Uma separação
Um filme israelita que põe em tribunal a dignidade humana com uma simplicidade e uma inteligência raras.
E Elisha não quer dar o divórcio a Viviane. Gett é só isto: a história de um processo de divórcio em Israel, contado sem sair da sala do tribunal, com Viviane e Elisha a esgrimirem argumentos um com o outro por advogado interposto e testemunhas a abonarem em favor da moral e dos bons costumes do casal. E se isto parece um seco e árido filme de tribunal, o espectador pode desde já desenganar-se: Gett é, também, isso, mas depois parece uma velha comédia à italiana, passa a exercício de claustrofobia e absurdo kafkiano, descamba para uma comédia judia como Woody Allen ou Mel Brooks tinham o segredo, remete para a austeridade gloriosa de Dreyer ou Bresson, e fá-lo sem nunca perder de vista o efeito especial mais notável que o cinema tem à sua disposição: o rosto humano. Porque é nas rugas, nos olhares, nas posturas, que está a verdade, e é aí que a câmara dos irmãos Ronit e Shlomi Elkabetz se foca, evitando o máximo os planos de conjunto, mostrando apenas parte da sala de cada vez, expondo um micro-cosmos social através da riqueza dos rostos e da presença dos corpos. As palavras, aqui, são enganadoras – numa sociedade patriarcal onde uma mulher não tem na verdade a “posse” da sua liberdade, só as acções contam.
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E Elisha não quer dar o divórcio a Viviane. Gett é só isto: a história de um processo de divórcio em Israel, contado sem sair da sala do tribunal, com Viviane e Elisha a esgrimirem argumentos um com o outro por advogado interposto e testemunhas a abonarem em favor da moral e dos bons costumes do casal. E se isto parece um seco e árido filme de tribunal, o espectador pode desde já desenganar-se: Gett é, também, isso, mas depois parece uma velha comédia à italiana, passa a exercício de claustrofobia e absurdo kafkiano, descamba para uma comédia judia como Woody Allen ou Mel Brooks tinham o segredo, remete para a austeridade gloriosa de Dreyer ou Bresson, e fá-lo sem nunca perder de vista o efeito especial mais notável que o cinema tem à sua disposição: o rosto humano. Porque é nas rugas, nos olhares, nas posturas, que está a verdade, e é aí que a câmara dos irmãos Ronit e Shlomi Elkabetz se foca, evitando o máximo os planos de conjunto, mostrando apenas parte da sala de cada vez, expondo um micro-cosmos social através da riqueza dos rostos e da presença dos corpos. As palavras, aqui, são enganadoras – numa sociedade patriarcal onde uma mulher não tem na verdade a “posse” da sua liberdade, só as acções contam.
Para oferecer uma outra pista de leitura ao espectador, Gett está muito próximo, no modo como usa o particular para falar do universal e escolhe um melodrama humano para ancorar a sua exploração criativa, do excelente Uma Separação (2011) do iraniano Asghar Farhadi. É de um divórcio que se trata em ambos os filmes, e de um divórcio visto dos dois lados da situação. Só que os irmãos Elkabetz filmam o pedido de divórcio de todos os lados da situação – de Viviane, de Elisha, dos advogados de ambos, dos vizinhos, dos familiares, dos juízes. Estruturam Gett como um jogo de xadrez onde cada personagem é uma peça com uma função específica no tabuleiro, movimentada e filmada com um extraordinário rigor formal, mas sem nunca perder de vista a dimensão humana do que está em jogo. Que é, apenas, a simples dignidade pedida por uma mulher que quer tomar a sua vida nas mãos (extraordinária Ronit Elkabetz, que aguenta o filme todo nos ombros com uma contenção assinalável). O que sugere poder estar aqui um filme “feminista”, mas se esse lado é inescapável, é também redutor, porque este é, sobretudo, um filme sobre uma sociedade à procura de si própria. Gett é uma grande, enorme, extraordinária surpresa.