O cinema é arte popular mais potente, mas ainda lhe faltam mulheres
Figurinos e caracterização continuam a ser áreas femininas, fotografia continua dominada pelos homens. A desigualdade é “o elefante na sala - toda a gente vê o problema mas ninguém fala nele”.
Não há paridade, mas há mais realizadoras e produtoras de documentários. Continuam a dominar no guarda-roupa, maquilhagem e cabelos e permanecem distantes das actividades mais técnicas como a fotografia. No fundo, as mulheres são ainda uma minoria nas equipas que fazem “a arte popular mais potente que temos”, como classifica Sanja Ravlic, presidente do Grupo de Estudo sobre Igualdade de Género (GEIG) do Eurimages.
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Não há paridade, mas há mais realizadoras e produtoras de documentários. Continuam a dominar no guarda-roupa, maquilhagem e cabelos e permanecem distantes das actividades mais técnicas como a fotografia. No fundo, as mulheres são ainda uma minoria nas equipas que fazem “a arte popular mais potente que temos”, como classifica Sanja Ravlic, presidente do Grupo de Estudo sobre Igualdade de Género (GEIG) do Eurimages.
Na Europa, em 2012, apenas 17,5% das pessoas que trabalham em cinema eram do sexo feminino, revelou segunda-feira Ravlic, durante o encontro do fundo europeu de apoio à produção cinematográfica dedicado ao “papel das mulheres hoje nas indústrias cinematográficas europeia e portuguesa”. E numa década, só 16,3% dos filmes apoiados pelo Eurimages foram feitos por mulheres. São os primeiros números de um estudo em curso do Eurimages cujos resultados finais - e recomendações correspondentes - serão apresentados em Outubro. Na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, as dezenas de pessoas na plateia viram nos números do continente europeu um reflexo da realidade portuguesa - a área do sector em que mais mulheres trabalham é a da caracterização e figurinos e estão “pobremente representadas nas equipas técnicas”.
Se no período 1991-93 em Portugal 21,2% dos realizadores eram mulheres, dez anos depois essa parcela subia para 27%. De acordo com dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) sobre longas-metragens de ficção com apoios públicos já produzidas, entre 2011 e 13 esse número permaneceu quase inalterado (27,3%), elencaram Nuno Fonseca, do ICA, e Teresa Duarte Martinho, investigadora do Instituto de Ciências Sociais. São anos que Ana Catarina Pereira, investigadora da Universidade da Beira Interior e autora da tese A Mulher Cineasta (2014), troca por miúdos: na década de 1940 houve Bárbara Virgínia, autora de Três Dias sem Deus, a primeira longa-metragem de ficção realizada por uma mulher em Portugal e a única da década. O filme esteve no primeiro Festival de Cannes e a sua autora morreu este domingo, aos 91 anos. Foi preciso esperar até aos anos 1970 para Margarida Cordeiro realizar com António Reis Trás-os-Montes (1976) e nos anos 1980 entram em cena Solveig Nordlund, Teresa Villaverde, Margarida Gil, sete filmes de mulheres, seguidas nos anos 1990 por Margarida Cardoso ou Cláudia Tomaz. Já não se contam pelos dedos, foram 12 filmes. E entre 2000 e 2009, mais 19 longas femininas.
No documentário, voltando aos números do ICA, um terço já foi realizado por mulheres no período entre 2011 e 2013 (passou dos 30% do início do século para os 33%). Já na produção, o crescimento é mais significativo: de menos de um quinto do universo (19,3%), dez anos depois há já mais de um terço de produtoras no mercado (37,8%) e no documentário os números quase duplicam - há uma década 36% dos produtores eram mulheres e os números mais recentes apontam para os 65%. No argumento, contudo, passamos de um terço do sector para apenas 26,7% guiões escritos por mulheres na ficção.
Equilíbrio precisa-se
O CEIG, criado em 2013, quer perceber “por que é que há menos filmes realizados por mulheres a candidatar-se ao Eurimages”, como resume Ravlic ao PÚBLICO. “Somos os últimos na longa e muito árdua viagem para financiar um filme e somos um reflexo do que acontece ao nível nacional”, explica sobre o organismo que recebe pedidos de apoio para co-produções entre pelo menos dois países europeus.
E daí estar nos planos propor “políticas de género” para o fundo, de forma a “influenciar o processo” pondo na agenda uma “discussão que era o elefante na sala - toda a gente via [o problema] mas ninguém falava nele”. A introdução do género como critério para escolha de júris ou de projectos, como já existe o geográfico, e a presença de mulheres em posição de, como descreveu o realizador e professor João Mário Grilo, “libertar a câmara do olhar do homem branco e capitalista”, pode reflectir-se na representação das mulheres, na escolha de temas, na diversidade de olhares, nos salários.
Segundo dados do Centro Nacional de Cinema francês, as realizadoras ganham menos 31,5% do que os realizadores. As actrizes têm rendimentos inferiores em 30,4% aos dos actores. “As mulheres têm mais dificuldade em obter financiamento” para os seus projectos, referiu ainda Sanja Ravlic, têm mais dificuldade em chegar ao circuito dos festivais e recebem menos prémios. Os exemplos são os do costume, porque são únicos: Jane Campion é a única realizadora com a Palma de Ouro de Cannes; Kathryn Bigelow é a única com o Óscar.
“Há quem diga que a arte não é uma questão de oportunidades iguais”, enfada-se Sanja Ravlic, “mas é uma questão de acesso às ferramentas do ofício” diz sobre o problema de financiamento, por exemplo. “Faltam-nos olhares diferentes sobre o mundo e modelos a seguir. O argumento de que ‘a qualidade é que é rainha’... então expliquem-me porque é que há tantos maus filmes realizados por homens. Quando o dinheiro dos contribuintes está em jogo, os fundos públicos devem liderar dando o exemplo”, defende a responsável.
Em Portugal, reflectiu a mesa-redonda moderada por Maria João Seixas, “a maioria das cineastas vem de um background social intelectual, é algo que podíamos tentar mudar”, trazendo outras mulheres com outras experiências para o cinema, defendeu a professora e documentarista Catarina Alves Costa. E, lembra a produtora Pandora Cunha Telles, ainda sob a tónica das ferramentas e oportunidades, nos últimos cinco anos nenhuma mulher recebeu apoios do ICA para a sua primeira obra. “Hoje, começar é um pesadelo”, disse, pedindo mais diversidade “na definição do que é visto” e no perfil de “quem está a produzir esta realidade do que é Portugal. O retrato de Portugal não é o mesmo filmado por um homem ou por uma mulher”.