Afinal onde acaba a legitimidade de um Governo?
Um governo pode ser ilegítimo não só por tomar medidas ilegais, mas também por tomar medidas injustas.
A legitimidade é definida como a qualidade de um governo ser conforme não só a um mandato legal, como também à justiça, à razão ou a qualquer outro mandato ético-legal.
Tendo por adquirido que o governo legítimo tem de ter por base eleições democráticas, isto é, eleições consideradas livres e legais, surge logo a primeira questão — tendo um governo sido eleito democraticamente, pode esse governo, durante o seu mandato, tornar-se ilegítimo?
De facto, um governo pode ultrapassar o mandato que lhe foi conferido, adoptando ou permitindo a adopção de medidas que não estão conformes com um Estado de direito, tais como violação do princípio da separação de poderes, de princípios gerais de direito, a corrupção, entre outras. Nestes casos poderá considerar-se que tem legitimidade para continuar a governar?
Aqui parece existir uma certa confusão entre os termos legitimidade e legalidade. Ambos são utilizados para determinar a conformidade de determinadas actividades com a lei. Não obstante, tem sido defendido que estes conceitos se podem diferenciar, na medida em que o primeiro se relaciona com o critério que permite ao executor da atividade afirmar que está conforme a lei, e, portanto, pode criar aquela obrigação aos outros. Neste sentido, a legalidade torna-se pressuposto da legitimidade uma vez que é necessário que uma actividade seja conforme à lei para que se possa verificar a existência da sua legitimidade.
Contudo, esta definição não permite resolver integralmente a questão em análise, ao não mencionar as questões ético-morais.
Com efeito, um governo pode ser ilegítimo não só por tomar medidas ilegais, mas também por tomar medidas injustas, isto é, o facto de o governo tomar medidas ilegais não é suficiente para que seja considerado ilegítimo, sendo também necessário que essas medidas sejam sentidas pelos cidadãos como injustas ou eticamente incorrectas.
Neste sentido, pode suceder que um Governo adopte medidas ilegais mas que são consideradas justas pelos cidadãos (por exemplo nacionalizações arbitrárias).
Pode, igualmente, suceder que um governo actue em conformidade com a lei mas a sociedade, que o elegeu, considere que o seu comportamento não é legítimo, no sentido de não ser justo, ético ou não estar de acordo com a vontade do povo (por exemplo porque diminuiu a prestação de serviços em determinadas áreas, extingue serviços, etc.).
Finalmente, pode também o governo tomar medidas ilegais que prejudicam os cidadãos e, como tal, ser visto e sentido como ilegítimo; aqui pode-se considerar que existe uma actuação ilegítima na sua plenitude.
Desta forma, a legitimidade de um governo pressupõe a existência de um consenso entre os membros da comunidade para aceitar a sua autoridade, pelo que um determinado poder para ser considerado legítimo tem de ter a aprovação dos cidadãos.
A ideia de legitimidade foi estudada pelo sociólogo alemão Max Weber[1], que tentou responder à tradicional questão de “qual a última razão pela qual, em toda a sociedade estável e organizada, há governantes e governados; e a relação entre uns e outros se estabelece como uma relação entre o direito, por parte dos primeiros, de comandar, e o dever, por parte dos segundos, de obedecer”.
Com efeito, um dos princípios fundadores do Estado democrático é o princípio da plenitude da soberania popular, ou seja, o princípio segundo o qual toda a soberania reside no povo. Assim, todos os poderes do estado têm a sua fonte no povo e devem ser exercidos em seu nome e no seu interesse. O povo constitui a única fonte legitimadora dos poderes soberanos, ou seja, do poder legislativo, do poder executivo e do poder judicial. Mas será mesmo assim?
Aqui suscitam-se algumas dúvidas, até porque se assim fosse a partir do momento em que um governo se tornasse ilegítimo o povo poderia exigir a sua demissão.
Ora, se um governo é democraticamente eleito pelos cidadãos, e está a cumprir o seu mandato, não se afigura que os cidadãos tenham base legal para exigir a sua demissão.
Contudo, esta resposta também parece um pouco paradoxal, dado que pressupõe que uma vez conferido um mandato, o mesmo legitima o governo, independentemente da sua actuação (claro está que existem órgãos com competência para demitir o governo, mas a análise baseia-se no poder dos cidadãos).
Verifica-se, deste modo, que não existe uma resposta clara e inequívoca para o caso de um governo poder ser considerado legítimo do ponto de vista legal, mas ilegítimo do ponto de vista dos cidadãos.
Consequentemente, o facto de um governo ser considerado legítimo, não implica que o mesmo actue sempre de forma legal e que, pelo contrário, um governo que adopte alguns actos ilegais, não implica que não possa ser considerado legítimo.
Pelo exposto, só será legítimo, na sua plenitude (ética e legal), um governo que tenha sido eleito democraticamente, que aja dentro do quadro legal do país e adopte medidas que tenham como fim o interesse público e, como tal, sejam vistas, pelos cidadãos, como justas e adequadas ao contexto do país.
[1] V. WEBER, Max. - Economia y sociedad. 2. ed. Traduzido por José Medina Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura Econômica, 11.Reimpressão, 1997.
Filipa de Andrade
Jurista
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A legitimidade é definida como a qualidade de um governo ser conforme não só a um mandato legal, como também à justiça, à razão ou a qualquer outro mandato ético-legal.
Tendo por adquirido que o governo legítimo tem de ter por base eleições democráticas, isto é, eleições consideradas livres e legais, surge logo a primeira questão — tendo um governo sido eleito democraticamente, pode esse governo, durante o seu mandato, tornar-se ilegítimo?
De facto, um governo pode ultrapassar o mandato que lhe foi conferido, adoptando ou permitindo a adopção de medidas que não estão conformes com um Estado de direito, tais como violação do princípio da separação de poderes, de princípios gerais de direito, a corrupção, entre outras. Nestes casos poderá considerar-se que tem legitimidade para continuar a governar?
Aqui parece existir uma certa confusão entre os termos legitimidade e legalidade. Ambos são utilizados para determinar a conformidade de determinadas actividades com a lei. Não obstante, tem sido defendido que estes conceitos se podem diferenciar, na medida em que o primeiro se relaciona com o critério que permite ao executor da atividade afirmar que está conforme a lei, e, portanto, pode criar aquela obrigação aos outros. Neste sentido, a legalidade torna-se pressuposto da legitimidade uma vez que é necessário que uma actividade seja conforme à lei para que se possa verificar a existência da sua legitimidade.
Contudo, esta definição não permite resolver integralmente a questão em análise, ao não mencionar as questões ético-morais.
Com efeito, um governo pode ser ilegítimo não só por tomar medidas ilegais, mas também por tomar medidas injustas, isto é, o facto de o governo tomar medidas ilegais não é suficiente para que seja considerado ilegítimo, sendo também necessário que essas medidas sejam sentidas pelos cidadãos como injustas ou eticamente incorrectas.
Neste sentido, pode suceder que um Governo adopte medidas ilegais mas que são consideradas justas pelos cidadãos (por exemplo nacionalizações arbitrárias).
Pode, igualmente, suceder que um governo actue em conformidade com a lei mas a sociedade, que o elegeu, considere que o seu comportamento não é legítimo, no sentido de não ser justo, ético ou não estar de acordo com a vontade do povo (por exemplo porque diminuiu a prestação de serviços em determinadas áreas, extingue serviços, etc.).
Finalmente, pode também o governo tomar medidas ilegais que prejudicam os cidadãos e, como tal, ser visto e sentido como ilegítimo; aqui pode-se considerar que existe uma actuação ilegítima na sua plenitude.
Desta forma, a legitimidade de um governo pressupõe a existência de um consenso entre os membros da comunidade para aceitar a sua autoridade, pelo que um determinado poder para ser considerado legítimo tem de ter a aprovação dos cidadãos.
A ideia de legitimidade foi estudada pelo sociólogo alemão Max Weber[1], que tentou responder à tradicional questão de “qual a última razão pela qual, em toda a sociedade estável e organizada, há governantes e governados; e a relação entre uns e outros se estabelece como uma relação entre o direito, por parte dos primeiros, de comandar, e o dever, por parte dos segundos, de obedecer”.
Com efeito, um dos princípios fundadores do Estado democrático é o princípio da plenitude da soberania popular, ou seja, o princípio segundo o qual toda a soberania reside no povo. Assim, todos os poderes do estado têm a sua fonte no povo e devem ser exercidos em seu nome e no seu interesse. O povo constitui a única fonte legitimadora dos poderes soberanos, ou seja, do poder legislativo, do poder executivo e do poder judicial. Mas será mesmo assim?
Aqui suscitam-se algumas dúvidas, até porque se assim fosse a partir do momento em que um governo se tornasse ilegítimo o povo poderia exigir a sua demissão.
Ora, se um governo é democraticamente eleito pelos cidadãos, e está a cumprir o seu mandato, não se afigura que os cidadãos tenham base legal para exigir a sua demissão.
Contudo, esta resposta também parece um pouco paradoxal, dado que pressupõe que uma vez conferido um mandato, o mesmo legitima o governo, independentemente da sua actuação (claro está que existem órgãos com competência para demitir o governo, mas a análise baseia-se no poder dos cidadãos).
Verifica-se, deste modo, que não existe uma resposta clara e inequívoca para o caso de um governo poder ser considerado legítimo do ponto de vista legal, mas ilegítimo do ponto de vista dos cidadãos.
Consequentemente, o facto de um governo ser considerado legítimo, não implica que o mesmo actue sempre de forma legal e que, pelo contrário, um governo que adopte alguns actos ilegais, não implica que não possa ser considerado legítimo.
Pelo exposto, só será legítimo, na sua plenitude (ética e legal), um governo que tenha sido eleito democraticamente, que aja dentro do quadro legal do país e adopte medidas que tenham como fim o interesse público e, como tal, sejam vistas, pelos cidadãos, como justas e adequadas ao contexto do país.
[1] V. WEBER, Max. - Economia y sociedad. 2. ed. Traduzido por José Medina Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura Econômica, 11.Reimpressão, 1997.
Filipa de Andrade
Jurista