Falta de colaboração das vítimas dificulta investigação de crimes por violência doméstica
A magistrada que coordena a unidade de investigação destes crimes no DIAP de Lisboa, Maria Fernanda Alves, diz que os processos ficam muitas vezes suspensos a pedido da vítima. Tal acontece, em parte, por medo de represálias ou relutância em deixar a relação.
O primeiro passo era essa primeira queixa, e a saída de casa, com tudo o que poderia seguir-se: ofensas mais frequentes e intensas, ameaças, perseguições, vergonha ou culpa de destruir a família, dificuldade em viver apenas de um rendimento, o seu.
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O primeiro passo era essa primeira queixa, e a saída de casa, com tudo o que poderia seguir-se: ofensas mais frequentes e intensas, ameaças, perseguições, vergonha ou culpa de destruir a família, dificuldade em viver apenas de um rendimento, o seu.
Quando a queixa é encaminhada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) para o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, este delega na polícia a investigação. E como acontece com as cerca de 190 queixas que segundo o DIAP de Lisboa, em média, são tratadas todos os meses, Marília (nome fictício) foi notificada. No dia da inquirição, porém, não quis depor contra o marido. Calou todo o ressentimento, usando do direito de não prestar declarações para pessoas com ligações familiares com o suspeito. O processo foi suspenso.
A falta de colaboração das vítimas, e de familiares ou vizinhos para testemunhar, dificulta a investigação por crimes de violência doméstica, diz a procuradora da República Maria Fernanda Alves, que coordena a Unidade contra o Crime de Violência Doméstica do DIAP de Lisboa.
Quando não é possível recolher prova ou o processo já foi antes suspenso, a pedido da vítima e com o acordo do suspeito, há arquivamento. O mapa de movimentos de inquéritos de violência doméstica do DIAP de Lisboa, em 2014, mostra que 1527 processos foram arquivados, 206 suspensos e 1281 estavam, no final do ano, pendentes. Estes números incluem quer processos abertos ao longo do ano, quer transitados de anos anteriores. Apenas 252 resultaram em acusação.
Nessa minoria que chega a julgamento, e quando são chamadas a depor, algumas vítimas retraem-se. Dos dados referentes a 2014, tratados pelo DIAP de Lisboa até final de Fevereiro deste ano, constam 68 condenações por violência doméstica. Dessas, em apenas sete foi decretada pena de prisão efectiva.
As penas suspensas são habitualmente acompanhadas de medidas de proibição de contactos, afastamento da residência ou de vigilância electrónica que nem sempre previnem situações mais extremas. No caso conhecido de Manuel Baltazar “Palito”, o arguido já tinha sido condenado por um crime de violência doméstica a pena suspensa com proibição de contactos e vigilância electrónica quatro meses antes dos crimes pelos quais está a ser julgado: a morte da tia e da mãe da ex-mulher, também atingida, bem como a filha, em Abril 2014 em São João da Pesqueira.
Medo de represálias
Para haver condenação, será preciso repetir tudo o que foi dito em fase de inquérito e isso nem sempre acontece: por medo de represálias, preocupação com os filhos, vontade de permanecer na relação e, ao mesmo tempo, impulso para a deixar; por sentimento de impotência para enfrentar a realidade ou vergonha.
No caso de Marília, haveria um pouco de tudo isto e, ainda, esperança que o marido mudasse o seu comportamento. Caíra na ilusão criada pelo ciclo da violência, assim descrito por psicólogos e sociólogos: a uma primeira fase de tensão, segue-se um crescendo e uma explosão com os ataques verbais a poderem assumir a forma de violência física; depois uma acalmia, a que chamam de “lua-de-mel”, e novamente, sem aviso, um crescendo e uma explosão. Com o passar dos anos, os intervalos entre as diferentes fases tornam-se mais curtos: uma explosão que, no início, podia verificar-se uma vez por ano, passa a acontecer mais vezes.
Cerca de um mês depois da primeira participação à polícia, Marília fez segunda queixa, denunciando uma nova situação de ofensas verbais. Tinha voltado para casa com os filhos pouco depois da primeira denúncia. A PSP fez nova reavaliação, e a situação está, neste momento, a ser acompanhada por elementos da Equipa de Proximidade e Apoio à Vítima. Os agentes telefonam à vítima ou deslocam-se à residência – fazem-no (mais do que uma vez por semana) sempre que o risco é considerado elevado.
A procuradora Maria Fernanda Alves vê em Marília “um caso típico” da falta de colaboração que encontra em situações de violência doméstica – que podem também ser contra crianças ou idosos mas é em grande parte uma violência conjugal. A queixa não tem valor de prova; só o depoimento da vítima na Divisão de Investigação Criminal da PSP ou, nalguns casos, no DIAP. Se não houver registo de agressões físicas, com recolha de prova documental pela polícia (como fotografias tiradas à vítima) quando chamada ao local, esse depoimento ou inquirição é vital para a investigação de um crime perpetrado na intimidade. Vizinhos e familiares da vítima podem aceitar depor, mas isso também é raro.
Depoimentos antecipados
Desde o início de Março, Fernanda Alves instituiu, com a Divisão de Investigação Criminal de Lisboa a quem, na maior parte dos casos, é delegada a investigação, que a vítima seja inquirida num prazo de 48 horas. Até agora, a inquirição fazia-se em quatro ou cinco dias, podendo esse período ir até dez dias.
“Quanto mais rapidamente conseguirmos que a vítima venha até nós para ser inquirida, melhor”, diz o subcomissário Fábio Carreto que dirige a equipa de nove pessoas da Divisão de Investigação Criminal da PSP que trata os crimes por violência doméstica no concelho de Lisboa.
Esta medida, para quem recebe em média um caso de risco elevado por dia, será uma forma de aproximar o momento da agressão de uma eventual medida de coacção, proposta pelo Ministério Público e aprovada pelo juiz de instrução, com o objectivo de proteger a vítima. E prevenir situações extremas. “Com o passar do tempo, a percepção que a vítima tem dos factos pode alterar-se, por exemplo, por influências externas. Também pode acontecer que não se recorde bem do que aconteceu ou que mude de ideias.” Por experiência própria, também Fábio Carreto descreve situações em que “falta colaboração por parte da vítima”.
Incertezas e ambivalência
“Quando uma mulher inicia todo este processo de participar [a violência] à polícia,” é possível “que se sinta desprotegida”, explica Manuel Lisboa, professor de Sociologia e director do Observatório Nacional de Violência e Género (ONVG) da Universidade Nova de Lisboa. “A investigação demora e o resultado [de um processo ou julgamento] é incerto para algumas mulheres.”
A isso, podem juntar-se estigma social, pressões familiares e ambivalência afectiva. “Não é fácil este desamarrar da relação. O próprio processo de violência contribui para anular as vítimas. A capacidade delas para reagir ou denunciar vai diminuindo. Vão ficando cada vez mais fragilizadas”, descreve Manuel Lisboa.
Também por isso, antes de falar do elevado número de processos suspensos durante a investigação, Manuel Lisboa salienta que “ainda é muito elevada a percentagem de mulheres que não participa” à polícia a sua situação. Num inquérito nacional relativo a 2007 e 2008, apenas 20% dos actos mais graves, e 12% dos restantes, resultavam numa queixa.
Os dados não foram actualizados em novo inquérito, mas o sociólogo sabe por outros estudos realizados que, embora haja agora mais denúncias desde que em 2000 o crime passou a crime público (podendo a queixa ser feita por qualquer pessoa e não apenas pela vítima), “o número de mulheres que participa ainda é reduzido”.
Ou seja: os cerca de 24 mil inquéritos que, em média, dão entrada no Ministério Público por violência doméstica, segundo dados da Procuradoria-Geral da República, reflectem apenas parte da realidade.