Cravar os velhos

Os nossos pais inventaram uma classe média a golpes de rins dum país a preto e branco, de ricos analfabetos e pobres raquíticos da fome

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Jon Nazca/Reuters

É tudo aquilo que não deveria ser preciso, tudo aquilo que prometemos, e que nos foi prometido, que não aconteceria. É o soçobrar não só da independência do crava específico mas o melhor retrato, por tão pequeno e pormenorizado, do naufrágio do sistema e das suas e nossas expectativas.

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É tudo aquilo que não deveria ser preciso, tudo aquilo que prometemos, e que nos foi prometido, que não aconteceria. É o soçobrar não só da independência do crava específico mas o melhor retrato, por tão pequeno e pormenorizado, do naufrágio do sistema e das suas e nossas expectativas.

Os nossos pais inventaram uma classe média a golpes de rins dum país a preto e branco, de ricos analfabetos e pobres raquíticos da fome; fecharam a guerra e abriram a política e as escolas, garantiram a saúde e acabaram com as barracas, por pouco não erradicavam a fome. Nós crescemos vacinados e com sapatos, com liceu e televisão, às vezes até com carro e aparelhos que lentamente nos endireitavam os dentes. Íamos ser, necessariamente, a geração que ia pontapear o destino de miséria e significar uma mudança total do país, e para mais com sorrisos de filme americano.

Estudámos, estudámos porque podemos ser pobres mas não somos tão burros que não saibamos que a escolaridade é o mais certo meio de ascensão social... estudámos porque eventualmente descobrimos quão apaixonante é o estudo, e continuamos a estudar apesar de tudo. Sabemos mais do qualquer outra geração antes de nós, por mais que os velhos mais nhurros se gabem de saber de cor as estações da linha de Benguela ou todos os afluentes do Rovuma.

E no entanto cada vez que acordamos ainda no nosso quarto de filho-família, cada vez que voltamos a pedir-lhes dinheiro “emprestado” para pagar as contas, cada vez que lhes levamos a roupa a lavar para poupar uns trocos ou deles recebemos cabazes de batatas e cebolas “para ajudar”, cada vez que ouvimos o “Parva que Sou” dos Deolinda e dizemos sim sou eu sim somos nós todos... porra isto é o hino da geração inteira, cada vez que passamos por esta derrota, esta vergonha, esta dor de alma tomamos consciência a frio que algo correu mal, que de alguma maneira este magnífico projecto que tínhamos todos deu com os burros na água.

E se calhar os gajos têm razão, se calhar tivemos uma educação demasiado permissiva e com demasiadas expectativas, se calhar temos de reaprender a ser pobres e desabituarmo-nos de cumprir os critérios proteicos da OMS, se calhar fomos irresponsáveis por querermos estudar Belas Artes ou Ciências Humanas ou... Direito, se calhar a culpa é nossa, quase de certeza que a culpa é nossa por acharmos que aos 40 íamos estar a cuidar dos nossos pais em vez de lhes estarmos a cravar dinheiro, comida, tecto.

É capaz de ser isso... a culpa é dos velhos e do seu lirismo, achavam que ter um filho doutor ia ser como no tempo da maria cachucha, com os vizinhos de olho cheio e o puto garantido a escapar a um call-center a três países de distância?! Pois deixemo-nos disso, razão tem de certeza o Pangloss: este é com certeza o melhor dos mundos possíveis, por isso nem vale a pena moer o toutiço com alternativas, e quando o guito se revelar curto para a conta da luz: cravemos os velhos... valham-nos os velhos que ainda têm capacidade de serem cravados, valham-nos os nossos pobres velhos.