Amputados precisam de alguém que lhes diga que o mundo não acabou

Mulher que perdeu uma perna num acidente aos 34 anos cria Associação Nacional dos Amputados, destinada a "tirar as pessoas amputadas de casa, mudar mentalidades, criar aceitação".

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Paula Leite, que perdeu parte de uma perna aos 34 anos, sentiu que faltava apoio moral aos recém--amputados no hospital Paulo Pimenta

Ninguém se sentou ao lado dela para lhe dizer, com voz delicada, olhar empático, que a perna já não estava lá. Havia mais três pessoas doentes deitadas naquele quarto. Paula Leite viu uma delas levantar-se, caminhar até ao lavatório, lavar os dentes. Tentou fazer o mesmo e não foi capaz. “Tudo o que estava a minha volta foi parar ao chão”, recorda. O copo com água, a jarra com rosas, o iogurte que a mãe trouxera. “Não foi fácil. Como é que hei-de-dizer isto? Numa manhã, era perfeita. Noutra, faltava-me uma perna. Eu continuo perfeita, mas naquela altura não percebia isso.”

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Ninguém se sentou ao lado dela para lhe dizer, com voz delicada, olhar empático, que a perna já não estava lá. Havia mais três pessoas doentes deitadas naquele quarto. Paula Leite viu uma delas levantar-se, caminhar até ao lavatório, lavar os dentes. Tentou fazer o mesmo e não foi capaz. “Tudo o que estava a minha volta foi parar ao chão”, recorda. O copo com água, a jarra com rosas, o iogurte que a mãe trouxera. “Não foi fácil. Como é que hei-de-dizer isto? Numa manhã, era perfeita. Noutra, faltava-me uma perna. Eu continuo perfeita, mas naquela altura não percebia isso.”

É um instante que se eterniza. António Ferreira tem 36 anos, perdeu os dedos da mão direita aos 11 e recorda aquele momento como se tivesse ocorrido há um mês ou há uma semana. “Lembro-me de acordar e de gritar. Tinha uma bola na mão. Percebi logo que tinha ficado sem dedos. Pensei que o mundo tinha acabado, mas adormeci e no dia a seguir o mundo estava lá.”

Não é que estivessem sozinhos naquele susto. Tinham familiares e amigos. Só que nem uns nem outros tinham vivido aquilo na primeira pessoa. Impossível saber com rigor o que estavam a sentir. E não lhes podiam servir de espelho, embora todos eles tivessem muitas outras serventias. Parece-lhes que ajudaria ter tido alguém que já tivesse passado por aquilo a dizer-lhes que o mundo não acabara, que a vida recomeçaria, que uma pessoa não é menos pessoa porque perdeu uma mão ou um braço ou um pé ou uma perna ou os dois braços ou as duas pernas. E criaram a Associação Nacional dos Amputados. Ela é presidente, ele é secretário.

“Há uma necessidade muito grande de apoio moral nos hospitais antes das pessoas virem cá para fora”, considera Paula. “Senti muito essa falta.” Por isso quer tanto criar voluntariado específico para pessoas recém-amputadas – de repente, na sequência de um acidente, ou com  hora marcada, na sequência de uma doença.

Não tardou a perceber que existia desde 2012 a Associação Portuguesa de Amputados (www.andamus.pt), mas queria criar algo de raiz. A Associação Nacional dos Amputados foi formalizada no final do ano passado em Vila Nova de Gaia. Está na fase de divulgação e de angariação de sócios.

Para já, a associação reúne 37 pessoas, a maior parte dos quais familiares e amigas de pessoas amputadas. Delineia planos que passam pelo voluntariado especializado e por tertúlias e outros eventos que ajudem a “tirar as pessoas amputadas de casa, mudar mentalidades, criar aceitação”.

“O mundo é uma selva”
Todo o trabalho que possa ser feito lhes parece precioso. “As pessoas perdem um bocado o respeito das outras quando lhes falta alguma coisa”, nota António. “Depois do acidente, os meus amigos começaram a gozar comigo. Tive de lhes mostrar que tinha perdido alguma coisa mas  continuava ali, continuava a ser eu. Tive de ser mauzinho às vezes...

Nem quer pensar como seria hoje a sua vida, se não fosse a boa vontade da irmã e do cunhado. Teve vários trabalhos, sempre temporários. Não sabe quanto desta precariedade resulta da baixa escolaridade, do estado do mercado de trabalho, e quanto resulta de discriminação. “Acaba por ser desgastante”, diz. “A pessoa vai a uma entrevista de emprego com a mão no bolso e está tudo bem. Quando se levanta e tira a mão do bolso, parece que acaba tudo...”

Era só um miúdo quando perdeu os dedos. “Tinha um fogueteiro perto de casa. Aquilo estava aberto. Tínhamos a mania a de ir lá buscar umas bombitas para estourar. Naquele dia, apanhámos umas maiorzinhas e eu tive azar.”

Paula estava noutra fase da vida quando o carro a arrastou na A4. Tinha 34 anos. Era casada. Tinha um filho adolescente. Trabalhara numa fábrica têxtil perto de 20 anos. A fábrica fechara, como acontecera a tantas outras, e ela estava a tratar de se reciclar. Fizera um curso de costura industrial. Naquele dia, antes de ir para o estágio, numa loja de arranjos de costura, no Porto, tivera de ir à Maia, ao Instituto de Informação, Apoio e Formação Empresarial, tratar de um assunto.

Esteve quatro meses no hospital. “Fui operada à cabeça, porque tive traumatismo craniano. E aos intestinos, porque apanhei uma bactéria hospitalar que os perfurou em dois sítios.” O joelho ficou com dois centímetros de articulação. Para aproveitá-lo, os médicos fizeram-lhe vários enxertos. “Os enxertos não colavam. Tive de fazer quatro cirurgias ao coto de amputação.”

Teimava em usar prótese, apesar de as feridas não cicatrizarem. “Tinha muitas vezes de pôr algodão para absorver o sangue. Usava canadianas porque não aguentava as dores.” Um dia, viu desfilar uma rapariga com um joelho pneumático e ficou maravilhada. Se ela andava tão bem, talvez também conseguisse. Pediu uma consulta de avaliação e, logo, uma reamputação acima do joelho.

“Sinto-me bem. Sinto-me dentro da vida. Não uso canadianas. Tenho uma marcha normal. Quero aprender a correr. Quero ser a primeira mulher em Portugal a correr de prótese. Quero ser um exemplo para mulheres amputadas que não se aceitam e que acham que, por serem amputadas, deixaram de ser mulheres”, diz Paula sobre o que mudou desde que usa prótese com joelho pneumático.

Quem lhe dera que lhe tivessem falado logo naquela possibilidade. Imagina que teria sofrido menos, que se teria reinventado antes. “No ano passado, já sem dores, abri um atelier de costura”, conta. “Fui costureira até Outubro. Decidi encerrar a actividade para me dedicar a tempo inteiro a este projecto. Dei a mim mesma uns quatro meses para o arranque da associação.”

“Quando andava de cadeira de rodas, sentia muitos olhares de pena”, conta ela. “É tão bonita”, diziam-lhe. “Eu não deixei de ser bonita!”, enfatiza. “Desde que comecei a usar prótese de joelho pneumático, não cubro. No início, mesmo sem me conhecerem, paravam-me na rua. Pensava que me vinham pedir alguma informação, mas não. Algumas perguntavam-me: ‘Olhe, não pode usar umas calças?...’. As pessoas não estão habituadas a ver. Sentem-se incomodadas.”

Diz-lhe a experiência que, depois de uma mudança tão traumática, um ser humano tem duas opções: “Ou se aceita como é, ou não se aceita e nunca mais é feliz.” Ela afiança que se aceita e que os outros também têm de a aceitar. “Eu faço uma vida normal. Vou à praia, uso saia ou calções, conduzo.” “Nunca perdi a minha feminilidade”, afiança. “Posso dizer que também nunca deixaram que isso me acontecesse. No início, não mexia o braço direito, mas não saía de casa sem o cabelo arranjado, os lábios e os olhos pintados. Não me podia arranjar, mas o meu ex-marido arranjava-me.”

Paula identifica-se com a Fénix, ave da mitologia grega que renascia das cinzas. A sua prótese estilizada, isto é, uma peça única, feita para expressar a personalidade de quem a possui, diz isso mesmo. Tem o desenho de uma personagem da Marvel Comics, uma mutante que fez parte dos X-Men, uma famosa equipa de super-heróis: Jean Grey foi destruída pela radiação e no seu lugar apareceu Fénix, com os sentimentos de uma mulher e os poderes de uma deusa.