Rendez-vous
Já não és inocente. O teu pensamento sim: abraça-o, beija-o, despe-o, como quiseste antes mas nunca fizeste. Tudo parece igual. Tudo igualmente perturbador.
Já se passaram vinte anos. É incrível. Ainda te lembras bem dele. No primeiro ano da faculdade, naquela sala de aula que nunca esqueceste (onde o sol quase nunca batia), viste-o pela primeira vez.
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Já se passaram vinte anos. É incrível. Ainda te lembras bem dele. No primeiro ano da faculdade, naquela sala de aula que nunca esqueceste (onde o sol quase nunca batia), viste-o pela primeira vez.
Foi qualquer coisa nele que te despertou a atenção. Continuas sem perceber bem o quê. Está longe de ser como os meninos bonitos do cinema mas foi aquele rosto, aquele olhar que te cativou. Depois, a maneira como falava. Como falava contigo. E até a maneira com se mexia, te deixava inquieta.
Certo foi que pouco se falaram. Tu ainda eras muito inocente e ele, aparentemente, também.
Foste tu quem foi falar com ele pela primeira vez. Ganhaste coragem e usaste uma desculpa qualquer relacionada com os apontamentos. Que lhos emprestavas se ele precisasse (ele faltava a algumas aulas e tu sabias a quais). Ele agradecia mas dizia que não precisava. Que se precisasse, depois tos pedia. E não tinhas coragem para mais. Ele olhava-te com muita atenção, profundamente. E também não tinha coragem para mais.
Depois do episódio dos apontamentos poucas vezes mais estiveste com ele. Esporadicamente, antes de entrarem na sala. Esporadicamente, um pouco, no fim da aula. Sempre conversa de circunstância. E sempre aquela troca de olhares.
De resto, ele faltava muito. Pouco aparecia na faculdade e não tinha amigos (que tu soubesses). Aparecia naquelas aulas teóricas, sentava-se na cadeira mais perto de uma das paredes da sala e ficava a aula inteira só a ouvir, calado, sem tirar nenhum apontamento.
De vez em quando, nos corredores, lá tinhas a oportunidade de lhe perguntar qualquer coisa. Ele respondia sempre amavelmente, mas pouco. E sempre o olhar.
Na tua cabeça havia um sentido. Aquele homem era teu.
Sempre que regressavas a casa, começavas a pensar no dia seguinte. Como irias falar com ele. Como irias falar mais com ele. Como seria o olhar. E sabias bem que quando pensavas nele já não eras inocente.
Mas ele despareceu. Tinha mudado de curso e de cidade, alguém disse. Não completou, sequer, o primeiro semestre. Não completou, sequer, uma conversa inteira contigo. Talvez apenas o olhar tivesse sido completo.
Tu acabaste o curso e não mudaste de cidade. Mas o trabalho fez-te viajar país adentro. Hotéis, estradas, restaurantes. Hoje, estás numa cidade qualquer de trabalho, e almoças.
Passaram vinte anos e, a umas quantas mesas de distância, ele almoça também.
Os anos marcam a fisionomia de toda a gente. Ele está mais velho e já tem um ou outro cabelo branco. Mas continua magro e com o mesmo corte de cabelo (nunca ligou muito a modas). E o rosto. E o olhar (ainda não na tua direcção). Tudo parece igual. Tudo igualmente perturbador. Com terá ele vindo aqui parar?
Ao vê-lo, algo em ti despertou, como se estivesse perdido em algum recanto do teu corpo, que só a presença dele fosse capaz de encontrar.
Já não és inocente. És casada com dois filhos. Mas hoje já saberias muito bem o que dizer. Hoje já saberias muito bem o que fazer. Hoje já não ficarias pelos apontamentos e pela troca de olhares. Porém, ao vê-lo ali tão perto, não te consegues levantar da cadeira. O teu pensamento sim: abraça-o, beija-o, despe-o, como quiseste antes mas nunca fizeste.
De repente, ele olha para ti. Fita-te profundamente durante segundos infinitos. Depois, arrasta a cadeira em que estava sentado, põe-se de pé e, finalmente, caminha na tua direcção.