Daniel Blaufuks: toda a memória do mundo numa exposição
A conclusão desta exposição no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, é, uma viagem entre a biografia e a ficção, a memória e a narrativa
Como é que se conta toda a memória do mundo? O sub-título ("parte um") presume a impossibilidade desta tarefa e propõe, com uma exposição dividida em três espaços, uma parte desta memória. Para esta tarefa, relaciona os livros “W ou le souvenir d’enfance” (Georges Perec, 1975) e “Austerlitz” (2001, W. G. Sebald). Enquanto que a metodologia de Perec assenta na alternância de capítulos autobiográficos e ficção, a narrativa em Sebald parte de uma história, aparentemente ficcional, numa colecção de memórias passadas e fragmentadas que se cruzam e confundem com o presente.
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Como é que se conta toda a memória do mundo? O sub-título ("parte um") presume a impossibilidade desta tarefa e propõe, com uma exposição dividida em três espaços, uma parte desta memória. Para esta tarefa, relaciona os livros “W ou le souvenir d’enfance” (Georges Perec, 1975) e “Austerlitz” (2001, W. G. Sebald). Enquanto que a metodologia de Perec assenta na alternância de capítulos autobiográficos e ficção, a narrativa em Sebald parte de uma história, aparentemente ficcional, numa colecção de memórias passadas e fragmentadas que se cruzam e confundem com o presente.
O processo de Daniel Blaufuks tem o mérito de juntar as duas metodologias magistralmente. Na primeira parte Blaufuks apresenta-nos uma parede com dez folhas com palavras que confundem. Quem não leu “Austerlitz”, poderá pensar que a palavra se refere à batalha do mesmo nome. Conhecendo a referência, é impossível não pensar nos "flashbacks" da memória de Austerlitz (a personagem principal do livro de Sebald) em Praga quando se lembrou de expressões em francês e checo da sua infância. É precisamente em "flashbacks" de memórias e na confusão linguística que esta série assenta.
Na sala contígua, somos confrontados com um filme ("As If", 2015) de 4h35m. A um primeiro olhar, o filme é demasiado longo. Contudo, a sua duração não tem uma razão formal mas puramente conceptual: corresponde, exactamente, à duração da visita da delegação da Cruz Vermelha ao campo de concentração de Terezin, no dia 23 de Junho de 1944. Absolutamente único no filme são os métodos narrativos semelhante aos de Sebald e de Perec: ora estamos no passado, ora estamos no presente, ora é ficção (fragmentos de filmes), ora é real (fragmentos de filmes de propaganda nazi e filmagens recentes de Terezin). E, neste limbo, estamos constantemente a ser confrontados com memórias e realidades, passado e presente. Vemos Terezin retratada pelos nazis, nos filmes de propaganda (sempre com a indicação “Staged Nazi Film”, para que não restem dúvidas do que se trata — imagens reais da mentira), com os judeus como se estivessem em campos de férias. Estas imagens aparecem intercaladas com um filme baseado em factos reais, que apela para a nossa memória do que acreditamos saber da história, em que vemos pessoas a caminhar por um caminho sem volta. Também intercaladas, estão gravações que mostram Terezin de hoje, num contraste perturbante: fachadas da cidade contemporânea num dia de sol, pessoas felizes no seu dia-a-dia. Sabemos assim que este lugar é real e que Terezin é feita de um passado e de um presente opostos.
A segunda sala é habitada por uma mesa coberta de livros de Blaufuks e de autores que lhe são caras referências. No centro da mesa, uma estátua de um cavalo com um homem que pega numa mulher em movimento, está, na verdade, presente, enquanto objecto, na mesa, e enquanto imagem, no filme, na fotografia que ocupa uma das paredes desta sala e ainda na página do livro que aparece emoldurada ao lado da fotografia. Estas diversas representações parecem competir pela veracidade e ficamos sem saber se alguma é, de facto, real ou, se pelo contrário, estamos perante imagens e imagens das imagens num processo análogo à "Alegoria da Caverna", enunciada por Platão.
Na última sala, as quatro paredes estão ocupadas por 22 molduras que delimitam conjuntos de fotografias, postais, mapas, artigos de revistas e jornais. O chão guia-nos, com as legendas de cada composição como "Piles of golden teeth and stocks of poor quality soap". Cada conjunto ilustra exactamente o que as legendas anunciam, na mesma metodologia do filme.
A conclusão da exposição é, assim, uma viagem entre a biografia e a ficção, a memória e a narrativa, o passado e o presente, o real e a representação. "Toda a memória do mundo (parte um)" é, muito mais do que uma representação ou interpretação, uma reflexão sobre o poder da imagem na construção da memória colectiva.
"Toda a memória do mundo (parte um)" está patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, até 22 de Março.