.

Dependia da pose. Se estivesse na dimensão aristocrata, era insuportável. Era capaz de começar a fazer citações de livros que nunca se lêem...

Mas que ele tinha lido.

Tinha lido tudo, mais que uma vez. Nisso, sigo-o, gosto de ler um livro mais do que uma vez. A primeira leitura é sempre diferente, e há livros a que convém regressar. 
E noutras alturas não fazia citação nenhuma. Se estivesse numa de disparatar, disparatava. Ordinarice, linguagem vulgar.

Sobretudo nas entrevistas percebe-se como gostava de fazer “pachecadas”, de usar linguagem vulgar. A conversa do sexo era uma espécie de arma fácil para perceber quem é que tinha à frente. Nessa entrevista que lhe fiz, decidiu descrever o que era um broche de pino.

 Era para a provocar. Para o jornalista, podia ser apetitoso. Mas o meu pai não gostava de dar entrevistas, tinha medo.

Medo?

A primeira entrevista, aquela do
Expresso [10 de Junho de 1988], demorou meses a negociar. E só se deixou seduzir quando disseram que pagavam. “Então quanto é que pagam?” E os gajos do Expresso: “Quanto é que você quer?” Tinha um enorme receio de que a sua própria natureza levasse a entrevista para o disparate. Para lá da raiva porque a transcrição nunca saía muito bem. N’O Uivo do Coiote (1992), as entrevistas são todas revistas por ele. E censuradas, alteradas. Não é só corrigir o vocábulo que foi mal interpretado. “Já agora, ponho isto um bocadinho melhor.” Ir para o disparate era um jogo entre o entrevistador e ele próprio que servia para não estar com grandes conversas. Era completamente infantil.

Na minha entrevista, diz: “Se leres O Libertino (1961), não há ali nada a não ser maluqueira na minha cabeça. Há uma punheta e mais nada.” Apesar do espalhafato, o sexo era um tema central?

O sexo é central porque é um acto de revolta e de contestação ao regime — pela cultura. Não se pode fazer uma contestação pela política, porque se tem cagufa. O regime detesta o sexo, vamos falar de sexo. O
Comunidade é para ser um texto ofensivo, um texto antiburguês. “Somos pobres, os putos dormem ali numa gaveta, cheira a mijo na cama, mas somos felizes. Não precisamos de ter emprego.” É uma série de bocas a um conjunto de malta, ao escritor que também era funcionário público das nove às cinco. Ou professor, como o Vergílio Ferreira. Nenhum deles apostava na literatura como projecto de vida. O Comunidade é para dizer: “Somos felizes. E, se quiserem abdicar das vossas segurançazinhas, acabam aqui.”

Até onde estava disposto a levar a provocação?

A afirmação que irritou imenso o meu pai, do Cardoso Pires: “Publicas isso [
O Libertino] e és logo preso.” Mas era essa a ideia! Se não se pode dar um beijo numa rapariga na rua sem ir para o calabouço e levar dois anos de pena suspensa, fazer uma coisa em que se diz mal da Santa Madre Igreja, fazer referência à guerra em Angola, falar em panasquices — que era uma coisa que não existia, não havia homossexuais em Portugal...

O texto era uma forma de combate.

Sim. Faz-se o combate ao regime pela cultura e contra os bons costumes. E faz-se de corpo inteiro. Naquilo que se escreve, na forma como se vive, naquilo que se diz. E sujeitamo-nos às consequências.

Qual é o mais provocador dos seus livros?

O Libertino
. Não foi escrito para ser assim, inicialmente. O Comunidade é um texto orquestrado, foi escrito e reescrito, até à exaustão. Cada personagem é um instrumento. O Libertino, se for ver o manuscrito, está exactamente como foi publicado. Foi escrito num jacto, num café. E era um exercício de escrita directa.

O Teodolito (1962) também foi de jacto?

Não, é um texto orquestrado. Com uma provocação sexual brutal.

O grande tema dele é a morte ou é a provocação (usando o sexo)?

Não sei como é que a morte entra aí. A morte é o medo. Para perceber a morte, tem de perceber a doença. Tinha asma de três origens, tinha alergias que geravam ataques de asma fortíssimos. Confrontou-se com a morte quase toda a vida de adolescente, de adulto. Um ataque de asma é uma coisa violentíssima. Não conseguir respirar horas e horas seguidas.

A morte, no Comunidade: “Não me deixes morrer, não deixes. (...) Aperto-lhe a mão com força, e acabo às vezes por adormecer assim, quase confiante, agarrado à sua vida.” N’ O Teodolito: “Vamos morrendo uns para os outros. E também vamos morrendo dentro de nós. Dou os bons-dias a tipos que já matei; passo na rua por alguns satisfeitos fantasmas que se espantam (gritam-me: ó pá, ainda és vivo?).”

O medo da morte era uma coisa que todos os asmáticos tinham. Hoje em dia já não, agarram numa bomba e está feito. Outra coisa distinta, e que está presente na intervenção do meu pai: vamos lá ser um bocadinho modestos, quando se morrer, acabou. O termos direito à história, que é uma coisa que marca muito os artistas, o meu pai tinha um profundo desprezo. Sabia que é falso, é muito efémero. Não somos assim tão importantes. O que fazemos e escrevemos também não.

O seu pai falava da infância dele? No fundo, estou a perguntar se falava de um tempo em que foi feliz.

Nunca foi muito feliz. É filho único. Muito frágil fisicamente. Muito tímido. Não tinha grandes amigos, a não ser os da escola.

A mãe gostava dele?

A minha avó era maluca. Tinha alucinações, coisas místicas. E a relação entre os meus avós não era grande coisa. O espaço de brincadeira do meu pai era mesmo a biblioteca do avô.

É aí que ele se forja, na biblioteca.

É. É o seu espaço de descoberta. Tem uma profunda admiração pela cultura alemã, pelo Thomas Mann, pelo Stefan Zweig. Na Segunda Guerra, era germanófilo, levantava-se e fazia a saudação. Quando acaba a guerra e se percebe o que é a Alemanha e o que é o nazismo, começa a envolver-se nos movimentos de contestação à guerra.

Ainda sobre o medo de morrer. Foi ficando cada vez mais doente, percebeu que ia morrer...

Ele quis morrer. A partir de uma certa altura, desistiu. Na última semana, já não tinha pachorra. Via mal, não se conseguia mexer.

Já não era medo, era fartura.

Era. Que se lixe.

Ele falava disso?

Comigo, um pouco. Mas não vou contar.

É um tipo muito estável.

A coisa podia ter corrido pior. Vou tentando perceber por que é que não correu pior. Houve três coisas que me agarraram. Uma, sempre soube a verdade. Sei quem é a minha mãe, sei que as famílias com quem vivi não eram a minha família biológica. Segunda, nunca fui rejeitado. A rejeição é das coisas mais terríveis numa criança. Em todos os sítios onde estive fui bem recebido. Fui mais um lá de casa. “É o filho do Pacheco que temos de ter cá em casa, é um miúdo porreiro.” E a terceira, a resiliência que fui construindo perante as tragédias do quotidiano. Com essas três ancorazinhas, safei-me.

Alguma vez o seu pai teve um gesto mais lamechas, assim do estilo de dizer que gostava muito de si?

Fisicamente não me lembro. Mas tenho cartas belíssimas dele. [pausa] Não tenho dúvida de que gostava imenso de mim.

Ele soube que aquela aventura em Massamá foi uma coisa muito complicada. Acabei aos 12 com uma tuberculose por subalimentação e uma hepatite C. Aquilo era uma javardice. Brinco com esta história das Caldas da Rainha, mas podia ter ficado na rua. Levou três ou quatro dias a lembrar-se de onde é que eu estava.

Também há memórias boas desse período ou não?

Houve momentos em Massamá em que estávamos sozinhos e que éramos grandes companheiros. Grandes passeios.
A posteriori posso dizer isto. Na altura, não apagava o resto. Até começar a lê-lo, era: “Tirem-me o homem da frente.”

É doloroso para si falar dele?

Tem dias. A seguir à morte custou-me um bocadinho. Depois, fui-me habituando. Ainda não consigo ouvir a voz. Tenho muitas cassetes, mas não consigo. Já consegui começar a recuperar espólio que tinha para lá e que se estava a estragar. Já se vai vivendo.

 

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No inicio dos anos 70, em Massamá: O poeta António José Forte, Luiz Pacheco e o "Paulocas" Aldina Costa
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