O historiador cria com alma
Músico de excepção, conhecedor exímio da história da soul, Matthew E. White sonhou criar uma Stax, uma Motown – e para já vai fazendo discos à altura da História.
White apareceu, do nada, em 2012, com Big Inner, a sua estreia, que em última instância pode ser descrito como um álbum soul – imaculado nos arranjos e nos refrães, com aquela respiração dos clássicos muito própria de quem cresceu a ouvir os grandes compositores, as grandes vozes, as grandes canções. “Big Inner é muito mais uma peça de género do que Fresh Blood”, diz White, ao telefone de sua casa em Richmond, EUA, onde tem um pequeno estúdio na cave – é lá que passa a maior parte das suas horas, é lá que grava as demos do que depois vêm a ser os seus discos.
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White apareceu, do nada, em 2012, com Big Inner, a sua estreia, que em última instância pode ser descrito como um álbum soul – imaculado nos arranjos e nos refrães, com aquela respiração dos clássicos muito própria de quem cresceu a ouvir os grandes compositores, as grandes vozes, as grandes canções. “Big Inner é muito mais uma peça de género do que Fresh Blood”, diz White, ao telefone de sua casa em Richmond, EUA, onde tem um pequeno estúdio na cave – é lá que passa a maior parte das suas horas, é lá que grava as demos do que depois vêm a ser os seus discos.
Fazer ou não peças de género é um assunto importante para White: Fresh Blood também pode ser etiquetado como soul (estão lá as progressões típicas do género, os sopros, as cordas grandiosas), mas o seu criador “não [quer] ser visto como um revivalista”. É um tipo “pragmático” e percebe que as pessoas assim o etiquetem, “porque é assim que as coisas funcionam: pões saxofones num disco e ou lhe chamam soul ou lhe chamam jazz”. Mas ele tem a esperança de que “as pessoas percebam que, apesar de isto vir de uma tradição, soa moderno”.
A tradição também é um assunto importante para White. De tal modo que, há uns anos, um relações públicas tentou passar a tanga de que o E. entre Matthew e White era de Ellington, numa referência ao Duke. (Não é.) Mais do que um revivalista, ele é daqueles tolinhos que sabem quem escreveu as partes de metais de certo single de 1967, nunca reeditado em CD, ou quem era o engenheiro de som do lado B de um esquecido LP. A sua admiração pela forma como as coisas funcionavam nos tempos de glória da soul é tanta que tentou reproduzir métodos e organização: a Stax e a Motown tinham equipas de compositores residentes que escreviam canções para os cantores residentes, arranjadas pelos arranjadores residentes? Então White decidiu fundar a Spacebomb Records com uma equipa de músicos residentes.
Big Inner foi o primeiro longa-duração lançado na Spacebomb. Desde então, White colaborou com gente como Sharon van Etten ou os Mountain Goats e a editora cresceu devagarinho, tendo acabado de encontrar mais um achado: Natalie Prass, cujo disco homónimo acabou de ser editado. Um dia destes temos de falar de Natalie Prass (e não é que o fazemos já hoje nas páginas que se seguem?).
“Fiquei surpreendido por Big Inner ser ouvido”, confessa White, que ainda está a digerir ter-se tornado, do dia para a noite, artista de culto e conseguir fazer da sua editora o que sonhara. “Não faço discos para ser mediano e estava orgulhoso do disco, não o escondo. Mas o alcance que teve foi uma grande surpresa. A Madonna falou dele, e isso é algo que nunca ninguém espera. À conta do disco andei em digressão durante oito meses, foi de loucos. Pensei que era um bom álbum mas que as pessoas não iam ligar nenhuma."
Imaginem então um miúdo branco “que cresceu a ouvir Curtis Mayfield” e vê o seu disco de estreia chegar à Billboard , enquanto a Paste lhe chama Best New Act de 2012, e a Consequence of Sound o apelida de Rookie of the Year. “Há um bocadinho de pressão”, diz White, eufemisticamente, e depois ri-se. É acessível e está longe de ser daqueles tipos que têm um discurso pré-formatado, como um guião que se debita e repete ad nauseum. A dado momento pede desculpa por não lhe “ocorrer melhor expressão” para descrever o que é compor um disco “do que o velho cliché de 1% de inspiração e 99% de transpiração”. “Gostava de ter uma frase fantástica e que ficasse no ouvido, resumindo como tudo isto se passa, e que pudesses pôr no teu jornal para deixar toda a gente de boca aberta, mas não tenho”, acrescenta – e está mais do que desculpado.
Não que ele queira “tirar mistério” ao seu métier, porque “também há algo de insondável nisto: tem-se ideias, está-se obcecado por essas ideias e como se pode pô-las em prática”. Essa é “a parte em que há alguma magia: ouves qualquer coisa na tua cabeça, uma pequena melodia, um arranjo, um ritmo, e sonhas com aquilo – até chegares aos instrumentos, tocares e tudo falhar”. Momento em que começa “o trabalho duro”: “Bem”, explica White, “primeiro pegas nas ideias que eram brilhantes e não funcionam e tentas transformá-las de modo a chegar não sabes bem ao quê. E elas não funcionam de novo. Mas se funcionarem, então ficas obcecado com o som e por fim tens de decidir o que entra e o que sai”.
Em tudo isto há um factor essencial, que é o medo. “Os artistas pop”, pondera White, “têm tempo para desenvolver uma voz – e essa voz sai nos primeiros quatro ou cinco discos”. Depois, acrescenta, em tom humorístico, como que a rir-se de uma desgraça que está já antecipar, “a sua voz, a sua novidade esgotam-se”.
Um sítio especial
Ora, ao longo dos anos, Matthew teve “muitas ideias para quatro ou cinco discos”, não seus, mas da editora, que lançou meia-dúzia deles. Pelo que agora vê-se na situação de ter “esgotado as ideias”. A sensação que ele tem é de que Fresh Blood “depende do que aconteceu há cinco ou dez ou 15 anos”. “Disse a toda a gente que trabalhou em Fresh Blood que o disco não ia ser bom ou mau dependendo do dia – o mal está feito: ou já aprendi ou não. Depois é tudo uma questão de gosto. Alguém faz uma batida e um diz ‘isto é bom’, enquanto outro torce o nariz. Como produtor, sou eu que escolho se fica ou sai e há 10 mil decisões dessas para tomar."
Neste momento, ele torna-se um bocadinho técnico nos detalhes – é que White não é o típico compositor pop que conhece três acordes e aqui vai disto. Estudou música, sabe o que é uma pauta, expressões como “sétima aumentada” não têm mistério algum para ele. O que pode ser um problema: quando se aprendeu música e ao mesmo se conhece tanta da que já foi feita, não se corre o risco de paralisar por medo de repetir?
“Percebo a questão”, começa White. “Mas não tenho opção, pois não? O que é que eu posso fazer? Não consigo desaprender. E nunca vou recusar saber mais de música – ou de qualquer outra parte da vida. Gostava até de saber mais”, diz, antes de acrescentar que o seu sonho é “ser um sábio”. “Mas há uma grande diferença entre saber muita coisa sobre música e dar bom uso a isso”, continua. “Posso escrever todos os arranjos de metais que quiser, mas, se usar mal o que sei, então isso não vale de nada. Quanto mais se sabe, mais decisões se têm de tomar, porque se encontram mais problemas. Mas se tiveres arcaboiço para lidar com isso, o conhecimento permite chegar a um sítio especial."
Sítios especiais é coisa que não falta em Fresh Blood: a doçura dos metais e das cordas em Take care my baby, tema que abre o disco; a ponte e o refrão com piano martelado de Fruit Trees; a lindíssima melancolia de Holy Moly, com os violinos discretamente a caírem por trás da progressão da melodia como uma cortina que desce e deixa a sala na sombra. Quando se chega a Feeling good is good enough tem de se admirar White: começa triste e com o piano ao centro e lentamente vão surgindo coros e metais num refrão em crescendo, com as cordas a subirem – é preciso sabedoria para arriscar que um tema arranque tão devagar, que permaneça tanto tempo no azul antes de revelar toda a sua luz. Em Tranquility, White lembra o Dennis Wilson do tristíssimo Pacific Ocean Blue, único disco desse trágico membro dos Beach Boys.
Não se pode é escapar a Rock & roll is cold, o single. Quase parece um ataque a esse género: White canta “Everybody gets that gospel licks are gifts” enquanto o “Rock & roll/ it ain’t got no soul”. Porquê, Matthew, porquê tratar tão mal assim o rock?
Ele ri-se: “Ah, é uma canção lúdica e não é demasiado séria, apesar de ser uma visão da História. Acho que o rock’n’roll acabou, o que não quer dizer que não haja indivíduos que o façam bem. Como o jazz. O rock tem 65 anos e tornou-se uma caricatura de si próprio. A Beyoncé, o Frank Ocean, esses fazem música vibrante, porque ainda vem da raiz. Mas depois dos Rolling Stones o rock cristalizou-se e codificou. Já o r’n’b está muito vivo. Mas o divertido nesse tema é que é uma canção rock’n’roll, com a progressão habitual do rock. Acho que consigo escapar sem levar tareia porque é alegre e nas canções alegres podes dizer tudo."
As últimas palavras de White são “Eu não quero esquecer a História”, frase que soa mais pesada do que o tom com que ele a diz. Mas talvez White seja isso: um tipo extremamente sério que tem a arte e a sabedoria para fazer canções complexas que parecem simples e encapsulam décadas de história. Não lhe chamem revivalista, chamem-lhe historiador.