O striptease fiscal de Passos Coelho
Há 10 ou 15 anos, quando Pedro Passos Coelho e milhares de portugueses não pagaram o que deviam à Segurança Social, o sistema era uma autêntica rebaldaria. Estávamos nos primórdios do cruzamento dos dados, a informatização era deficiente, a Segurança Social tinha vários sistemas e subsistemas, não havia um registo centralizado das dívidas (cada centro distrital tinha o seu), as moradas dos contribuintes estavam muitas vezes erradas ou desactualizadas. Muitos contribuintes nem sequer recebiam notificações para pagar as dívidas e aqueles que recebiam aproveitavam as ineficiências do sistema (como o envio de cartas não registadas) para dizer que não tinham recebido e fugir deliberadamente às suas obrigações.
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Há 10 ou 15 anos, quando Pedro Passos Coelho e milhares de portugueses não pagaram o que deviam à Segurança Social, o sistema era uma autêntica rebaldaria. Estávamos nos primórdios do cruzamento dos dados, a informatização era deficiente, a Segurança Social tinha vários sistemas e subsistemas, não havia um registo centralizado das dívidas (cada centro distrital tinha o seu), as moradas dos contribuintes estavam muitas vezes erradas ou desactualizadas. Muitos contribuintes nem sequer recebiam notificações para pagar as dívidas e aqueles que recebiam aproveitavam as ineficiências do sistema (como o envio de cartas não registadas) para dizer que não tinham recebido e fugir deliberadamente às suas obrigações.
Um dos homens que mais fez para travar a evasão fiscal em Portugal foi Paulo Macedo (actual ministro das Saúde), que foi director-geral dos Impostos de 2004 a 2007. E mesmo ele, alguns se lembrarão, foi alvo de uma execução fiscal movida pelas Finanças de Benavente porque não pagou a tempo a Contribuição Autárquica (actual IMI) relativa à compra de uma casa. "Paguei quando fui lembrado para isso", justificou ele na altura ao Diário de Notícias. Uma justificação semelhante à usada esta semana por Passos Coelho quando confrontado com a notícia do PÚBLICO de que esteve cinco anos sem pagar contribuições à Segurança Social: o agora primeiro-ministro diz que teria pago a dívida "se tivesse tido a informação em tempo útil", "se a Segurança Social, tendo essa falta registada, me tivesse notificado".
Hoje, o sistema foi informatizado de tal forma que, aquilo que ganhou em eficiência, perdeu em humanidade. O sistema de penhoras passou a ser automático e dispara uma ordem de penhora assim que detecta uma dívida acima dos 150 euros. Aos funcionários do Fisco cabe apenas seleccionar o bem a penhorar. Não é por acaso que nos últimos dias temos assistido a casos que, embora com enquadramento legal, são um verdadeiro atentado à dignidade das pessoas. É o caso de Ana Dias revelado pelo Diário Económico: 52 anos, viúva, seis filhos, ganha o salário mínimo e recebeu uma ordem de penhora da casa por ter uma dívida ao Fisco de 1900 euros relativa ao não pagamento do IUC. Isto porque há cerca de cinco anos mandou abater dois carros da família e esqueceu-se de dar baixa nas Finanças. A justificação de Ana Dias é semelhante à de Passos Coelho e Paulo Macedo – um problema de memória, embora com maior dose de humildade: "Eu sei que a culpa é minha, que devia ter dado baixa dos carros nas Finanças. Mas na altura nem me lembrei disso, não tive o cuidado de pedir os papéis na sucata. Não foi por mal”.
Esta desproporcionalidade entre o valor das dívidas e os bens penhorados levou ontem o Parlamento a discutir o caso das portagens nas antigas Scuts em que uma simples infracção de 80 cêntimos pode dar origem a processos legais que custam ao infractor centenas de euros (em juros de mora, juros compensatórios, custa do processo de execução, etc…). Ainda ontem foi noticiado um caso quase kafkiano em que o Fisco deu uma ordem (e mais tarde a cancelou) para penhorar os alimentos doados por uma associação de apoio social no Porto porque esta IPSS tinha uma dívida ao Fisco. Algumas carrinhas da Coração da Cidade que transportavam a ajuda a distribuir aos mais carenciados passaram nos pórticos das antigas Scuts e não pagaram a portagem. Mais coimas, custas processuais e juros de mora e o valor a pagar ao Fisco já era de 4 mil euros. Numa alusão às notícias sobre as dívidas do primeiro-ministro, uma dirigente associativa desta IPSS desabafou ao PÚBLICO: “Ele não sabia que tinha de pagar, eu também não. Eu paguei, embora com atraso. A dívida dele prescreveu, a nossa também pode prescrever, não?”.
A Passos Coelho, pelo cargo que ocupa, pede-se-lhe que seja um exemplo. Que chefie um governo que tenha autoridade moral para cobrar, ou perdoar quando for caso disso, as dívidas de Ana Dias e da IPSS do Porto. Ninguém lhe pede que seja perfeito. Mas poucos toleram que use a demagogia para fazer contornar o que de incómodo tem este tema. E com técnicas de comunicação de vão de escada para tentar esvaziar o assunto. Colocar o tema, como tentou, no plano da disputa política chega a roçar a patetice.
Pedir desculpa, mesmo por um erro involuntário, como sugeriu António Vitorino, já seria um passo em frente. Explicar ao pormenor a sua vida fiscal e contributiva seria outro. Por alguma razão os titulares de cargos públicos e políticos são obrigados a mostrar os seus rendimentos no Tribunal Constitucional. Quando foi o caso Tecnoforma e o PS exigiu ver as suas contas bancárias, Passos Coelho respondeu que não estaria disponível para fazer um striptease das contas para deleite dos leitores de jornais. Quando não se quer mostrar nada fica sempre a sensação que se tem alguma coisa a esconder. Por muita injusta que possa ser esta frase.