A imponente força da fragilidade

A voz frágil e doce casa na perfeição com a força desta música. Natalie Prass é um tratado soul (e algumas coisas mais) intemporal.

Foto
DR

Um coração partido em nove canções, num álbum saído da fábrica de artesãos musicais que é a Spacebomb, casa fundada por Matthew E. White em Richmond, Virgínia, que se tem revelado berço de música absolutamente desarmante pelo talento na releitura da soul, da country ou do rhythm’n’blues, pela forma como cada canção é criada com cuidado de mestre relojoeiro tão interessado na estética da peça quanto na perfeição da afinação.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Um coração partido em nove canções, num álbum saído da fábrica de artesãos musicais que é a Spacebomb, casa fundada por Matthew E. White em Richmond, Virgínia, que se tem revelado berço de música absolutamente desarmante pelo talento na releitura da soul, da country ou do rhythm’n’blues, pela forma como cada canção é criada com cuidado de mestre relojoeiro tão interessado na estética da peça quanto na perfeição da afinação.

Depois de Big Inner, a estreia de Matthew E. White e primeira revelação do que a Spacebomb congeminava entre as quatro paredes dos seus estúdios, Natalie Prass, primeiro álbum da cantora americana de 28 anos, prova que há um banda de loucos geniais a reinventar a “Grande Música Americana” para tempos de miniaturização. E a fazê-lo com sucesso assinalável.

Matthew E. White, de cujo segundo álbum damos conta nesta edição do Ípsilon, tornou-se entretanto nome respeitado e seguido com admiração. Natalie Prass parece seguir pelo mesmo caminho. O álbum tem sido elogiado mundo fora e os concertos são recebidos com ansiedade. A espera foi longa (Natalie Prass foi gravado há três anos), mas valeu a pena. “Tudo o que tem acontecido tem sido muito bom, principalmente porque já não tinha quaisquer expectativas. O álbum já estava pronto há tanto tempo que já nem sabia o que esperar”, explica Prass desde Edimburgo, a cidade escocesa onde parara para cumprir mais uma data da actual digressão europeia como suporte de Ryan Adams. “Não queria saber se as pessoas iriam percebê-lo ou gostar dele. Queria que saísse e que estivesse disponível no mundo” – e o mundo agradece esta dor sublimada em canções com textura de clássicos intemporais, sofridos, tocantes, vitoriosos sobre a dor que os inspirou.

De onde saíram estas orquestrações opulentas, secção de cordas contra secção de metais, harpas sobre baixo e bateria tocados com mestria assombrosa, tudo ao serviço dessa obra maior que é a canção? “Quando decidi trabalhar com a Spacebomb, a Spacebomb era uma ideia, não existia mais nada além de uma ideia, mas eles tinham uma visão muito nítida do que queriam”, explica Natalie Prass.

Há muito amiga de Matthew E. White, Prass, nascida em Cleveland, nove anos imersa na competitiva comunidade musical de Nashville, onde a country pastilha-elástica convive com um glamour hipster recente, sabia que o objectivo daquele grupo de músicos era criar uma editora à antiga, com banda residente a tocar em todos os álbuns para criar uma verdadeira identidade musical. Porém, ao contrário da Stax e da Motown de outros tempos, magníficas linhas de montagem de produção ininterrupta, esta editora criaria requintadas peças de colecção (no que seria reflexo da atitude criativa que os guiava e de um inevitável pragmatismo: o dinheiro não abunda). “Para mim, [o início] foi um bocado assustador. Dei por mim a questionar-me, ‘é um sonho ou será que é assim que as pessoas fazem as coisas agora?’. A questionar-se e a questioná-los: ‘Mas quantas pessoas mesmo é que vão tocar nisto?’”

Naquilo que acabou por ser Natalie Prass tocaram cerca de 30 músicos. Disco editado, confirmamos. Do rhythm’n’blues acetinado de Bird of prey, suavizado pela presença das flautas, a essa portentosa Christy feita apenas de voz como sussurro encantatório e orquestração impressionista (Nick Drake iria emocionar-se a ouvi-la); da balada de coração exposto, soul absurdamente clássica, que é Why don’t you believe in me, à It is you que parece saída dos estúdios da Columbia, anos 1950, directamente para banda-sonora da Hollywood ainda dourada, valeu a pena cada segundo de trabalho gasto. “Eles correram um grande risco comigo, porque sendo óbvio que era uma cantora e compositora de muito trabalho, não tinha público nenhum”, diz Natalie Prass. Mas eles, as pessoas da Spacebomb, sabiam. Tinham perfeita consciência do seu próprio talento. E intuíram certeiramente quanto ao de Prass.

Foto
DR

Desespero e força
É uma história conhecida de todos. Um casal e uma relação a esmorecer, desencontros que dão em pequenas mentiras, mentiras que sabem a traição, o amor que foge, o adeus que se torna obrigatório. “So tonight when you’re out/ you’ll come back to an empty house/ with a note signed, sincerely/ your fool”. Prass gravou estes versos, de Your fool, em 2012. O sentimento atravessa o álbum. “Escrevo a toda a hora, é a minha terapia. Se não o fizer, sinto que vou explodir”, afirma. “Mas a minha intenção não era fazer um álbum sobre uma separação”, à Blood on the Tracks, de Bob Dylan, ou About Farewell, de Alela Diane.

Com mais de 20 canções por onde escolher, Natalie Prass e Matthew E. White começaram a dirigir-se instintivamente para aquelas em que a dor de amor estava mais presente. “Procurávamos as que melhor se adequariam ao estilo que pretendíamos e percebemos que as ideais eram as que reflectiam esses sentimentos." Um acaso, portanto. Ou nem por isso: “Na verdade é um tema sobre o qual escrevo muito”, concede. “E ouço muito R&B onde esse tema é recorrente. A maioria da música a que ligo mais tem essa carga emocional, portanto…”

Explicado aquilo, começa a citar títulos que lhe servem de inspiração recorrente. O homónimo dos Delfonics de 1970, o Presenting Dionne Warwick, produzido por Burt Bacharach e Hal David, de 1963, e referência maior para Prass. As canções dos anos 1960 da italiana Mina Mazzini, o álbum de 1969 de Gal Costa (no final, confessará ainda que gostaria de aprender português para cantar como Elis Regina), ou outro homónimo, Janet Jackson (1993), que classifica como “uma inspiração monstruosa” e do qual tem retirado Any time, any place para tocar nos concertos. “Quando ouço essas canções e aquelas mulheres a comunicarem as suas experiências, é até difícil lidar com quão bonita é a forma como o fazem. Tem desespero mas, ao mesmo tempo, uma grande força. Queria captar esse espírito. É esse o tipo de música que ressoa em mim." Prass aprendeu a lição na perfeição. “Trabalho no duro, mas também sou o raio de uma rapariga e não tenho medo da minha feminilidade." Ela domina com mestria aquela voz pequena, tal como o fazia com doçura Diana Ross, tal como o fazia com segurança e convicção Dionne Warwick.

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/IMAGEM_368_245.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/IMAGEM_368_245.cshtml
IMAGEM_368_245

Antes de se juntar à equipa da Spacebomb, passou nove anos em Nashville. Na cidade, aprendeu “a lutar para continuar a trabalhar”, percebeu que “se não formos muito bons e sérios, ninguém vai perder tempo connosco”. Os aspectos negativos acabaram também por moldá-la. “A cidade vive tão refém de uma fórmula e é tão virada para o negócio que, com o tempo, tornei-me teimosa. Não era aquilo que queria fazer."

Depois chegou o amigo Matthew E. White e, “num processo muito longo e meticuloso”, a guiar entre Nashville e Richmond para escolher canções, discuti-las e gravá-las entre aquele grupo de músicos “com um entendimento bizarro entre todos eles, como se todos fossem feitos da mesma matéria”, começou a nascer Natalie Prass. Ela a impressionar-se com a secção rítmica: “O Cameron Ralston é um monstro do baixo, deviam editar uma versão do álbum só com baixo e bateria para as pessoas ouvirem magia." Ela a tentar compreender como aconteceram os arranjos que lhe ofereceram às canções: “O Matt compôs os arranjos de metais e o Trey [Pollard, também guitarrista pedal-steel] compôs os arranjos de sopros, completamente separados, sem falarem um com o outro, mas quando tudo se juntou no estúdio fiquei de boca aberta de espanto: complementavam-se na perfeição."

Depois, era suposto o álbum sair. Mas foi editado Big Inner, de Matthew E. White, e o sucesso que alcançou obrigou a pequena editora a concentrar nele todas as atenções. Natalie Prass esperou. Continuou a fazer e a vender as suas sweatshirts para cães, forma de suprir o dinheiro que não chega bem contadinho todos os meses à conta de um músico sem carreira estabelecida, e andou uma temporada a acompanhar Jenny Lewis enquanto teclista e vocalista de apoio.

No início de 2015, Natalie Prass foi por fim libertado. Ela já não é a mulher naquelas canções. Vê-as como “personagens” a quem reconhece as doras e a quem dá voz. O desgosto ficou lá atrás. Ficaram estas canções, que descobrimos três anos depois do seu nascimento. Podiam ter sido gravadas há quatro décadas e não temos dúvidas de que poderia tê-las guardado para 2035. Nada se perderia. A intemporalidade é um posto. Natalie Prass garantiu-o.