Vassallo e Silva: “Património é património, turismo é turismo. Os nossos objectivos não são comuns”
Na sua primeira entrevista de fundo, o director-geral do Património diz que recuperar apenas para fins turísticos não é a solução. As parcerias com o turismo dão resultados muito positivos, mas reconhece a pressão sobre as zonas classificadas.
Preocupado com o futuro naquele que é o maior organismo da Cultura pôs em marcha um plano com as grandes linhas do futuro porque, defende, mesmo “aflitos” é preciso saber para onde se caminha.
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Preocupado com o futuro naquele que é o maior organismo da Cultura pôs em marcha um plano com as grandes linhas do futuro porque, defende, mesmo “aflitos” é preciso saber para onde se caminha.
O Grão Vasco, em Viseu, acaba de ser reclassificado como museu nacional. Porquê esta “promoção”?
Resulta de um pedido do seu director e da casa. Foi feito já no Verão passado e com o apoio de uma série de entidades, da Câmara Municipal de Viseu ao turismo, passando por associações várias. O museu é guardião de vários tesouros nacionais.
Falamos desta promoção porque ela parece ir contra a estratégia defendida até aqui, a de transferir responsabilidades de alguns museus da DGPC primeiro para as direcções regionais de Cultura e daí para as autarquias... A Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e a DGPC abandonaram o seu plano de descentralização para os municípios?
Só posso falar pela DGPC. Nós não temos nenhum caso [de transferência para as autarquias]. Agora o que posso dizer é que há museus que, dada a sua origem e a relação íntima que têm com as comunidades, é normal e benéfico que dependam directamente das próprias autarquias. Disso não tenho dúvidas.
Mas pode dizer-nos se o plano de transferência para as autarquias está ou não parado?
Não tenho conhecimento de que esteja parado.
Se o Grão Vasco é reclassificado, não faz sentido discutir, pelo menos, uma eventual reclassificação para museus como Évora ou Lamego? Faz sentido fazer depender a “reclassificação” de uma iniciativa dos próprios museus ou das câmaras? Neste caso, aliás, faz-nos pensar que há que ter aqui em conta o peso que Viseu tem dentro do próprio PSD…
Em relação ao Grão Vasco posso dizer que há um alinhamento político e social completo, um acordo de todas as forças, que prezo muito. Agora, outros museus fora da DGPC são casos de que não quero falar. Os museus de Évora e de Lamego estão nas direcções regionais de Cultura. Nós temos o da música, cujo processo já foi iniciado para que passe a museu nacional.
Passemos, então, a um museu que tutela, o dos Coches, cujo dossier complicado herdou ao chegar à direcção-geral…
Não é complicado, é trabalhoso.
Trabalhoso, então. Quando é que abre? Já teve mais do que uma data anunciada…
Vai abrir – foi anunciado pelo secretário de Estado – no dia em que faz 110 anos, a 23 de Maio. É o Museu dos Coches, mas é também um edifício que se vai tornar, esperemos, um dos ícones de Lisboa, e que não está a ser usufruído. O edifício, de um dos maiores arquitectos contemporâneos, é uma obra em si. É fundamental tirar aqueles tapumes e tornar toda aquela zona transitável.
Tem-se atribuído os sucessivos atrasos na abertura à inexistência de um plano de gestão que o torne sustentável. Há já um modelo para gerir o novo museu?
Estamos a trabalhar nele, mas eu não vou poder dizer nada por enquanto.
É só público ou vamos ter privados, por exemplo, a programar espaços do museu?
Do ponto de vista científico, da programação, não idealizo nada fora da DGPC.
Nem exposições temporárias?
Sem nós validarmos, não.
Estamos a falar de prazos apertadíssimos - Maio está já aí - e a indefinição é ainda tão grande?
Não estou a dizer que a indefinição seja grande, o que estou a dizer é que as coisas não estão completamente fechadas. Mas a área da programação é da competência da direcção do museu.
O que é que sobra?
A gestão comercial. O museu tem uma grande área – a praça – mas os restantes espaços, tirando as galerias de exposições da colecção, não são muito grandes. Falo do auditório e do espaço de exposições temporárias…
O que está a dizer é que, em termos de custos de funcionamento, não vê grandes alternativas ao Orçamento de Estado…
Vejo, não posso é falar delas ainda. Estão relacionadas com o novo modelo de gestão.
Clarificando: os custos de funcionamento do museu mantêm-se nos 3,5 milhões de euros por ano?
Confirmo, o que é muito superior aos custos actuais.
Mas não quer dizer que a responsabilidade de assegurar esses custos seja toda vossa…
É isso que estamos ainda a finalizar. O que é importante dizer é que não podemos continuar com aquele espaço fechado. Houve um investimento enorme do Estado – não sei se estou de acordo com o que foi feito no passado ou como foi planeado – mas estamos a falar do edifício de um grande arquitecto. Vai ser muito importante, mesmo para o próprio usufruto das colecções. Com os Coches lá vai ser espectacular.
O presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), António Lamas, tem como missão criar um plano de gestão integrada para o eixo monumental Belém-Ajuda. O que é que o novo plano pode trazer que a DGPC não faça já ou não seja capaz de fazer?
Este eixo já existe, não é uma criação. E a DGPC tem toda a coluna vertebral desta zona: a Torre de Belém, os dois Coches, Arte Popular, Arqueologia, Jerónimos, Etnologia e aqui a Ajuda. Agora o eixo pode e deve ser muito potencializado. Assim que cheguei comecei logo a trabalhar com a vereadora da Cultura de Lisboa e com a Associação de Turismo no sentido de criar um modelo que pudesse aglutinar as várias entidades. É que temos ainda o Jardim Botânico Tropical, o Palácio de Belém, o Padrão dos Descobrimentos… No fundo é desenvolver o que existe, maximizar a marca da zona Ajuda-Belém. A entrada do presidente do CCB só vem reforçar esta ideia, creio.
Já reuniu com António Lamas a propósito deste assunto?
Sim, mas não conheço a proposta.
Insistimos na pergunta: o que é que o plano de António Lamas pode trazer que a DGPC não se sinta apta a fazer?
Pode fomentar um diálogo maior entre as várias entidades.
Pode ser mais ágil, é isso?
Exactamente. Mas nós temos uma relação muito boa com o professor António Lamas e gostaríamos de o envolver em vários projectos que temos em mãos, incluindo o próprio Museu dos Coches.
O tal que vai abrir já em Maio…
O novo Museu dos Coches cria um novo equipamento que pode servir de estímulo para uma releitura da área.
Se o plano de António Lamas previr a gestão directa das receitas dos Jerónimos e da Torre de Belém, bem como a sua aplicação em exclusivo naquela zona, pode dizer-se que ficará em causa o princípio da redistribuição de verbas dentro da própria DGPC? Estamos a falar de monumentos campeões de receitas que ajudam depois a manter outros, pelo país fora, que não têm a mesma capacidade de atracção de visitantes… O próprio Palácio Nacional da Ajuda com uma futura exposição das jóias da coroa também poderá ser muito rentável…
A minha leitura não é territorial, é muito mais ampla. Se o dinheiro que a DGPC realiza na zona de Belém ficar restrito a essa área isso vai criar-nos problemas.
Quanto é que a DGPC recebe da Parques de Sintra-Monte da Lua das receitas dos monumentos que até há bem pouco tempo lhe pertenciam, como o Palácio Nacional de Sintra?
No ano passado, ao todo, recebemos entre 500 e 550 mil euros.
Para clarificar: o que defende é que as receitas que os monumentos de Belém-Ajuda fazem não devem ser aplicadas exclusivamente nesse eixo?
A nossa visão vai muito mais longe do que de Belém à Ajuda.
Como é que isso se articula com o plano de António Lamas?
Não sei, não conhecemos ainda o plano do professor Lamas.
Que percentagem da divisão de receitas seria aceitável neste caso?
Uma vez mais, não conheço o modelo. Mas são receitas fundamentais.
Falemos então de dinheiro. Os seus antecessores têm-se queixado de subfinanciamento. Que orçamento tem para este ano?
A evolução da receita própria de 2013 para 2014 foi de 22%, cerca de 2,5 milhões de euros. A transferência do orçamento de Estado de 2014 para 2015 subiu de 27,6 milhões de euros para 30 milhões. No ano passado tivemos de receitas próprias 46% e este ano pusemos no orçamento 45,2%, mas esperamos atingir perto dos 50%, o que é muito significativo. Isto com o turismo, com o aluguer de espaços, que é cada vez maior, e com o aumento do número de bilhetes. O problema do dinheiro vai sendo resolvido, agora não me canso de me queixar é em relação ao modelo de gestão da DGPC, que precisava de mais autonomia.
Se atingirem o patamar dos 50% – ser autofinanciada a 50% é a linha de fronteira como garante de autonomia nas instituições públicas – podem passar a ter outro papel na gestão das vossas próprias receitas?
Neste momento não. Não sei quais são os mecanismos financeiros necessários para isso. Agora o que é importante é que com este aumento de receita podemos ter menos peso no Orçamento de Estado. Se tivéssemos instrumentos de gestão mais flexíveis e uma capacidade de decisão mais rápida seria ainda melhor. Um dos modelos de gestão que estão em cima da mesa passa por ter mais autonomia.
Esse modelo de gestão é da DGPC ou estamos a falar outra vez dos Coches?
Dos Coches.
E isso pode alargar-se ao eixo Belém-Ajuda?
Uma solução de êxito pode ser aplicada a outros, caso a caso.
Qual é a sua principal dificuldade neste momento?
O mais grave é a transmissão de conhecimentos. Não entram pessoas novas e com isso estamos a criar um problema. Há aqui profissionais – arquitectos, pessoas do planeamento, da área dos museus – que estão a reformar-se e que nós não podemos substituir. É dramático. O Estado não vai poder fechar os olhos a isto durante muito mais tempo.
Vê alguma solução para este problema?
No imediato, não. Sem abrirmos os quadros e sem trazermos pessoas das gerações mais novas, não. Esta situação põem em causa a nossa missão.
Há pouco falávamos da capacidade da DGPC de gerar receita, nomeadamente no eixo Belém-Ajuda…
…Nós somos muito mais do que o eixo Belém-Ajuda e eu gostava que isso ficasse claro. Somos muito mais.
…Voltamos a falar do eixo porque nele o turismo é muito importante e ele tem estado cada vez mais presente no discurso oficial sobre património, na proliferação de rotas por todo o país. Esta ligação ao turismo só traz vantagens ou pode trazer desvantagens para o património?
Património é património, turismo é turismo. Os nossos objectivos não são comuns. O nosso é preservar o património, divulgar, e o turismo é uma indústria de lazer, embora tenha uma área cultural importantíssima. O que sucede é que a nossa parceria pode dar – e dá – resultados muito positivos para ambas as partes.
Mas esta “turistificação” não baralha as prioridades de intervenção, não impede que se olhe para os monumentos individualmente, criando uma narrativa que é extra-património?
Sim, é uma narrativa que ultrapassa claramente o património. Mas em relação às rotas vejo mais os aspectos positivos porque elas diversificam a oferta.
Há uma enorme dinâmica na privatização do património – e vêm aí os vistos gold com benefícios para quem invista nesta área… Na Baixa de Lisboa, com os 16 hectares da colina se Santana que podem vir a transformar-se em condomínios e hotéis, isso é muito visível. Sente necessidade de criar ou adaptar os mecanismos de salvaguarda a estes novos tempos?
O turismo está a criar alguma pressão sobre zonas classificadas, sobre a utilização de edifícios históricos e isso exige mais resposta. Temos de estar atentos. Mas é preciso dizer que recuperar apenas para fins turísticos não é solução. Os desafios maiores vêm da área da classificação. A Baixa é impressionante… O que temos é de acompanhar os projectos de privatização antes de eles estarem em fase de execução e estamos a conseguir com alguns promotores.
Está há um ano no cargo, vindo do museu de uma fundação privada de prestígio, de um ambiente protegido. Qual foi a sua grande surpresa ao chegar aqui?
A primeira perplexidade foi com a extensão e diversidade da casa. O choque veio também da carga burocrática e da complexidade dos procedimentos. O Museu dos Coches é um bom exemplo disso. O que também me impressionou imenso foi o espírito de sacrifício e de missão das equipas. Esta é ainda uma casa nova [enquanto DGPC] e que não está consolidada. Quando cheguei – não estou a falar só de mim, porque há uma equipa de quatro subdirectores – comecei a tentar consolidá-la, criando um gabinete de auditoria interna que não existia. Isto foi na altura em que surgiu o problema dos abusos na bilhética dos Jerónimos e da Torre de Belém… Foi preciso criar um código deontológico dos colaboradores. Estamos também a trabalhar num plano estratégico, com a colaboração de colegas da Smithsonian Institution e de outros que virão agora.
Que plano é esse?
Está ainda no início mas tem a ver com a identificação dos valores comuns de toda a instituição, com as grandes linhas de excelência que temos de seguir no futuro.
Estamos sempre a resolver coisas do imediato e precisamos de ter a capacidade de criar instrumentos para pensar mais longe. É quase uma questão filosófica. Estamos sempre a correr porque há aqui um hotel a furar uma parede que não deve e ali um jardim que precisa de intervenção… Embora estejamos aflitos, temos de saber para onde vamos. Temos também de acabar com a ideia de que a DGPC é uma coisa inatingível e de acabar com o défice de comunicação para o exterior. As pessoas não entendem o que fazemos, parecemos uma entidade que não tutela, que dificulta.
À chegada herdou logo uma pasta complicada, a dos 85 Mirós que perteceram ao BPN…
…pelo menos muito badalada…
… Há dois processos levantados pelo Ministério Público para que não saiam do país, mas já disse que não se trata de uma colecção e que é preciso relativizar a sua importância. A DGCP foi chamada a analisar para efeitos de classificação quatro das 85 obras e decidiu arquivar o processo em Agosto. E quanto às restantes 81 - vale a pena classificar alguma?
Este Mirós não podem ser vistos sem ser no contexto internacional. Em Dezembro, em Londres, só na Sotheby’s e Christie’s foram vendidas não sei quantos Mirós ao nível dos milhões.
Podemos pegar nessa sua afirmação e vê-la ao contrário – vendem-se por milhões por alguma razão…
É um pintor muito acessível, muito atraente, e é reconhecido como grande investimento.
E é também o chamado bom pintor…
Sou um grande admirador de Miró, nisso sou suspeito.
Voltemos às 81 obras que restam…
Do ponto de vista da classificação não é possível, porque a lei não o permite. Aquelas quatro que, realmente caíram [estavam há mais de dez anos em Portugal e por isso a DGPC podia decidir classificá-las mesmo à revelia do proprietário], eram obras absolutamente menores. Criaram-se expectativas para o país sobre uma colecção que eu não consigo entender.
Porque é que tem uma opinião diferente da do director do Museu do Chiado? David Santos considerava a integração deste conjunto no museu “uma prioridade para o Estado português”. Pedro Lapa, antigo director, disse o mesmo. João Fernandes, ex-director do Museu de Serralves, defendeu que era preciso ver a colecção e que, pela reproduções divulgadas, algumas das obras deveriam ficar…
O João Fernandes disse que a colecção era desigual…
Como todas as colecções.
Não é bem assim, as boas colecções só têm boas obras.
Viu a colecção?
Directamente não.
A certa altura estamos todos a falar de uma colecção que ninguém viu…
Não é uma colecção - é um conjunto de obras.
E não se tornaria rapidamente uma colecção para o público português se estivesse exposta?
Não consigo perceber a importância que se tem dado a 80 e poucas obras quando temos em Espanha, aqui ao lado, colecções com milhares de obras, altamente representativas, às quais não podemos fazer a mínima concorrência.
Não tenho nada a ver com a eventual venda deste conjunto de obras. Consigo perceber que o Miró é um artista extraordinário, agora o discurso que se criou em torno deste conjunto de obras não se justifica.
As 85 obras são todas de segunda?
Eu nunca disse isso. Tenho de falar pelos museus nacionais e pelo interesse nacional – temos obras-primas guardadas, que nunca ninguém viu, porque não temos sítios para as expor… Basta pensar nas jóias da coroa. Porquê dar importância a este conjunto quando há núcleos permanentes de Miró a uma hora de distância de avião?
Se fosse só essa a questão, para quê ter pintura flamenga no Museu de Arte Antiga se temos o Prado aqui ao lado?
Podemos discutir isto eternamente, mas não consigo ver porque é que umas dúzias de Mirós são uma prioridade nacional.
E o chamado “caso Crivelli”, vale a pena debater?
Esse é um caso muito complexo do ponto de vista jurídico porque é uma obra classificada desde 1970, que saiu sem terem sido feitos os procedimento necessários, e que foi adquirida por alguém no estrangeiro com toda a legitimidade, alguém que não sabemos quem é.
A DGPC sabe onde está a pintura agora?
Não sabemos. O actual secretário de Estado revogou o despacho do anterior e agora temos um problema jurídico.
O que é que se pode fazer em relação a Francisco José Viegas, o secretário de Estado que autorizou a expedição da pintura?
O que me interessa aqui é o acto em si. Estamos a tratar do assunto. Esperamos resolvê-lo. Há muitas coisas em cima da mesa.
E em relação ao arquivo do Forte de Sacavém - o mais importante do património em Portugal, que pertenceu à Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais e que hoje depende do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana - o que é que lhe vai acontecer?
É uma das nossas principais preocupações. Acho que todas as partes estão de acordo que vá para o sítio onde deve estar, que é aqui. Espero ter uma resposta em breve.