Um museu reaberto, outro destruído: cenas da guerra no Iraque
UNESCO pediu reunião urgente do Conselho de Segurança das Nações Unidas para travar a ameaça do Estado Islâmico, que na quarta-feira terá destruído publicamente vários tesouros arqueológicos em Mossul. É uma perda comparável à dos Budas de Bamiyan, lamentam os peritos.
A reabertura do Museu Nacional do Iraque, barbaramente pilhado em Abril de 2003, poucos dias depois da deposição de Saddam Hussein, foi a reacção possível ao vídeo difundido pelo EI e à indignação da comunidade internacional, que viu nas imagens indícios de uma perda irreparável que se soma à provável destruição recente de mais de 100 mil livros e manuscritos depositados na Biblioteca Central de Mossul.
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A reabertura do Museu Nacional do Iraque, barbaramente pilhado em Abril de 2003, poucos dias depois da deposição de Saddam Hussein, foi a reacção possível ao vídeo difundido pelo EI e à indignação da comunidade internacional, que viu nas imagens indícios de uma perda irreparável que se soma à provável destruição recente de mais de 100 mil livros e manuscritos depositados na Biblioteca Central de Mossul.
Após uma longa operação de restauro e de resgate que permitiu recuperar no mercado e em leilões 4.300 das cerca de 15 mil peças então desaparecidas ("as mais importantes", garantem as autoridades), a instituição acabou por abrir as suas portas mais cedo do que o previsto, para provar que o Governo iraquiano leva a sério o seu compromisso com a defesa do património. "Preparamos a reabertura há vários meses, porque o museu tem de estar aberto a todos. Os acontecimentos de Mossul obrigaram-nos a acelerar o nossos trabalhos e a decidir abrir desde hoje, em reacção aos ataques dos criminosos do EI", acrescentou, também à AFP, o vice-ministro iraquiano do Turismo e das Antiguidades, Qaïss Hussein Rachid.
Foi na quinta-feira que o vídeo de poucos minutos documentando pela primeira vez a destruição de várias peças em Mossul chegou à Internet, sem que até agora tenha sido possível verificar a veracidade das imagens que entretanto chegaram às mãos da UNESCO. A directora-geral do organismo, Irina Bokova, solicitou de imediato uma reunião urgente do Conselho de Segurança das Nações Unidos, alegando que a protecção da herança cultural do Iraque é um dever da comunidade internacional: "Este ataque é bem mais do que uma tragédia cultural, é uma questão de segurança porque demonstra o sectarismo e o extremismo violento do conflito iraquiano", declarou.
No vídeo, jihadistas anónimos destroem peças que arqueólogos especializados datam do Império Assírio e que temem ter entretanto desaparecido para sempre: vêem-se estatuetas gregas atiradas ao chão, baixos-relevos atacados com martelos, esculturas do século VII a.C. partidas à picareta e um touro alado de cinco patas (o mesmo que desde a década de 1950 figura na moeda iraquiana) partido com um maço. É justamente esta última imagem que leva os especialistas a recear que o ataque se tenha estendido à Porta de Nirgal, uma das entradas monumentais das ruínas de Nínive, o maior sítio arqueológico do Oriente. A abrir, uma curta declaração de um soldado do EI, em árabe clássico: "Muçulmanos, estas relíquias que vêem atrás de mim são os ídolos que durante séculos foram venerados em vez de Alá."
No berço da civilização
Contactado pelo Le Monde no seu escritório em Amã, capital da Jordânia, o director do gabinete da UNESCO para o Iraque disse-se "revoltado" perante as imagens da destruição e declarou ter já pedido aos directores dos museus iraquianos para iniciarem o trabalho de identificação das peças danificadas: "Se o que aqui vemos for verdade, constitui um ataque directo à identidade muçulmana que podemos comparar à destruição dos Budas de Bamiyan pelos talibãs, no Afeganistão. É uma encenação chocante da destruição, como foi chocante a encenação dos assassínios."
De Estrasburgo, onde o especialista em arqueologia do Próximo Oriente Cheikhmous Ali frisou que quinta-feira foi "um dia de luto para os arqueólogos", às Filipinas, onde o Presidente francês François Hollande, em visita oficial, denunciou "a barbárie do EI", a reacção de repúdio tem sido imparável.
O ex-ministro da Cultura e actual presidente do Instituto do Mundo Árabe Jack Lang foi particularmente duro, comparando os jihadistas a "Hitler" e aos "seus esbirros"; do Louvre, saiu um comunicado sublinhando a "viva indignação" daquele que é um dos maiores museus do mundo ocidental: "Após a tragédia vivida pelas populações da região, estes actos de destruição constituem uma nova etapa na violência e no horror, porque é toda a memória da Humanidade que é assim tomada como alvo, neste território que foi o berço da civilização, da escrita e da História".
Em Portugal, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) também condenou "os atentados patrimoniais no Iraque": "Sem nunca perder de vista o sofrimento infligido às populações daquela região, o MNAA exprime o seu repúdio pela devastação de uma herança histórica e artística que pertence a toda a Humanidade (...) e protesta , hoje mais do que nunca, a sua fidelidade à missão essencial de contribuir, pelo seu trabalho quotidiano, para o diálogo entre civilizações".
O Museu da Civilização já tinha sido saqueado em 2003, durante a invasão norte-americana do Iraque, perdendo algumas das principais peças da sua coleção. Para evitar novos roubos, as peças expostas foram levadas temporariamente para Bagdad. Em 2009, depois de obras de renovação, as peças regressaram a Mossul. Desde Junho que a região é controlada pelo EI, que daí lançou várias ofensivas para controlar o Norte do território iraquiano.
Os acontecimentos de quarta-feira confirmam as suspeitas de que ataques semelhantes possam já ter ocorrido na Biblioteca Central – ataques que a directora-geral da UNESCO classificou como "um dos mais devastadores actos de destruição de um espólio bibliográfico na história da Humanidade" –, e de que a cruzada contra a diversidade cultural faz parte da agenda anti-minorias do EI. Entretanto, em Bagdad, uma das maiores colecções arqueológicas do mundo volta a poder ser vista, pelo menos por enquanto: os bilhetes, para os cidadãos iraquianos, custam menos de um dólar.