Num cinema de Berlim jornalistas alemães fazem a autópsia da troika
O documentário Poder sem Controlo, de Harald Schumann, traz novas revelações sobre o “grupo de funcionários não eleitos que receberam o poder de mudar radicalmente” Portugal, a Grécia, a Irlanda e Chipre.
Ali, a dois passos do moderno edifício de cinemas – um gigantesco e envidraçado Sony Center –, erguia-se o Muro de Berlim. Ainda restam algumas placas de cimento na praça, que já era uma das mais movimentadas do mundo no início do século XX. O muro agora é apenas uma cicatriz no alcatrão, duas linhas paralelas que serpenteiam pelas ruas, mais ou menos despercebidas, até que o betão irrompe, descontinuado, aqui ou acolá, como cenário para as fotos dos turistas. O resto das pedras foram levadas, como recordação. Berlim virou a página. E é isso que os cerca de 200 convidados de Harald e Árpád estão aqui a fazer.
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Ali, a dois passos do moderno edifício de cinemas – um gigantesco e envidraçado Sony Center –, erguia-se o Muro de Berlim. Ainda restam algumas placas de cimento na praça, que já era uma das mais movimentadas do mundo no início do século XX. O muro agora é apenas uma cicatriz no alcatrão, duas linhas paralelas que serpenteiam pelas ruas, mais ou menos despercebidas, até que o betão irrompe, descontinuado, aqui ou acolá, como cenário para as fotos dos turistas. O resto das pedras foram levadas, como recordação. Berlim virou a página. E é isso que os cerca de 200 convidados de Harald e Árpád estão aqui a fazer.
Ao longo do último ano, Harald, que é um dos mais reconhecidos jornalistas de investigação alemães, com livros que vendem mais de um milhão de exemplares, e um outro documentário, sobre bancos, no curriculum, viajou de Lisboa para Atenas, de Nicósia para Dublin, de Frankfurt para Washington. Entrevistou mais de 30 pessoas, de Yannis Varoufakis a obscuros burocratas da troika. Quando começou, a troika não era, como o muro, uma recordação ou uma cicatriz. Estava em plena actividade.
Quando, na última semana, terminou a montagem definitiva do documentário, o Eurogrupo parecia ter declarado o óbito desta associação informal da Comissão Europeia com o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, destinada a intervir nos países que deixaram de poder refinanciar as suas dívidas depois do pânico gerado pela crise financeira de 2008. Na sexta-feira à noite, Harald deu por terminado o trabalho. E o Eurogrupo chegou a acordo para uma extensão dos empréstimos à Grécia, pela primeira vez sem a chancela da troika.
Timing perfeito para a estreia, sublinhado pela grande ovação no final. Harald subiu, timidamente, ao palco para agradecer, com Bondy. E explicou o que leva um alemão a querer saber o que maioria das instituições europeias ignoraram durante quase quatro anos: como foi possível que “um pequeno grupo de funcionários não eleitos recebesse o poder de mudar radicalmente alguns países?” “Só no final de 2013, em véspera de eleições, o Parlamento Europeu decidiu investigar. Durante três anos ninguém quis saber…”
As respostas que Schumann encontrou são surpreendentes. Thomas Wieser, presidente do grupo de trabalho do Eurogrupo, é um desses funcionários que poucos conhecem. Austríaco com gosto por gravatas pouco convencionais, é ele quem coordena os dossiers que, nas cimeiras dos ministros das Finanças da zona euro, acabam por redundar em decisões políticas.
Wiesel olha com um ar desconfiado para a câmara de Schumann, mas ensaia uma resposta: “Todas as acções que foram tomadas nos países sob assistência não tiveram lugar dentro do quadro legislativo normal da União Europeia.” Este reconhecimento não é um sinal de arrependimento, contudo. Wieser acredita que esse “estado de excepção” legal se justificou.
Mesmo se isso levou a situações tão impensáveis como a que é descrita no filme pelo ex-ministro grego da Reforma Administrativa. Antonis Manitakis era o responsável da pasta no último Governo da Nova Democracia, de Antonis Samaras. Certa noite, “às 11 horas”, recebe uma chamada do chefe do FMI em Atenas (que também esteve em Portugal), o dinamarquês Paul Thomson. Ouviu uma voz ríspida do outro lado: “Depende de si se a Grécia recebe o próximo empréstimo de 8 mil milhões de euros:” Manitakis afirma, indignado: “Fui chantageado. Ele queria medo e submissão. Deu-me a sensação, nas reuniões que tivemos, que eu representava um país não apenas em dificuldades, financeiras, mas basicamente corrupto.”
Não se julgue que isto é uma questão de choque político ou ideológico. A ex-ministra do Trabalho, que agora é a presidente não executiva do Banco da Grécia, conta uma história semelhante. Loika Katseli mostra um email, que recebeu da troika, onde se lê, a propósito de uma proposta de lei que o Governo grego pretendia aprovar: “Cara ministra, pedimos desculpa, mas a sua proposta é inaceitável. A lei deve ser escrita do modo que se segue…” E lá aparecia uma nova redacção, minuciosa da lei. Com um pequeno problema: não era no sentido que o Governo, eleito, pretendia…
"O pior que pode acontecer a um país é cair mãos de burocratas internacionais”, lamenta Paulo Nogueira Baptista, director executivo do FMI, em Washington. Este brasileiro tem assento no “conselho dos 24” que comanda os destinos do fundo, e reconhece que a participação da instituição no processo grego “foi um momento mau do FMI”. Não só porque tudo foi “pouco transparente”, mas também porque “nos ambientes protegidos de Washington e de Bruxelas” ninguém consegue “sentir os problemas dos países” sob intervenção.
Uma das entrevistas mais curiosas, e que despertou gargalhadas na assistência no cinema Arsenal, foi dada por um desses “burocratas”, Albert Jaeger, também austríaco, representante do FMI na troika portuguesa. O clímax aconteceu com uma pergunta simples de Schumann: “Porque está escrito no memorando português que o BPN tem de ser vendido no prazo máximo de um mês?” Resposta, sorridente: “Sobre esse assunto eu preferia não comentar casos específicos.”
Jaeger tem o papel de redimir a seriedade do documentário com momentos cómicos. Schumann pergunta-lhe por que razão insiste a troika em mexer na legislação laboral portuguesa e em baixar os salários. “Na situação em que Portugal se encontra, tem de aumentar a competitividade. Muitas das reformas laborais foram muito úteis para a competitividade da economia.”
Porém, os maiores beneficiários dessas medidas, os empresários portugueses, desmentem Jaeger no minuto seguinte. António Saraiva, da CIP, explica a Schumann que “os salários em Portugal não são elevados". "Os salários baixos fazem parte de um modelo de desenvolvimento ultrapassado. Num inquérito aos nossos empresários, a reforma laboral aparece em sétimo lugar das suas prioridades. A troika limitou-se a ouvir-nos, mas pouco fez. Acho que deveria ter a nossa opinião em consideração.”
Paul Krugman, economista, resume o problema a Schumann: “Se nós somos Angela Merkel, tomamos decisões que afectam gregos e portugueses, mas só respondemos aos eleitores alemães…”
Estes eleitores alemães, aqui presentes em Potsdamer Platz, sorriem. E os eleitores dos países sob intervenção, quando tiverem a tentação de tomar a parte pelo todo também podem sorrir, quando descobrirem que Harald Schumann, que é grande repórter do diário Der Tagesspiegel, tem como editora a filha do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble.