E o mundo mudou de vez
A mítica galeria Sonnabend apresenta parte da sua colecção em Lisboa
Quando abriram uma galeria em Paris, em 1962, Ileana e Michael Sonnabend não podiam saber que iriram testemunhar uma radical mudança de paradigma nas artes plásticas do seu tempo. A guerra terminara há pouco e Paris era ainda, como tinha sido desde há séculos, o centro da arte ocidental. Tudo se passava sempre aqui, ou perto daqui, numa cidade que continuava a ser o chamariz para artistas e escritores de toda a espécie, mas sobretudo norte-americanos. Contudo, o mundo mudara. Nova Iorque e, em menor grau, Londres, iriam em breve usurpar esse lugar central à capital francesa.
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Quando abriram uma galeria em Paris, em 1962, Ileana e Michael Sonnabend não podiam saber que iriram testemunhar uma radical mudança de paradigma nas artes plásticas do seu tempo. A guerra terminara há pouco e Paris era ainda, como tinha sido desde há séculos, o centro da arte ocidental. Tudo se passava sempre aqui, ou perto daqui, numa cidade que continuava a ser o chamariz para artistas e escritores de toda a espécie, mas sobretudo norte-americanos. Contudo, o mundo mudara. Nova Iorque e, em menor grau, Londres, iriam em breve usurpar esse lugar central à capital francesa.
O casal Sonnabend, mesmo sem dotes de adivinhação do futuro, propôs-se apresentar em Paris jovens artistas norte-americanos, bem como outros, europeus, cuja obra possuísse laços de parentesco como o que os primeiros faziam. Durante os cinco primeiros anos da galeria, expuseram nas suas salas os nomes que vemos agora nesta exposição do MASVS. Figuras hoje tão consensuais como Rauschenberg, Jasper Johns, Warhol, Pistoletto ou Arman, entre outros, assinam peças icónicas que se justificam neste lugar apenas por uma coincidência: serem contemporâneas da residência do casal Vieira da Silva – Arpad Szénes em Paris.
Nada, de facto, poderia ser mais diferente do que o encantamento modernista com as possibilidades da cor e da forma, presente na obra destes dois pintores, e a vontade, também ela ainda moderna, de criar uma arte que correspondesse à euforia da sociedade nascida do pós-guerra. Como sempre sucede na Pop, o motivo e o tema da obra de arte passa do intemporal para o imediato, do estrutural para o conjuntural, da nobreza académica para o quotidiano sem aura. As caixas de esfregões Brillo, peça célebre na obra de Andy Warhol, lá estão para testemunhar esta mudança de paradigma.
António Homem, o curador, fala de uma época que assistiu não apenas ao nascimento da Pop Art, mas também ao do Minimalismo e da Arte Conceptual. A estes movimentos poderíamos acrescentar a Land Art, o happening, a Arte Povera italiana (que Pistoletto integrou) ou o Nouveau Réalisme francês, onde Arman, hábil em musealizar restos e detritos de toda a espécie, realizou a peça com máquinas de escrever que se mostra na exposição. A época, aliás, foi fértil em etiquetas e titulos de toda a espécie, muitas vezes de duração tão efémera quanto as poucas exposições que cada colectivo de artistas realizava.
A juntar-se a Warhol e Johns, muitos dos grandes nomes da Pop estão presentes, como Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, Tom Wesselmann, Jim Dine ou George Segal. Um cubo de vidro fumado de Larry Bell, um pós minimalista interessante mas sem o peso de Richard Serra, por exemplo, integra-se mal na selecção de artistas e obras, que se completa por italianos coevos. Contudo, a melhor sala da exposição é aquela que é dedicada à obra de Rauschenberg. Aqui, confirmarmos a vitalidade e actualidade da obra deste artista, que consegue não apenas sintetizar aquilo que foi a Pop como transcendê-la já para possíveis respostas às interrogações que a arte continuou a colocar-se. Telas que combinam a serigrafia e a tinta acrílica convocam temas políticos da actualidade da época, como a guerra do Vietname, ao mesmo tempo que introduzem as práticas do design gráfico no meio restrito da arte, tal como Warhol estava a fazer ao mesmo tempo não apenas nas Brillo Boxes mas em telas que reproduziam mecanicamente imagens retiradas da comunicação jornalística. Por outro lado, Rauschenberg, noutras peças apresentadas, inclui objectos tridimensionais no plano da pintura, avançando já as premissas daquilo que será a instalação dos anos 90 e seguintes. Foi um percursor e um excelente artista, e a exposição mostra-nos isso muito bem, mesmo se hoje a provocação Pop é sobretudo associada à obra e à pessoa do seu colega Warhol.
Provocação: esta será a palavra que podemos pensar como a mais adaptada a estes anos que foram, afinal, os do nascimento sociológico do teenager como consumidor – de arte, claro, mas também de música, livros, roupa, de tudo o que a sociedade norte-americana lhe podia oferecer. Hoje, em que tudo é possível em arte, apenas podemos imaginar o que seria expor caixas de esfregões, imagens de frangos assados, de peças de rosbife ou o lixo doméstico de uma celebridade no espaço de uma galeria. A posteridade e o mercado deu razão às escolhas de Iliana Sonnabend, que tão cedo quanto 1964 viu um dos seus artistas, o mesmo Rauschenberg de que falámos antes, ser premiado pela Bienal de Veneza. O mundo ia mudar de vez.