Humilhação, novela e drama

Maria Luís deu ao mundo a imagem de um país manipulável, pau para toda a colher, utilizável para exemplo perante os mal-comportados.

Se foi por manha, há uma recidiva da servil obediência de Gaspar, revelada à Europa por um microfone indiscreto. Não comento as analogias zoológicas feitas na imprensa escrita sobre afagos e carinhos ao animalzinho de estimação para garantir amor ao dono. Não entro por aí. Mas confesso-me humilhado com a proximidade ao comportamento, que sempre detestei, dos lambe-botas da vida, dos “bem-comportadinhos” da política, dos “meninos da sôtora”. Até admito que fosse patriótica a intenção, proteger o nosso pobre país, acoitando-o à sombra do poderoso e irascível teutónico. Mas a realidade venceu a intenção: Maria Luís deu ao mundo a imagem de um país manipulável, pau para toda a colher, utilizável para exemplo perante os mal-comportados. Com risco de descartável na primeira oportunidade, como acontece quase sempre aos muito servis. Bem dizia o povo sans cullottes, em plural de simpatia, “quanto mais a gente se agacha, mais se nos vê o rabo”. Perante este modelo de comportamento já não admira que até Marques Guedes, normalmente sóbrio e comedido, tenha deixado fugir o dispéptico lamento sobre o desabafo assassino de Juncker, que se veio a revelar um forte argumento negocial a favor dos gregos. Não admira a defesa áspera e quase só retórica, no fio da navalha, de Passos Coelho no debate quinzenal. Não admira o que transpirou das negociações finais do Eurogrupo sobre engulhos na garganta de representantes de Espanha e Portugal, a que Varoufakis respondeu com a elegância olímpica do respeito pelas posições e opiniões dos pares. Quanto se entra no caminho da humilhação, a cada uma se segue outra. Espero que se aprenda, mesmo que falte pouco para o final da genuflexão.

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Se foi por manha, há uma recidiva da servil obediência de Gaspar, revelada à Europa por um microfone indiscreto. Não comento as analogias zoológicas feitas na imprensa escrita sobre afagos e carinhos ao animalzinho de estimação para garantir amor ao dono. Não entro por aí. Mas confesso-me humilhado com a proximidade ao comportamento, que sempre detestei, dos lambe-botas da vida, dos “bem-comportadinhos” da política, dos “meninos da sôtora”. Até admito que fosse patriótica a intenção, proteger o nosso pobre país, acoitando-o à sombra do poderoso e irascível teutónico. Mas a realidade venceu a intenção: Maria Luís deu ao mundo a imagem de um país manipulável, pau para toda a colher, utilizável para exemplo perante os mal-comportados. Com risco de descartável na primeira oportunidade, como acontece quase sempre aos muito servis. Bem dizia o povo sans cullottes, em plural de simpatia, “quanto mais a gente se agacha, mais se nos vê o rabo”. Perante este modelo de comportamento já não admira que até Marques Guedes, normalmente sóbrio e comedido, tenha deixado fugir o dispéptico lamento sobre o desabafo assassino de Juncker, que se veio a revelar um forte argumento negocial a favor dos gregos. Não admira a defesa áspera e quase só retórica, no fio da navalha, de Passos Coelho no debate quinzenal. Não admira o que transpirou das negociações finais do Eurogrupo sobre engulhos na garganta de representantes de Espanha e Portugal, a que Varoufakis respondeu com a elegância olímpica do respeito pelas posições e opiniões dos pares. Quanto se entra no caminho da humilhação, a cada uma se segue outra. Espero que se aprenda, mesmo que falte pouco para o final da genuflexão.

Dr. Jekyll e Mr. Hyde. A novela de Robert Louis Stevenson sempre actual. Encarregado pelo chefe da coligação de tratar da reforma do Estado, Paulo Portas produziu um irrelevante guião de banalidades e redundâncias. Não era difícil prever que tal reforma nunca levantaria voo e o lastro da máquina se tornaria cada vez mais pesado à medida que se aproximava o final de mandato. Pois bem, com mandato e sem obra, Portas reúne-se com empresários e desanca a burocracia lusitana, os licenciamentos desnecessários, os entraves que afugentam investidores. Isto é, bate em si próprio, porventura esquecido do seu papel principal: Mr. Hyde rapou da bengala para bater em Dr. Jekyll. Na novela, o repelente Mr. Hyde aparece morto e vestido com as roupas do Dr. Jekyll. Poupe-nos ao final, Dr. Portas.

Emprego público. Detive-me a estudar a Síntese Estatística do Emprego Público, 4.º trimestre de 2014, divulgada na semana passada. Em três anos saíram da administração mais de 71 mil pessoas, uma regressão de quase 10%, situando toda a máquina pública actual em 650 mil activos, 59% dos quais são mulheres. A administração local, cronicamente acusada de desperdício, reduziu 12.806 lugares. Mas foram a Educação e a Saúde as maiores contribuintes, 29.393 a primeira e 4466 a segunda, em apenas três anos. Com o pessoal do SNS contado à parte, tal como os hospitais IP, o total de perdas na Saúde ascende a 7822. Na análise por profissão, os cortes são mais visíveis: desapareceram dos quadros 23.089 profissionais de ensino da infância, básico e secundário, 797 do politécnico, 289 do universitário e 451 da investigação. Do pessoal da Justiça perdemos 1418, o que pode explicar parte do que nela ocorre. Na Saúde, perdemos 2107 enfermeiros, 462 técnicos de diagnóstico e terapêutica e técnicos superiores. Porém, nos médicos, em três anos tivemos um aumento de 959 profissionais, que o Governo ora traduz por mil, ora por mil e quinhentos e até dois mil. Médicos novos, jovens, em formação. Em exercício tutelado por seniores que agora inexistem ou escasseiam. Aqui se encontra parte da explicação para o drama actual dos serviços de urgência. Temos mais mil médicos do que no final de 2011, mas só daqui a quatro ou cinco anos eles entrarão em prática autónoma. Até lá, perdemos duplamente: os necessários para decidir do tratamento imediato, seguir o doente e por ele responder e os que ensinam os novos, incutindo-lhes saberes, experiência e confiança.

O mesmo se passa com a remuneração, elemento essencial da motivação, ainda que não exclusivo. Os médicos vencem no Estado muito menos do que se julga e perderam 78 euros no seu vencimento médio de base, entre 2011 e 2014. Não é muito. Mas se olharmos ao seu ganho médio mensal, onde se contam as noites de vela, de horas extras das urgências, aí a perda foi de 356 euros, de 3788 para 3432, brutos. Acrescentemos-lhe as subidas de IRS e adicionais e teremos um quadro implacável. A este contexto retributivo acresce o aumento da severidade na procura, fruto de degradação das determinantes da má saúde, a redução de camas de agudos, a paralisia no crescimento das unidades de saúde familiares e nos cuidados continuados e estaremos próximos do dramático, se a maré viva não for travada. Mas o pior de tudo foi a perda de 2107 enfermeiros, fazendo de novo inverter a pirâmide profissional. Não cobrir a saída por reforma ou as perdas da emigração, pensando que os recursos são sempre compressíveis, pode ser bom para mostrar resultados, pode aguentar-se por uns meses pelo brio e ética de profissionais, mas acaba por se pagar com língua de palmo. Dir-me-ão que aqui e ali havia pessoal a mais. Concedo, mas onde estão os estudos micro a demonstrá-lo? Seguir a aritmética das médias nunca reduz as caudas da distribuição normal, só o trabalho no terreno o consegue. E desse, nada consta.

Artigo Lua

Outra intermediação

Em Junho, o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos (FEIE), Fundo Juncker, com dotação prevista de 315 mil milhões de euros, estará em parte constituído, regulamentado e os primeiros projectos seleccionados. Antevê-se que no decurso do próximo ano os seus efeitos positivos adquiram visibilidade. O BEI antecipa-se e pré-financia, via Fundo Europeu de Investimento, projectos a financiar pelo FEIE. Deste modo, as PME com falta de liquidez, mas com viabilidade económica, encontrarão ambiente favorável, sem perda de tempo, para investir em projectos geradores de valor acrescentado para a União, com impacto na economia e no sector social. Recuperar o atraso no investimento que travou o ritmo do progresso técnico e fragilizou os factores de produção são metas do plano Juncker. Resolvida a questão da governance do fundo, contrariando as exigências dos accionistas (Comissão, Estados-Membros, fundos soberanos, outros) para investir nos seus territórios em suposto just retour, espera-se também outra concepção de intermediação financeira. Após um período ávido de liquidez, sem regulação e com expansão do endividamento, os intermediários financeiros têm que demonstrar, a partir de agora, que prestam serviço, com exigente estabilidade financeira e forte investimento. Menos especulação, mais produção. No entanto, permanece o paradoxo que domina a União e que pode acentuar-se com a política monetária do BCE – excesso de liquidez e falta de investimento. João Ferreira da Cruz, economista