As Ibeyi cantam e dançam para espantar a morte
Navegando entre a mitologia e a música ioruba, o jazz latino e a soul, as irmãs Lisa-Kaindé e Naomi Díaz assinam com a sua estreia um disco de maravilhamento. Não queremos que as Ibeyi saiam das nossas vidas.
Também elas parecem dançar e cantar para espantar não o diabo, mas a morte. Ibeyi, estarrecedor disco de estreia deste duo franco-cubano com a ginga melosa de Cuba, as quentes voltas da música africana e a delicadeza temperada da soul, é não apenas um magnífico documento musical mas também uma forma notável de cantar em cima das sepulturas do pai e de uma irmã, celebrando-lhes a vida e ritualizando a pop enquanto momento maior da fugacidade da existência. De forma pouco casual, Oxun é também deusa da feminilidade, do amor e do rio, invocada aqui para abençoar um acto de purificação e de catarse. É Oxun que se ouve confessamente nas vozes das Ibeyi no tema que lhes garantiu um lugar destacado nas listas de grupos a seguir com atenção em 2015. River fala em baptismo mas também na lavagem da culpa, do ego e do sofrimento, destapando uma sensualidade desarmante. E se a temática da morte está presente como um belíssimo véu impossível de repelir deste primeiro álbum, não é também estranha ao próprio percurso musical das irmãs. Embora não tenha uma memória precisa desse momento, Naomi sabe que foi em 2006, no dia seguinte ao fenecimento do pai, percussionista do projecto Buena Vista Social Club, que começou a tocar cajón – “Sei-o porque perguntei à minha mãe, uma vez que me tinha esquecido”, confessa em chamada Skype com o Ípsilon. “Foi ela a garantir-me que aconteceu logo no dia a seguir à morte do meu pai. Penso que foi inconsciente, mas já não parei mais.” Ibeyi funciona, em diferentes camadas, como um álbum de pacificação com o luto. Afirma Lisa-Kaindé: “Nesta música há morte, mas também amor, família, esperança e, naturalmente, vida. Claro que o disco foi uma forma de agradecer ao nosso pai e à nossa irmã e de lhes dizermos que os amamos e não os esqueceremos. Foi importante fazer este disco para eles.” Não é indiferente que se fale umas linhas acima em cajón. Naomi significa a metade rítmica do duo, mais ligada ao hip-hop, de voz áspera e responsável pelos enxertos de carne feitos nos esqueletos melódicos criados pela irmã, Lisa-Kaindé, cabelo afro orgulhoso, voz adocicada, obcecada por cantoras como Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin e, sobretudo, Nina Simone. São estas duas forças que permanentemente procuram equilíbrios dentro da música das Ibeyi, a partir de canções inventadas ao piano por Lisa-Kaindé e subitamente necessitadas de um aspecto menos escanzelado. Embora de uma sonoridade crua e descomplicada, Ibeyi não é, ainda assim, álbum com charme deslavado e acabado de sair da cama, sem tempo para uma higiénica passagem pela casa de banho. Esta é uma crueza de canções que existem precisamente no encontro a duas vozes e a quatro mãos, de canções às quais não foi felizmente permitido crescer para lá da ambição pessoal. Se as canções das Ibeyi não buscam uma majestosidade que facilmente as levaria a tropeçar nos seus próprios passos, isso acontece também porque tiveram a fortuna de cair nas mãos de Richard Russell, patrão da XL Recordings, que logo as descobriu no primeiro vídeo a escapar para a Internet há quase dois anos, uma arrepiante interpretação ao vivo do tema Mama says, e cuja lucidez foi em boa parte empregue numa produção que não colocou freios nos dentes de Lisa-Kaindé e Naomi, furtando-se a manipular duas miúdas de 19 anos com uma ideia pouco segura do que seria fazer um álbum. Quando Russell as contactou, as Ibeyi tinham apenas cinco canções prontas, estavam um mero par de passos à frente do momento em que Lisa-Kaindé foi convidada a gravar um EP. “Foi então que começámos a tocar juntas, porque nunca o tínhamos feito antes”, recorda Naomi. “A Lisa compunha as canções dela desde os 14 anos, mas quando alguém lhe falou em gravar eu avisei-a de que não o faria sem mim.” O tal EP nunca chegou depois a sair (houve um outro Oya, lançado já na XL em finais de 2014), mas foi nessa passagem pelo estúdio que descobriram a emergência de uma sonoridade que se colava sem esforço: a tradição ioruba – alimentada com a passagem, em crianças, por um coro de música tradicional –, a rumba e o jazz latino com que ambas cresceram acasalando com os seus ouvidos encalhados em décadas diferentes da música negra norte-americana. Naomi no encalço de Kendrick Lamar e Frank Ocean, Lisa-Kaindé sempre entregue a Nina Simone. “Foi no estúdio”, confirma Lisa, “que começámos a pensar em fazer disto as nossas vidas. Foi aí que se tornou real. Quando estava na universidade, achava que viria a ser professora de música e Ibeyi era apenas o meu pequeno segredo. Só que em quatro meses tudo se alterou – comecei a ter concertos, começámos as sessões de estúdio e descobrimos esta sonoridade. A minha vida real tornou-se então muito irreal e a minha vida irreal tornou-se a minha vida quotidiana.” Para a troca ser perfeita, ajudou que Lisa-Kaindé fosse expulsa da universidade. O travo a realidade dos muitos concertos com que começava a ocupar-se foi considerado pouco adequado para o seu percurso académico e foi convidada administrativamente a procurar outro futuro. Por sorte, a ideia de uma carreira musical já baixara até ao chão, deixando de ser uma fantasia pouco ancorada no real. Uma mão-cheia de perfeição O encontro com Russell, produtor também do álbum a solo de Damon Albarn e responsável pelo último sopro de vida artística de Bobby Womack, entre outros feitos, fez-se da mesma simplicidade com que as composições das Ibeyi se deixam mastigar. “Ele ainda nem tinha dito olá e eu já estava convencida de que era a pessoa certa”, diz Lisa-Kaindé, lembrando o momento que viu Russell surgir na sua presença e soube que estava encontrado o produtor do disco. “Depois, quando lhe mostrámos as canções, percebemos que ele gostava e tinha dúvidas em relação às mesmas que nós. Sentimos que ele sentia as canções de uma forma absolutamente perfeita. Parece uma coisa quase mística, mas era mesmo a pessoa certa. E até estávamos preocupadas, porque somos duas e temos uma relação que, apesar dos seus defeitos, é muito forte. Há pessoas que têm medo de trabalhar connosco, não sabem como lidar com a nossa dinâmica.” Riem-se ambas quando pensam que Russell teria toda a legitimidade para lhes dizer “Meu Deus, vocês são tão novas e nunca tocaram numa MPC [instrumento electrónico especialmente popular no hip-hop] em toda a vida e agora querem tocar todo o disco sozinhas?” Mas não. Em relação a tudo o que quiseram experimentar, o homem da XL deu-lhes o primeiro empurrão e apenas lhes pedia para pararem quando sentia que as canções tinham chegado ao seu ponto de perfeição. Essa perfeição não escasseia em Ibeyi. E a tal majestosidade em que as irmãs recusam embarcar está, afinal, toda escarrapachada na facilidade quase infantil com que transitam entre as línguas ioruba, inglês, francês e castelhano, com que iniciam uma canção com um ritmo que tanto podia ter sido encontrado numa feira de velharias trip-hop quanto encomendado aos Fugees, para logo a seguir porem em marcha um piano de jazz latino encimado por uma tocante voz soul (na belíssima Ghosts), ou aplicar vocalizos tratados como órgãos de igreja a emprestar uma aura eucarística (em Oya). Mais a meio ou mais chegado ao final, sempre um desvio para outra língua e outra toada, como um lembrete de que as peças do mundo das Ibeyi têm muitas formas e feitios. E em Oya, Ghosts, River, Mama says e Think of you (imagine-se Björk nascida em Cuba) temos possivelmente o mais deslumbrante lote de canções que ouviremos em 2015. “Acho mesmo que este disco é sobre a confrontação de dois mundos e duas perspectivas diferentes sobre a música”, defende Lisa-Kaindé. “E acho que isso é muito bom. Porque compreendemo-nos mutuamente a nível musical, mas mesmo quando não nos compreendemos isso resulta num confronto sempre positivo para a música.” A ideia de confronto e cumplicidade a operar em simultâneo, num misto que se diria laboratorial de tão perfeito entre atracção e repulsa, sente-se também nas duas irmãs que vemos através do ecrã. Tanto completam as ideias uma da outra e respondem em uníssono, como corrigem ideias ou construção frásica. Daí que as Ibeyi reafirmem que a sua sonoridade, descoberta em estúdio, nada tem de planeado. Já estava tudo lá. “Crescemos a ouvir música ioruba”, dizem, chamando a atenção para os temas de abertura e de encerramento do disco, que coincidem na viagem à tradição para delimitar com um círculo imaculado tudo o que se passa entre os dois extremos. Não é descoberta recente nem metódica inserção de excentricidade. No mundo, na música das Ibeyi, as semi-divindades podem muito bem ritualizar a pop ou impregnar de soul resquícios de memórias cubanas. Dentro delas, vive tudo num harmonioso reboliço, sem má vizinhança.
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Também elas parecem dançar e cantar para espantar não o diabo, mas a morte. Ibeyi, estarrecedor disco de estreia deste duo franco-cubano com a ginga melosa de Cuba, as quentes voltas da música africana e a delicadeza temperada da soul, é não apenas um magnífico documento musical mas também uma forma notável de cantar em cima das sepulturas do pai e de uma irmã, celebrando-lhes a vida e ritualizando a pop enquanto momento maior da fugacidade da existência. De forma pouco casual, Oxun é também deusa da feminilidade, do amor e do rio, invocada aqui para abençoar um acto de purificação e de catarse. É Oxun que se ouve confessamente nas vozes das Ibeyi no tema que lhes garantiu um lugar destacado nas listas de grupos a seguir com atenção em 2015. River fala em baptismo mas também na lavagem da culpa, do ego e do sofrimento, destapando uma sensualidade desarmante. E se a temática da morte está presente como um belíssimo véu impossível de repelir deste primeiro álbum, não é também estranha ao próprio percurso musical das irmãs. Embora não tenha uma memória precisa desse momento, Naomi sabe que foi em 2006, no dia seguinte ao fenecimento do pai, percussionista do projecto Buena Vista Social Club, que começou a tocar cajón – “Sei-o porque perguntei à minha mãe, uma vez que me tinha esquecido”, confessa em chamada Skype com o Ípsilon. “Foi ela a garantir-me que aconteceu logo no dia a seguir à morte do meu pai. Penso que foi inconsciente, mas já não parei mais.” Ibeyi funciona, em diferentes camadas, como um álbum de pacificação com o luto. Afirma Lisa-Kaindé: “Nesta música há morte, mas também amor, família, esperança e, naturalmente, vida. Claro que o disco foi uma forma de agradecer ao nosso pai e à nossa irmã e de lhes dizermos que os amamos e não os esqueceremos. Foi importante fazer este disco para eles.” Não é indiferente que se fale umas linhas acima em cajón. Naomi significa a metade rítmica do duo, mais ligada ao hip-hop, de voz áspera e responsável pelos enxertos de carne feitos nos esqueletos melódicos criados pela irmã, Lisa-Kaindé, cabelo afro orgulhoso, voz adocicada, obcecada por cantoras como Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin e, sobretudo, Nina Simone. São estas duas forças que permanentemente procuram equilíbrios dentro da música das Ibeyi, a partir de canções inventadas ao piano por Lisa-Kaindé e subitamente necessitadas de um aspecto menos escanzelado. Embora de uma sonoridade crua e descomplicada, Ibeyi não é, ainda assim, álbum com charme deslavado e acabado de sair da cama, sem tempo para uma higiénica passagem pela casa de banho. Esta é uma crueza de canções que existem precisamente no encontro a duas vozes e a quatro mãos, de canções às quais não foi felizmente permitido crescer para lá da ambição pessoal. Se as canções das Ibeyi não buscam uma majestosidade que facilmente as levaria a tropeçar nos seus próprios passos, isso acontece também porque tiveram a fortuna de cair nas mãos de Richard Russell, patrão da XL Recordings, que logo as descobriu no primeiro vídeo a escapar para a Internet há quase dois anos, uma arrepiante interpretação ao vivo do tema Mama says, e cuja lucidez foi em boa parte empregue numa produção que não colocou freios nos dentes de Lisa-Kaindé e Naomi, furtando-se a manipular duas miúdas de 19 anos com uma ideia pouco segura do que seria fazer um álbum. Quando Russell as contactou, as Ibeyi tinham apenas cinco canções prontas, estavam um mero par de passos à frente do momento em que Lisa-Kaindé foi convidada a gravar um EP. “Foi então que começámos a tocar juntas, porque nunca o tínhamos feito antes”, recorda Naomi. “A Lisa compunha as canções dela desde os 14 anos, mas quando alguém lhe falou em gravar eu avisei-a de que não o faria sem mim.” O tal EP nunca chegou depois a sair (houve um outro Oya, lançado já na XL em finais de 2014), mas foi nessa passagem pelo estúdio que descobriram a emergência de uma sonoridade que se colava sem esforço: a tradição ioruba – alimentada com a passagem, em crianças, por um coro de música tradicional –, a rumba e o jazz latino com que ambas cresceram acasalando com os seus ouvidos encalhados em décadas diferentes da música negra norte-americana. Naomi no encalço de Kendrick Lamar e Frank Ocean, Lisa-Kaindé sempre entregue a Nina Simone. “Foi no estúdio”, confirma Lisa, “que começámos a pensar em fazer disto as nossas vidas. Foi aí que se tornou real. Quando estava na universidade, achava que viria a ser professora de música e Ibeyi era apenas o meu pequeno segredo. Só que em quatro meses tudo se alterou – comecei a ter concertos, começámos as sessões de estúdio e descobrimos esta sonoridade. A minha vida real tornou-se então muito irreal e a minha vida irreal tornou-se a minha vida quotidiana.” Para a troca ser perfeita, ajudou que Lisa-Kaindé fosse expulsa da universidade. O travo a realidade dos muitos concertos com que começava a ocupar-se foi considerado pouco adequado para o seu percurso académico e foi convidada administrativamente a procurar outro futuro. Por sorte, a ideia de uma carreira musical já baixara até ao chão, deixando de ser uma fantasia pouco ancorada no real. Uma mão-cheia de perfeição O encontro com Russell, produtor também do álbum a solo de Damon Albarn e responsável pelo último sopro de vida artística de Bobby Womack, entre outros feitos, fez-se da mesma simplicidade com que as composições das Ibeyi se deixam mastigar. “Ele ainda nem tinha dito olá e eu já estava convencida de que era a pessoa certa”, diz Lisa-Kaindé, lembrando o momento que viu Russell surgir na sua presença e soube que estava encontrado o produtor do disco. “Depois, quando lhe mostrámos as canções, percebemos que ele gostava e tinha dúvidas em relação às mesmas que nós. Sentimos que ele sentia as canções de uma forma absolutamente perfeita. Parece uma coisa quase mística, mas era mesmo a pessoa certa. E até estávamos preocupadas, porque somos duas e temos uma relação que, apesar dos seus defeitos, é muito forte. Há pessoas que têm medo de trabalhar connosco, não sabem como lidar com a nossa dinâmica.” Riem-se ambas quando pensam que Russell teria toda a legitimidade para lhes dizer “Meu Deus, vocês são tão novas e nunca tocaram numa MPC [instrumento electrónico especialmente popular no hip-hop] em toda a vida e agora querem tocar todo o disco sozinhas?” Mas não. Em relação a tudo o que quiseram experimentar, o homem da XL deu-lhes o primeiro empurrão e apenas lhes pedia para pararem quando sentia que as canções tinham chegado ao seu ponto de perfeição. Essa perfeição não escasseia em Ibeyi. E a tal majestosidade em que as irmãs recusam embarcar está, afinal, toda escarrapachada na facilidade quase infantil com que transitam entre as línguas ioruba, inglês, francês e castelhano, com que iniciam uma canção com um ritmo que tanto podia ter sido encontrado numa feira de velharias trip-hop quanto encomendado aos Fugees, para logo a seguir porem em marcha um piano de jazz latino encimado por uma tocante voz soul (na belíssima Ghosts), ou aplicar vocalizos tratados como órgãos de igreja a emprestar uma aura eucarística (em Oya). Mais a meio ou mais chegado ao final, sempre um desvio para outra língua e outra toada, como um lembrete de que as peças do mundo das Ibeyi têm muitas formas e feitios. E em Oya, Ghosts, River, Mama says e Think of you (imagine-se Björk nascida em Cuba) temos possivelmente o mais deslumbrante lote de canções que ouviremos em 2015. “Acho mesmo que este disco é sobre a confrontação de dois mundos e duas perspectivas diferentes sobre a música”, defende Lisa-Kaindé. “E acho que isso é muito bom. Porque compreendemo-nos mutuamente a nível musical, mas mesmo quando não nos compreendemos isso resulta num confronto sempre positivo para a música.” A ideia de confronto e cumplicidade a operar em simultâneo, num misto que se diria laboratorial de tão perfeito entre atracção e repulsa, sente-se também nas duas irmãs que vemos através do ecrã. Tanto completam as ideias uma da outra e respondem em uníssono, como corrigem ideias ou construção frásica. Daí que as Ibeyi reafirmem que a sua sonoridade, descoberta em estúdio, nada tem de planeado. Já estava tudo lá. “Crescemos a ouvir música ioruba”, dizem, chamando a atenção para os temas de abertura e de encerramento do disco, que coincidem na viagem à tradição para delimitar com um círculo imaculado tudo o que se passa entre os dois extremos. Não é descoberta recente nem metódica inserção de excentricidade. No mundo, na música das Ibeyi, as semi-divindades podem muito bem ritualizar a pop ou impregnar de soul resquícios de memórias cubanas. Dentro delas, vive tudo num harmonioso reboliço, sem má vizinhança.