As contaminações tropicais de Conceição Silva
Faz hoje 40 anos que o arquitecto Conceição Silva chegou ao Rio de Janeiro fugido de Portugal na sequência de um estranho atentado. Começa aí uma segunda vida e uma obra que ainda é pouco conhecida.
O arquitecto juntava-se assim, com a sua segunda mulher e a filha de ambos, à horda de portugueses que haviam abandonado Portugal no último ano, em fuga de um país em tumulto, na sequência da Revolução de 25 de Abril. Contrariamente à maioria, não pertencia a uma das poderosas famílias que tinham até então dominado a economia portuguesa, nem estivera ligado ao governo autoritário que governara o país durante mais de quatro décadas. Pelo contrário, as suas simpatias políticas estavam do lado da oposição.
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O arquitecto juntava-se assim, com a sua segunda mulher e a filha de ambos, à horda de portugueses que haviam abandonado Portugal no último ano, em fuga de um país em tumulto, na sequência da Revolução de 25 de Abril. Contrariamente à maioria, não pertencia a uma das poderosas famílias que tinham até então dominado a economia portuguesa, nem estivera ligado ao governo autoritário que governara o país durante mais de quatro décadas. Pelo contrário, as suas simpatias políticas estavam do lado da oposição.
Mas Conceição Silva era um arquitecto incómodo. Incómodo para os seus pares que, no ambiente altamente politizado que antecedeu a revolução, punham em causa a organização de tipo empresarial daquele que era talvez o maior atelier do país, com cerca de 150 colaboradores e uma carteira de encomendas invejável, dentro de uma classe privilegiada, com clientes tanto na esfera económica, quanto cultural, mas também política, como António Valadas Fernandes, dono da construtora Engil, a fadista Amália Rodrigues, ou Rogério Martins, secretário de Estado da Indústria de Marcello Caetano.
Conceição Silva era o arquitecto de quem se falava. O seu atelier não era tão experimental quanto, por exemplo, o de Teotónio Pereira, mas formou toda uma geração de arquitectos dentro de um espírito de rigor e princípios de qualidade. Foi porém o envolvimento na promoção imobiliária que causou a maior celeuma e também a evolução do atelier para um conjunto de empresas acabou por colocar Conceição Silva lado a lado com os então designados “capitalistas”, chegando a participar com as principais figuras dos grandes grupos económicos no MDE/S, grupo de reflexão que elenca um conjunto de medidas para a retoma económica no período conturbado do pós-revolução.
A participação de Conceição Silva na Torralta, sociedade promotora do Complexo Turístico de Tróia, não só como projectista, mas também como accionista e com ligações à empresa de construção, poderá estar no cerne do atentado que sofreu à porta de casa, em Janeiro de 1975, e do qual ainda se desconhecem as razões.
Incontornável em Portugal, não só pelo modelo único que imprimiu no exercício da profissão, mas sobretudo pela contribuição das suas obras para a História da Arquitectura, no Brasil não deixou marcas. Ou deixou? Que lugar lhe caberia no seio da produção arquitectónica brasileira, num país em que a modernidade também foi talhada com a contribuição de arquitectos estrangeiros, num país imenso, em escalada pelo progresso, suportado pelas políticas desenvolvimentistas, desde Getúlio Vargas a Juscelino Kubitschek.
Alugar um estirador
Conceição Silva chega no entanto ao Rio de Janeiro numa altura em que entre política e arquitectura se estabelecia uma relação menos linear, num período de endurecimento e forte repressão da ditadura brasileira, na sequência do golpe militar de 1964. Num país que andava à procura de uma saída para a crise da arquitectura moderna, que até à construção de Brasília, na década de 60, tinha colocado a sua produção nas bocas do mundo, despontavam então novos e diversos caminhos. O quadro de referências ia do engagement político do brutalismo paulista, liderado por Vilanova Artigas, a um regionalismo que procurava resgatar a arquitectura indígena, sobretudo em contextos mais secundários, como é exemplo, na Amazónia, a obra notável de Severiano Mário Porto, mas também, no Rio de Janeiro, do mais artesão Zanine Caldas. Além de algumas incursões pelo pós-modernismo e de uma extensa arquitectura internacional impulsionada pelo crescimento económico, ao serviço das grandes corporações ou da promoção imobiliária, mas que não terão retido a atenção do arquitecto português.
Os primeiros tempos são de grande sacrifício pessoal e profissional, a viver num pequeno apartamento de três assoalhadas partilhado entre várias famílias de portugueses e a alugar um estirador no atelier de um colega brasileiro, onde Conceição Silva será notado pelas suas exímias capacidades de desenho. Meses depois, consegue arrendar um pequeno atelier com José-Augusto Pinto da Cunha, vindo de Angola e recomendado pelo amigo comum Maurício Vasconcelos (sócio de Conceição Silva entre 1965 e 1967 e com quem fará o Hotel da Balaia), seu sócio e co-autor em toda a obra brasileira.
Em termos quantitativos, a produção do atelier brasileiro constitui um corpo suficientemente amplo e coerente, com a construção de cerca de meia dúzia de casas unifamiliares, ainda hoje bastante bem conservadas, essencialmente nas zonas de expansão da cidade, em bairros de eleição da burguesia, a Oeste de Copacabana, entre o Leblon e a Tijuca, outros tantos estabelecimentos comerciais, uma unidade industrial para a Sombra, empresa portuguesa de mobiliário de exterior que se instala no Rio, e pelo menos quatro conjuntos residenciais para os quadros da multinacional de pneus Michelin, encomenda ganha em concurso – fora a obra não construída. Pese embora a excentricidade do bairro onde se instalam, nas proximidades da fábrica, no Campo Grande, zona distante da cidade consolidada e sem visível planeamento, e o pragmatismo implícito a um programa de habitação colectiva para alojar rapidamente centenas de colaboradores, estes conjuntos, que nalguns casos chegam a ocupar quarteirões inteiros, conferem um novo sentido ao espaço urbano. Importam aqui as consequências que os edifícios têm sobre a cidade, enfatizando e qualificando o espaço colectivo, cosendo e ligando as diferentes ruas, criando praças nos interstícios das construções. Também o piso térreo dos edifícios, parcialmente vazado, é tratado como espaço colectivo, com a criação de zonas de encontro e estadia dos seus habitantes e o prolongamento da calçada dos passeios para o domínio privado.
São no entanto as casas unifamiliares para uma burguesia abastada, como exercícios de excepção e de maior liberdade, que nos dão as principais pistas sobre a sua leitura do novo contexto. O arquitecto conhecia a moderna arquitectura brasileira que, para ele como para os seu pares, fora uma referência incontornável nas décadas de 40 e 50, e tinha inclusivamente visitado o Brasil em 1972. Mas mais do que a absorção de correntes arquitectónicas, interessava a interpretação do contexto, a resposta aos problemas colocados caso a caso, e atender à questão identitária que atravessava todas as tendências num país que buscava a sua autonomia em relação à arquitectura estrangeira.
É esse sentido local que Conceição Silva procura imprimir nas suas obras, partindo da análise do território, vincando a sua sensibilidade em relação ao clima e geografia. Como em Portugal, o arquitecto manifesta a relevância dada às questões espaciais, às possibilidades vivenciais, procurando sempre criar um ambiente de conforto para a vida doméstica. Conceição Silva estará mais próximo de posturas individuais como a de Carlos Millan e o casal Liliana e Joaquim Guedes que, em São Paulo, evidenciam uma maior sofisticação e atenção ao detalhe na abordagem brutalista, permeáveis também ao empirirismo escandinavo, ou, no Rio, à inesgotável capacidade de reinvenção e experimentação de Sérgio Bernardes. Com uma resposta em função da circunstância da encomenda, do contexto físico às exigências do programa, Conceição Silva põe em prática o sentido de pesquisa próprio do modo de fazer português que, entre nós, não fora exclusivo da “escola do Porto”.
Na sua leitura das possibilidades oferecidas pelo território, o que torna a sua obra mais original é a intensificação da relação entre espaço interior e exterior, diluindo as fronteiras entre estas duas realidades que deixam de ser autónomas. No fundo vai reter uma característica da prática brasileira, já presente na arquitectura bandeirante ou colonial, com seus sobrados e pátios, dispositivos que a modernidade desenvolve em distintas variações, entre o ensimesmamento sobre pátios internos ajardinados (Casa de Vidro, Lina Bo Bardi, de 1952, ou Residência RB de Lélé, duas décadas depois), ao prolongamento do espaço interno para os além dos seus limites criando “espaços exteriores interiorizados”, como são exemplo as Residências Milton Guper (1953), de Rino Levi, ou a José Roberto Filippelli (1971), de Ruy Ohtake.
Mas enquanto na prática brasileira as construções mantêm geralmente o volume puro que vem da “tradição” moderna, com a liberdade da planta dentro dos limites de um casco autónomo, ou o desenvolvimento em geometrias claras, Conceição Silva estreita a relação entre a construção e o terreno em complexas morfologias, convocando a lição organicista. Nas residências Ronaldo Steinberg e Simão Coslowski (projectadas em 1976/77), as casas espraiam-se pelo terreno adossado a um morro, em diálogo com a topografia e em função também do desenvolvimento do espaço interno que se adapta à pendente. A casa Salik Resner (c.1980), num lote plano e mais reduzido, ocupa a totalidade do espaço disponível, criando uma nova topografia e reconfigurando os limites do terreno, com a construção em torno de um grande pátio central, solução igualmente adoptada nos dois conjuntos de casas geminadas que fará para a Michelin. Projecta-se um ambiente num continuum que reconfigura a totalidade do espaço disponível e que, ao dissolver a noção de casa numa parcela de terreno, cria um lugar para a vida doméstica. Numa zona mais consolidada e próxima do mar, no Barra da Tijuca, a casa Resner implanta-se numa cota superior, protegendo-se e negando-se à rua como as duas outras casas.
O complexo jogo volumétrico justifica-se na própria paisagem, na prodigalidade da vegetação, assim como na explosão dos espaços internos, que a imensidão do território brasileiro sugere. Em relação à experiência portuguesa, a obra de Conceição Silva ganha aqui uma escala inusitada, reflectindo as condições e geografia locais. A composição fragmentada é ritmada pela articulação de cheios e vazios, entre construção e pátios ajardinados. No caso da Residência Coslowski, a interpenetração entre interior e exterior é levada ao limite. A invasão do revestimento exterior — tijolo maciço à vista — no interior da casa, a grelha estrutural visível e marcada pelo ritmo regular dos pilares como terraços porticados, os pátios ajardinados e algumas coberturas transparentes que deixam vislumbrar a paisagem, criam um ambiente ambíguo que faz com que as zonas sociais mais pareçam terraços cobertos. O arquitecto recorre ainda a outros dispositivos para intensificar essa relação com o entorno, como grandes vãos sem caixilho, com o vidro colado a seco, na Casa Steinberg, ou a disseminação de floreiras que fazem brotar a vegetação da construção.
Cultura do sítio
Tal como na arquitectura brasileira, na obra de Conceição Silva, na conciliação entre modernidade e tradição, reconhece-se a vontade de expressar a cultura do sítio, não só na criação de espaços que se adequam à vida tropical, mas também no recurso a materiais e sistemas construtivos locais, ou a expressões mais autóctones. A casa Coslowski, com sua lógica aditiva com o desenvolvimento a partir da repetição de um módulo de base quadrada, em volumes marcados pelas coberturas em pirâmide, faz eco de construções primitivas, não deixando de também lembrar o edifício da superintendência da zona franca de Manaus (1971), de Severiano Porto. Tal como nas casas dos conjuntos Michelin, a residência Kelson reinterpreta a casa tradicional brasileira, com sua cobertura inclinada, revestida a telha, e seu generoso alpendre de estrutura de madeira geometrizada. As alvenarias de tijolo ou de pedra e as estruturas de madeira, a que recorre em toda a sua obra, não só nas casas já citadas, mas também nos conjuntos Michelin, são precisamente materiais e sistemas construtivos que o Brasil começava a revalorizar face ao esgotamento da estética moderna e atendendo às reais possibilidades de um país com escassos meios técnicos e financeiros.
Podemos assim enquadrar Conceição Silva e Pinto da Cunha no conjunto de arquitecto que colocam a identidade como uma das questões fundamentais do Brasil da época, antecipando a reflexão dos seminários de Arquitectura Latinoamericana (1985-2002), cuja principal preocupação era apontar caminhos para uma “modernidade apropriada” às condições económicas e técnicas do subcontinente. Identidade e regionalismo eram temas recorrentes, que agora a historiografia brasileira mais recente tem vindo a revalorizar.
Ao fim de cinco anos de sacrifício e esforço para vencer o ambiente altamente concorrencial do Rio de Janeiro, com a encomenda da Michelin, os dois sócios começavam finalmente a superar as dificuldades e a antever uma nova etapa, mudando-se para um atelier mais amplo na Barra da Tijuca. Tudo indica que Conceição Silva, que nas cartas que envia à família (os quatro filhos do primeiro casamento permaneceram em Portugal) tanto se mostra contagiado pelo optimismo brasileiro quanto céptico face às idiossincrasias brasileiras que ofuscavam a sua retidão, começava a criar uma organização decalcada do escritório português. Toma a seu cargo a construção dos conjuntos residenciais da multinacional brasileira (como anos antes fizera com o Hotel da Balaia e depois Tróia) e lança-se na promoção imobiliária. Mas, em início de 1982, não resiste às preocupações com a sobrecarga dos problemas do estaleiro de obra e a suspeita de uma burla por parte do seu contabilista, vindo a falecer de um ataque cardíaco a 23 de Janeiro de 1982, pouco antes de completar 60 anos.
Notícia corrigida a 18 de Março: substitui Bairro da Tijuca por Barra da Tijuca