Manuscrito inédito de Pascoaes gera polémica em Amarante

A Câmara de Amarante comprou o espólio de Teixeira de Pascoaes por 420 mil euros e entregou depois um manuscrito inédito a uma afilhada do escritor. O ex-presidente da autarquia, Armindo Abreu, diz que se limitou a respeitar o testamento de Pascoaes.

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A entrega dos manuscritos, que Adelaide Teixeira vinha reclamando com base no testamento deixado por Pascoaes, acabou por só se concretizar já após a entrada em funções, em Outubro de 2013, do actual executivo camarário, presidido pelo social-democrata José Luís Gaspar, mas dando cumprimento ao despacho assinado por Armindo Abreu no final do seu mandato.

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A entrega dos manuscritos, que Adelaide Teixeira vinha reclamando com base no testamento deixado por Pascoaes, acabou por só se concretizar já após a entrada em funções, em Outubro de 2013, do actual executivo camarário, presidido pelo social-democrata José Luís Gaspar, mas dando cumprimento ao despacho assinado por Armindo Abreu no final do seu mandato.

Esta decisão do ex-presidente, tomada há mais de um ano, só recentemente chegou ao conhecimento público. No programa de rádio O Lado B da Política, um fórum de debate de assuntos locais, o coronel João Sardoeira, amigo da família de Pascoaes, e o centrista Fernando Moura Lopes acusaram Armindo Abreu de ter entregado parte do espólio de Pascoaes comprado pela autarquia, e de o ter feito através de um despacho de que não deu conhecimento à vereação. 

Sardoeira acrescenta que “é preciso perceber se falta mais alguma coisa”, e observa que o espólio, “que se julgaria que iria ficar na Biblioteca, onde estão já outros espólios literários, foi afinal encaixotado e armazenado na cave do Museu Amadeo Souza Cardoso, onde ainda se encontra indisponível”. A opção pelo museu, deveu-se, segundo Armindo Abreu afirmou ao PÚBLICO, a este “oferecer melhores condições de segurança”.

Moura Lopes citou nesse programa uma carta enviada à autarquia por Adelaide Teixeira, na qual esta, após agradecer “com apreço” o “cuidado” que Armindo Abreu tivera com o manuscrito inédito, escreve: “pois não o fez constar do espólio comprado por saber que me pertence”. A carta foi enviada em Agosto de 2013, após a compra do espólio e antes de o ex-presidente da Câmara ter assinado o despacho de entrega dos manuscritos.

“Parece uma estratégia de ‘eu compro e a seguir você tem’”, disse então Moura Lopes, defendendo que o assunto “necessita urgentemente de clarificação”. Também João Sardoeira acha que “havia desde o início a intenção de desviar estes manuscritos para a afilhada de Pascoaes” e argumenta que, mesmo existindo dúvidas, “não cabia ao presidente decidir se a senhora tinha ou não tinha direito a eles”.

Em declarações ao PÚBLICO, Sardoeira censura ainda Abreu por não ter ao menos pedido à Biblioteca Nacional que fizesse uma cópia certificada dos documentos que mandou entregar. “Como sabemos o que vai acontecer agora aos manuscritos?”, pergunta. “Podem perder-se, haver um incêndio, ser vendidos”. Este neto de Albano Sardoeira, fundador do Museu Amadeo Souza Cardoso e patrono da Biblioteca Municipal, critica também a actual gestão camarária, que “está a par do assunto há meses e ainda não agiu”. 

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Ainda antes de se tornar pela primeira vez presidente da Câmara de Amarante, em 1995, Armindo Abreu foi advogado de Adelaide Teixeira, designadamente em processos de disputas de terrenos que envolviam a família de Pascoaes, disse ao PÚBLICO João Vasconcelos, sobrinho-neto do escritor. Ainda hoje as duas famílias têm pendente em tribunal um litígio em torno de uma capela.

Armindo Abreu defende que se limitou a “respeitar a memória do poeta”, entregando a Adelaide Teixeira o que Pascoaes lhe doou em testamento, e disse ao PÚBLICO assumir inteiramente a sua decisão, ilibando de quaisquer responsabilidades o seu sucessor José Luís Gaspar. Abreu, que preside actualmente à Assembleia Municipal de Amarante, acredita ter agido “em benefício do interesse público”, já que, argumenta, as Cartas a Uma Poetisa poderão agora ser finalmente publicadas. E está “convencido de que será possível chegar a acordo com eles [a afilhada de Pascoaes e o seu companheiro, Lino Couto] para que, em condições de total transparência, o manuscrito fique depositado na Biblioteca” de Amarante.

Até hoje só foram publicadas duas cartas desta ficção epistolar que Pascoaes nunca chegou a publicar em vida: uma num livro que Mário Garcia dedicou ao poeta, e outra na revista Cadernos de Tâmega. Lino Couto garante que em ambos os casos as cartas foram transcritas a partir de cópias dactilografadas, já que a família de Pascoaes, garante, sempre afirmara não ter o manuscrito e nunca o apresentou publicamente.

“Se o manuscrito de Cartas a Uma Poetisa estivesse expressamente mencionado no espólio comprado pela Câmara, tínhamos que pôr uma acção em tribunal para garantir que ele nos era entregue”, diz o companheiro de Adelaide Teixeira (estão tecnicamente divorciados, mas não se separaram), que tem já propostas para publicar o inédito de Pascoaes. Segundo afirmou ao PÚBLICO, só não se decidiu ainda porque a tiragem sugerida (500 exemplares) lhe parece demasiado pequena. 

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Um testamento de 1948
A actual polémica tem as suas verdadeiras raízes num papel com mais de 66 anos, o testamento de Teixeira de Pascoaes, que este assinou, diante de um notário e das devidas testemunhas, no dia 30 de Novembro de 1948, poucos anos antes de morrer, em 1952. Instituindo como principal herdeiro o seu sobrinho João Vasconcelos, o autor de Regresso ao Paraíso e S. Paulo legava à afilhada Adelaide, filha do seu empregado José Teixeira, a posse ou o usufruto de várias propriedades, e ainda seis obras literárias da sua autoria, algumas já então publicadas, outras não.

Diz o testamento, que expressa bem o afecto que o escritor dedicava a esta sua afilhada: “Lega ainda à mesma sua afilhada Adelaide as seguintes obras, dele testador: Idílio Pastoril, Dois Jornalistas, O anjo e a Bruxa, O Senhor Fulano, Uma Fábula e Cartas a uma Poetisa, pois deve ao amor que lhe consagra os últimos lampejos da sua inspiração”.

Lino Couto diz que, após a morte do escritor, a família de Adelaide Teixeira recebeu efectivamente alguns dos manuscritos referidos no testamento, como por exemplo o de Uma Fábula, uma obra então inédita que a afilhada de Pascoaes veio a fazer publicar, em 1978, na editora portuense Brasília. Mas não entregou outros, cujo paradeiro terá dito desconhecer. Entre eles, o de Cartas a Uma Poetisa, e também o de Idílio Pastoril, título inicialmente atribuído por Pascoaes à primeira novela que escreveu, O Empecido, que ele próprio tardiamente publicou em 1950.

Com base no despacho de Armindo Abreu, Adelaide Teixeira recebeu não apenas cinco diferentes versões manuscritas de Cartas a Uma Poetisa, mas também o manuscrito de Idílio Pastoril. Acontece que. nas páginas iniciais da agenda em que Pascoaes escreveu esta obra, encontrava-se ainda um outro manuscrito, intitulado Cartas a Um Poeta, sem relação com As Cartas a Uma Poetisa nem, tanto quanto se sabe, com O Empecido. Por sugestão da directora da Biblioteca Municipal de Amarante, explicou Armindo Abreu ao PÚBLICO, achou-se preferível “não rasgar essas páginas”, de modo que a afilhada de Pascoaes recebeu a agenda intacta, e com ela um manuscrito que não constava das obras que lhe tinham sido legadas pelo poeta.

A questão dos manuscritos reclamados por Adelaide Teixeira nunca foi publicamente referida durante o processo de compra do espólio, embora Sardoeira garanta que já em 2002, quando se comemorou o cinquentenário da morte de Pascoaes, Armindo Abreu sabia da existência destes manuscritos. “A família da afilhada de Pascoaes falou na altura com o presidente da Câmara, com a Assírio & Alvim, então editora da obra de Pascoaes, e com António Mega Ferreira [que estava a organizar a exposição Os Dias de Pascoaes no Museu de Amarante], tentando reclamar os manuscritos, que nunca lhe foram dados”, diz Sardoeira.

Autor da Fotobiografia de Pascoaes e de outras obras sobre o autor, Mega Ferreira foi uma das pessoas que ajudaram a Câmara a comprar o espólio, enviando a Armindo Abreu uma carta em que sublinhava a importância desse acervo “de valor literário e histórico inestimável”, destacando os manuscritos, a correspondência ou “a valiosa colecção de desenhos”, e elogiando a viúva de João de Vasconcelos, Maria Amélia Teixeira de Vasconcelos, “pela forma como soube defender e preservar esse património” ao longo de décadas.

O estado de saúde da actual proprietária da Casa de Pascoaes, com quem a Câmara negociou a compra do espólio, não permitiu ao PÚBLICO ouvi-la, mas o seu filho João explica que a autarquia comprou tudo o que estava nas três salas da chamada “ala de Pascoaes”, incluindo os móveis fabricados segundo desenho do próprio escritor, a única parte do acervo que ainda se encontra na casa de S. João de Gatão. João Vasconcelos diz que os manuscritos depois entregues a Adelaide Teixeira estavam nesses aposentos e “foram levados juntamente com tudo o resto”, e que a família sempre presumiu que integravam o conjunto comprado pela autarquia. “Nós vendemos tudo o que lá estava, foi isso que a Câmara exigiu”, diz o sobrinho-neto de Pascoaes.

 Contradições
Armindo Abreu retorque que a Câmara não podia adquirir à família de Pascoaes o que não era dela. “Só comprámos o espólio de Teixeira de Pascoaes que era propriedade da Casa de Pascoaes”. Segundo o ex-presidente, “quando os funcionários da Câmara foram fazer o inventário do espólio, esses manuscritos inéditos não apareceram, e só depois da compra, quando se foi buscar o espólio, é que os encontraram”.

Logo nessa altura, diz, a afilhada de Pascoaes reclamou pessoalmente junto dele a entrega dos manuscritos. Ainda antes de lhe endereçar a carta citada por Moura e Silva, que Abreu diz ter “passagens capciosas, porque podem dar a entender que houve um conluio”. De acordo com Armindo Abreu, foi ele próprio que, “após um período de hesitação”, sugeriu a Adelaide Teixeira que lhe escrevesse a reclamar os manuscritos. “E depois mandei entregar-lhos”, diz, defendendo que “o modo como os manuscritos foram guardados em Pascoaes”, que considera configurar “uma posse oculta”, invalida o argumento de que a revindicação da afilhada do poeta teria perdido validade.

Abreu menoriza também o argumento – utilizado por Moura e Silva e João Sardoeira no referido programa de rádio – de que não faria sentido a autarquia reconhecer a Adelaide Teixeira direitos que ela própria nunca tentara fazer valer em tribunal, quando esta até não hesitou em processar a família de Pascoaes por questões relacionadas com terrenos. “De que é que servia ir a tribunal, se a família dizia que não tinha os manuscritos?”, pergunta Abreu.

Se parece provável que a família de Pascoaes nunca tenha feito publicar as Cartas a Uma Poetisa para evitar questões com Adelaide Teixeira, já o facto de a família desta última nunca ter reclamado os manuscritos em tribunal pode ter, diz João Sardoeira, uma explicação diferente da que adianta o autarca. “Podem ter tido receio de ficar sem os manuscritos que já tinham, porque o testamento diz que Pascoaes doa as obras, o que poderá ser interpretado como dizendo apenas respeito aos direitos de autor, e não aos manuscritos."

Lino Couto defende a actuação de Armindo Abreu. “Sabia que não podia negociar o que não era da família e teve o cuidado de perguntar o que era nosso”, diz Lino Couto, que acha que o “único erro” cometido pelo autarca foi o de “ter feito crer que ia comprar o espólio todo”.

Couto acha mal que se esteja a atacar Abreu e que “as pessoas que retiveram estas coisas na Casa de Pascoaes durante tanto tempo estejam incólumes”. E assegura: “Falam em conluio, mas a mim ninguém me fez favor nenhum e eu não paguei um tostão."

No entanto, a sua versão dos acontecimentos não parece condizer exactamente com a de Armindo Abreu. Lino Couto diz que falou com os funcionários da autarquia que estavam a fazer o inventário do espólio na Casa de Pascoaes e soube por um deles, cujo nome não adianta, que estavam lá as Cartas a Uma Poetisa. “A tal carta que escrevemos à Câmara”, explica, “foi uma maneira de divulgar, de dizer que sabíamos que as Cartas estavam lá”.

Um imbróglio que muito provavelmente virá a ser legalmente dirimido. "Se a Câmara não fizer nada, eu próprio levo isto a tribunal”, garante João Sardoeira.