O improvável renascimento de D’ Angelo
Quando quase toda a gente achava que o cantor D’ Angelo estava irremediavelmente perdido para a música, tendo estado quase quinze anos sem gravar, eis que há dois meses lançou um admirável álbum, Black Messiah, e agora passeia a sua classe pelos palcos. Em Londres assistimos ao seu renascimento.
É isso. Cerca de duas horas e vinte depois do início do concerto, na lotada sala Eventim Apollo, não havia margem para dúvidas: o palco é o habitat natural do americano D’ Angelo. Esta música nunca mais deveria ser ouvida em espaço privado. Só em locais públicos, com o próprio a interpretá-la, claro. De preferência com a banda que o acompanhou.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
É isso. Cerca de duas horas e vinte depois do início do concerto, na lotada sala Eventim Apollo, não havia margem para dúvidas: o palco é o habitat natural do americano D’ Angelo. Esta música nunca mais deveria ser ouvida em espaço privado. Só em locais públicos, com o próprio a interpretá-la, claro. De preferência com a banda que o acompanhou.
Com apenas três álbuns em vinte anos – Brown Sugar de 1995, Voodoo de 2000 e Black Messiah lançado digitalmente em Dezembro do ano passado e fisicamente no final de Janeiro deste ano – o cantor já tem o seu lugar reservado no panteão das grandes figuras da música negra americana, ao lado de Otis Redding, Curtis Mayfield, James Brown, Sly Stone, Marvin Gaye, George Clinton ou Prince.
Sim, é disso que estamos a falar. É desse patamar. Gente que foi capaz de nutrificar a essência – seja lá o que isso for – da soul, do funk ou do R&B e insuflar-lhe mais vitalidade. Músicos e cantores que conhecem minuciosamente os cantos à casa da música negra a ao mesmo tempo desenvolvem com grande inventividade assoalhadas que apenas os próprios habitam.
A 15 de Dezembro do ano passado quando resolveu libertar de surpresa o seu novo álbum, no seguimento dos incidentes raciais de Ferguson, e depois de muitos anos de silêncio, rumores e especulações, foi recebido com grande entusiasmo. Havia razões para isso. O factor tempo – afinal, Voodoo, que instituiu o cânone para a soul das últimas décadas havia sido lançado há quase quinze anos – e a qualidade de Black Messiah, um álbum denso, agreste e físico, mais funk que soul.
Convenhamos: ao longo da história da música popular existiram alguns regressos triunfais da estirpe do novo álbum do americano mas deverão contar-se pelos dedos de uma só mão. Não é vulgar acontecer.
Por isso, mesmo com a evidência do disco, a pergunta que toda a gente fazia era se ele seria capaz de retornar realmente aos palcos, mostrando relevância artística, criando empatia, recuperando os admiradores de antigamente e alargando a base de apoio às novas gerações. Sim, sim e sim.
Haverá muita gente a lamentar-se que tenha abandonado o ginásio e que já não tenha o corpo e abdominais salientes de há quinze anos – a objectificação não escolhe género – mas paradoxalmente hoje está muito mais espontâneo e solto. O símbolo sexual foi-se. Temos um homem com cicatrizes, fragilidades e potencialidades. Mais próximo de todos nós.
Mas um verdadeiro performer. Um líder. Um maestro. Alguém que idealizou um conceito – D’ Angelo and The Vanguard, como Prince and The Revolution ou George Clinton and Funkadelic – e que o expõe com perícia num espectáculo de ritmo imparável.
A maior parte dos temas – oito – pertencem ao último álbum, não surpreendendo dessa forma que o concerto seja como embarcar num comboio em alto rotação, que nos vai devolvendo condensações de funk, rock, hip-hop, soul ou gospel na forma de longas digressões sonoras onde tanto brilha a voz elástica, a guitarra ou o piano de D’ Angelo, como o suporte instrumental dos restantes músicos que o assistem.
Gente ilustre. Atrás está Pino Palladino, histórico do baixo que acompanha os The Who e já encantava em Voodoo, esquio, não se mexendo muito, mas de uma precisão impressionante, ou a bateria seca e sincopada de Chris Dave. À esquerda, a guitarra colorida de Jesse Johnson, velho cúmplice de Prince e membro dos The Time, e a magnífica voz de Kendra Foster, que co-escreveu algumas das canções do último álbum. Para além deles, mais um guitarrista, um teclista e duas vozes masculinas.
Os The Vanguard são mais do que uma mera banda de suporte. Funcionam como se fossem um colectivo de jazz, deixando-se enredar pelos improvisos, escutando-se uns aos outros, suplantando-se pela voz do seu líder, funcionando como extensão dele. O jogo de luzes é eficiente e de vez em quando D’Angelo muda de roupa – um blusão de cabedal aqui, uma túnica acolá – mas o foco é sempre a música e a qualidade dos protagonistas.
As três primeiras canções do concerto (Prayer, 1000 deaths e Ain’t that easy), retiradas do último álbum, mostram ao que vêem: linhas de baixo rigorosas e vigorosas, bateria compassada e enxuta e a guitarra ruidosa em movimentos circulares, entrelaçando um corpo que estrebucha e uma extraordinária voz, capaz de nos devolver o mais variado leque emocional, perante uma assistência totalmente em delírio.
É um público cosmopolita, como talvez apenas em Londres é possível, aquele que se vislumbra. Pelo meio, muita gente que veio de longe. Uma hora antes do início do concerto, um casal de belgas tira fotos ao exterior da sala de espectáculos, incidindo na inscrição luminosa do nome do cantor americano.
“Andamos a pensar neste concerto há muito tempo”, diz-nos ele, argumentando que D’Angelo faz parte de uma linhagem em vias de extinção. “Já não há por aí muita gente que respire a música como ele, sem grandes artifícios, e mais interessado na competência. Tenho a certeza que vai ser um concerto de corpo, suor e alma e isso é que é difícil encontrar hoje em dia.”
A língua portuguesa também é muito ouvida. Há portugueses que habitam em Londres, mas também quem tenha vindo de propósito de Lisboa ou do Porto, como Luís Egídio e Carla Maciel, seguidores de longa data do americano. “O Voodoo deve ser o disco que mais ouvi na vida”, diz ela, “por isso quando soubemos desta digressão não pensámos duas vezes. Não fazemos muito isto, mas é o concerto de toda uma vida.”
D’Angelo não é Beyoncé. Nem Justin Timberlake. Não é isso. Não é alguém categoricamente popular. Nem sequer alguém que produza um processo de identificação fácil. Mas é alvo de culto entre quem tem uma relação apaixonada com a música.
Há três semanas, aquando do 15º aniversário da edição de Voodoo, a cantora Solange solicitou testemunhos a vários músicos cúmplices (da irmã Beyoncé a Janelle Monae, de Kindness a Dave Longstreth dos Dirty Projectors), sobre a influência desse disco e as palavras deixadas na internet revelam total rendição.
Não é apenas entre os acólicos da soul. A sua voz, e a estrutura modernista da sua música, constituem uma influência transversal. Como é evidente o longo afastamento contribuiu para o presente efeito de reconciliação. Não é apenas na reacção calorosa do público que se vislumbra isso. É também na forma disponível como ele está a viver este momento, desfrutando do calor ausente da sua existência nos últimos anos.
Depois da digressão triunfal que se seguiu a Voodoo, e que o catapultou para altitudes só frequentadas por Prince, desapareceu de circulação. Uma ausência que foi alimentando as mais diversas especulações. Para uns teria sofrido do clássico problema da impreparação para o sucesso, não sabendo como gerir as expectativas e a sua própria imagem, acabando numa travessia de excessos, álcool, prisões, distúrbios, problemas com editoras e curas de desintoxicação.
Mas não era apenas o historial pessoal que fazia duvidar deste regresso. Era também o facto de na última década o cenário soul-funk ter sido profundamente transformado por uma série de novos agentes (de Frank Ocean a FKA Twigs, de James Blake a The Weeknd) que foram reconfigurando essas linguagens.
E no entanto a todos esses embates resistiu, regressando com um, convenhamos, improvável óptimo álbum e, agora, confirmou-se, com ainda uma maior disposição para o palco.
Está nitidamente a desfrutar e isso sente-se. O concerto de Londres mostrou mais um agitador funk do que um intimista soul, com as canções dos dois primeiros álbuns também imbuídas da robustez sonora que prevalece no último disco.
Mas isso não significa que o erotismo milimétrico dos primeiros tempos não tenha estado presente. Em Feel like makin’ love e One mo’gin a pulsação rítmica desce, o som torna-se esquálido, a robustez do baixo evidencia-se ainda mais e D’Angelo, na voz, ou ocasionalmente à guitarra ou ao piano, lança um perfume de sensualidade na sala que se deixa ir vagarosamente, balançando ao som de gritos femininos.
Às tantas desce até ao público, perde-se no meio dele, a banda espreguiça-se ainda mais, prolongando a canção, com o cantor a manobrar a sua orquestra como quer, ora pedindo mais suavidade, ora exigindo mais intensidade, enquanto se deixa submergir no ambiente, puxando pelo falsete ou pelo grito apoteótico, deixando-se conduzir numa onda de abraços.
Em muitos dos temas, a banda, suspensa pelas ordens do líder, pára e reinicia as canções, levando o público ao delírio, sem que exista sacarina ou um minuto a mais. É um concerto sempre em tensão.
Em Alright e Brown sugar, ou mais tarde no primeiro encore com Lady, regressa-se ao primeiro álbum, com D’Angelo a dançar furiosamente e pedindo a participação do público que corresponde sem quaisquer hesitação. O segundo álbum transformou-o num cantor icónico, deu-lhe fama, prémios e a reputação de inovador, mas nesse disco inaugural já assimilava o que vinha de trás (Marvin Gaye, Stevie Wonder ou Prince) e atribua às suas canções uma qualidade sedosa e orgânica que o haveriam de conotar com as movimentações neo-soul da década de 1990, ao lado de Erykah Badu. Hoje acabam por soar também mais tácteis, viscerais e físicas.
Em Really love o som lento e espacial ainda predomina, com a sua voz entre a espiritualidade e a carnalidade, mas em The charade e Sugah daddy, com D’Angelo na guitarra ou ao piano, trazem de volta o som mais virulento, eléctrico e denso do último álbum, talvez o seu disco mais politizado, com ele a gritar “all we wanted was a chance to talk / stead we only outlined in chalk”. Quando o disco foi lançado sublinhou que Black Messiah nada tinha a ver com religião, nem com celebrações de individualidade. Era uma ode ao sentir colectivo. Era uma forma de afirmar que todos somos líderes.
E acaba por ser também uma forma de mostrar que a sua música continua a ter essa capacidade de agregar, de gerar a partilha, de fazer gritar muitas gargantas em grupo. Quanto canta parece habitar, simultaneamente, uma igreja (“You got to pray for redemption”, canta) e um lugar profano (“Lord, keep me away from temptation”, avisa de seguida), para culminar com uma assunção de transcendência: “Yes, i believe in love”.
No último álbum funde uma série de técnicas e de tipologias musicais do qual acaba por resultar um todo convincente, em canções de redenção, raiva e esperança, como Back to the future (Part I & II) e Till it’s done, apresentadas nos dois encores, misto de tensão e libertação, conflito e ordem. Afinal características que não estão presentes apenas nas letras. Estão também inscritas na sua vida. No seu corpo. Na música. Naquele som que organiza o caos com geometria.
D’Angelo regressou com espectacularidade, mas não está aqui para enganar ninguém. Não é banha da cobra. Quando se aproxima para debitar as primeiras palavras da última canção – a icónica balada Untitled (how does it feel) – hesita. Tem a voz embargada. Percebe que não está preparado. Afasta-se do microfone. A banda continua a tocar. O ritmo é indolente. O baixo e bateria parecem mínimos mas dão-nos um mundo de palpitações e os gritos excitados na sala são constantes.
Agora sim, D’Angelo, está pronto. Lança primeira frase, “girl it’s only you...”, e vive todas as restantes palavras e notas como se fossem as últimas, transformando a sua interpretação em qualquer coisa de palpável, próxima do sublime, numa longa travessia de quase quinze minutos, do falsete mais indelével ao grunhido mais desesperado, que terminaria com o próprio, sozinho, em palco, ao piano, depois dos músicos terem saído um a um do palco perante uma chuva de aplausos, enquanto a sala continuava a cantar e a interrogar “How does it feel”?
Claramente, tantos anos depois, o público sente-se bem. E D’ Angelo também tem razões para se sentir bem por estes dias.