“Portugal devia estar a preparar, há muito tempo, uma saída ordenada do Euro”
Miguel Tiago, o coordenador dos deputados comunistas na comissão parlamentar de inquérito ao BES e ao Grupo Espírito Santo, considera que as propostas do Governo grego são “inconciliáveis” com a União Europeia.
Para o deputado comunista, um passo necessário é "o controlo público da banca". E aqui a conversa deriva para outro tema, fora das fronteiras de Portugal. Miguel Tiago considera que a União Europeia faz parte do problema, não da solução: "Não se trata de aprofundar o federalismo ou a união política ou monetária. Pelo contrário. A solução passa por desconstruí-la e devolver a soberania aos Estados." E preparar uma "saída ordenada" do euro pode ser um "instrumento" inevitável, garante.
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Para o deputado comunista, um passo necessário é "o controlo público da banca". E aqui a conversa deriva para outro tema, fora das fronteiras de Portugal. Miguel Tiago considera que a União Europeia faz parte do problema, não da solução: "Não se trata de aprofundar o federalismo ou a união política ou monetária. Pelo contrário. A solução passa por desconstruí-la e devolver a soberania aos Estados." E preparar uma "saída ordenada" do euro pode ser um "instrumento" inevitável, garante.
Esta comissão de inquérito está a cumprir as expectativas do PCP, que foi quem a propôs?
Como partido proponente, julgo que temos particular legitimidade para afirmar que a comissão tem sido bastante útil para compreender como funcionava aquele grupo económico, quer a componente financeira, quer a não financeira. Tem mostrado, com grande clareza, a forma como as suas práticas passavam completamente despercebidas. E quando eram detectadas ficavam imunes à supervisão. Ao mesmo tempo tem-se desvendado, ainda que não totalmente, até agora, uma certa relação estabelecida há várias décadas entre o grupo e o poder político. E entre o grupo e outros sectores do poder económico.
Que relações eram essas?
Relações de predação, de cooperação, de controlo. Em alguns casos levando essas empresas à falência.
Está a falar da PT?
Da PT, sim. Mas também foi tentado com a Semapa. Havia uma relação entre o GES e outros grupos económicos, que era de absorção de recursos, extracção de mais-valias. Isso tornava o GES um grupo claramente monopolista no tecido económico português. Temos vindo também a perceber, mais do que antes desta comissão, como funcionava um grupo monopolista, ou um conglomerado misto, como agora se diz. De facto, a supervisão não tem meios, nem se adivinha que venha a ter.
Porquê?
Enquanto se permitir que bancos e empresas não financeiras partilhem o mesmo grupo económico, isso vai sempre gerar vários fluxos de capitais que escapam à supervisão.
Na sua opinião, já existe uma história clara para contar acerca do BES? Foi um problema sobretudo de gestão, ou de supervisão, ou de relações entre o poder económico e o poder político?
Julgo que seria um erro tentarmos circunscrever a história a um desses problemas. É evidente que houve má gestão. Para isso não seria preciso uma comissão de inquérito. A questão é saber como é que num sistema que se diz tão regulado, tão supervisionado, tão regulamentado, isto acontece. O Ministério das Finanças é o garante da estabilidade financeira, o Banco de Portugal é o supervisor do sector, a CMVM fiscaliza e regula o mercado de capitais. Estas entidades como que dão um carimbo, inclusivamente a União Europeia, a dizer: "É seguro porem ali o vosso dinheiro." Quando há má gestão, e ela provoca um rombo daquele tamanho do banco, significa que afinal não é seguro. Logo, o problema não é só a má gestão. Este é um sector no qual a má gestão não pode ser desculpa para o Estado acorrer. Nos outros sectores, quando há má gestão, os próprios assumem as perdas. Num banco, as perdas são o dinheiro dos depositantes. Estávamos todos convencidos de que o dinheiro estava seguro e, afinal, o dinheiro não estava lá. Não só não estava como faltava, e muito.
Porque a área não financeira estava a perder dinheiro?
Principalmente a ESI. Neste contexto, o Estado foi obrigado a acorrer. A forma em concreto é questionável. Podia ser a resolução, como foi, podia ter sido uma recapitalização.
Qual é a sua opinião?
Para já, com o que sabemos até agora, o Governo devia logo na altura ter congelado todos os bens do grupo, e até alguns bens da família Espírito Santo, devia ter impedido todas as vendas e reorganizações, e assumido o controlo público até se aperceber da real situação.
Quando diz "na altura", está a falar de finais de 2013?
Exactamente. Assim que o Estado teve conhecimento da dimensão do problema. E também é estranho que só se tenha apercebido nessa altura.
Sabe-se que Pedro Queiroz Pereira e José Maria Ricciardi fizeram chegar ao Governo e ao Banco de Portugal informação detalhada sobre os problemas do grupo antes disso.
Sabemos que vários lançaram apelos. O próprio Ricardo Salgado lançou apelos à ministra das Finanças, a Paulo Portas, a Passos Coelho, ao Presidente da República. Estamos convencidos de que esses titulares de órgãos de soberania vieram a público tranquilizar o mercado e os depositantes para não perturbar o banco ainda mais. Se fizeram o suficiente para garantir a estabilidade e o interesse nacional, estamos convencidos de que não. O que não quer dizer que deviam ter feito o que Salgado queria. O banco estava a sofrer com a área não financeira.
Uma drenagem?
Exactamente. Por isso, nesses termos, uma recapitalização seria perversa. Mas o que se passou não nos parece ter sido a melhor solução, por vários motivos: o Estado teve de colocar capital no Fundo de Resolução, 3,9 mil milhões, que não sabemos quando vão ser pagos, e podem não vir a ser; em segundo lugar, porque vamos entregar novamente o banco a privados, quando já se provou que isso foi a maior asneira, quando em 1990 se entregou o BES de mão beijada à família Espírito Santo, juntamente com a Tranquilidade. Foi para isto. O banco era sólido e foi entregue de mão beijada. A privatização foi criminosa.
Esta resolução é uma forma nova, quase experimental, de lidar com um problema destes?
Praticamente. O Estado não assegurou os direitos de alguns tomadores de produtos, como os do papel comercial.
Aí há muitas informações oficiais contraditórias. O Novo Banco já disse que se responsabilizaria por esses clientes, mas agora diz que não tem essa obrigação.
Aquele produto é claramente tóxico, era claramente um mau investimento, mas a questão é saber se o tomador do produto estava consciente disso, ou se era o banco que lhe colocava nas mãos um produto tóxico. É evidente que houve informações contraditórias, que ora vai ser pago ora não vai, mas o problema tem uma dimensão relativamente pequena. Entretanto, estão a vender-se os activos importantes: a Espírito Santo Saúde, o BESI, e todos os activos, como os hotéis, que poderiam vir a ser utilizados pelo Estado para compensar a injecção de dinheiro, estão a ser vendidos e entregues, alguns deles a capital estrangeiro. Não está sequer garantido o retorno pela venda do banco. E anda não se percebeu se o Estado teve de pagar pelas imparidades de Angola.
Um dos temas que mais tem aprofundado na comissão é a mistura do negócio da banca com as áreas não financeiras. Já existe um consenso político para mudar as regras?
Julgo que existe um patamar de consenso, que na minha opinião é insuficiente. Parece-me que já toda a gente percebeu que o conglomerado misto levanta problemas que não estavam desvendados, mas para os quais o PCP há muito alertava. Quando a Constituição da República diz que o Estado deve intervir para impedir as concentrações monopolistas, é porque já na altura se sabia o que estes grupos representam para a economia. Quando se funde a área financeira com a não financeira, um grupo destes pode substituir capital por crédito. Não tem capitais, mas tem crédito.
Os bancos podem criar dinheiro do nada, concedendo crédito.
A partir daí cria-se uma desigualdade entre esse grupo que tem um banco e todos os outros. As pequenas e médias empresas e o sector produtivo são afectados. Esse consenso já perpassa todos os grupos parlamentares, no sentido de haver regras próprias. Mas o PCP vai um pouco mais longe: os grupos mistos que existem devem ser gradualmente diluídos, devem ser restringidos os fluxos de crédito dentro do mesmo grupo, deve ser proibida a venda de papel comercial das empresas do grupo no banco do grupo. Mas, em última análise, até isso pode ser insuficiente. Pode gerar uma circulação entre os bancos: "Tu emprestas ao meu grupo, eu empresto ao teu." O que já se passa, em Portugal. Quando um atinge o limite de crédito, das duas, uma: ou cria outra empresa, ou vai buscar crédito a outro banco.
Isso cria uma interdependência entre os bancos que faz com que uma crise isolada, num só banco, acabe por afectar todos?
Como um castelo de cartas. Há bancos expostos à dívida do GES. O risco é sempre sistémico. Na perspectiva do PCP, os conglomerados mistos privados não deviam sequer existir. Propomos que, de forma planificada, o Estado ganhe controlo público sobre a banca, e que isso possa conduzir, depois de identificados os problemas da banca, a nacionalizações.
Esta comissão tem sido seguida com atenção pela opinião pública, mas há descrença quanto à possibilidade de haver novas práticas que limitem a possibilidade de haver, no futuro, novos casos BES. Concorda?
Há uma expectativa criada em torno das comissões de inquérito que foi falsamente criada, não percebo porquê, talvez pela palavra "inquérito", de que haverá apuramento de responsáveis e prisões. Essa é uma expectativa que não se pode ter. Muitas vezes as pessoas perguntam-me: "Quem é que vai preso?" É bom arredar essa expectativa, porque isso não é a função da comissão de inquérito. Eu sei que a sua pergunta não era essa. A comissão tem todas as condições para apresentar ao Parlamento um relatório com todas as conclusões para que isto nunca mais se repita. A questão é saber se quer. A comissão condicionará as suas conclusões à vontade da maioria, que, na avaliação do sistema capitalista, se conjuga com o PS. Têm a mesma visão do sistema, independentemente das diferenças. A seguir ao BPN disseram-nos que tomariam medidas para que isto não se repetisse, depois o BPP, depois o Estado entrou no Banif, no BCP. Andamos de falência em falência com o Estado a acudir à banca. A solução maior é o controlo público, com vista a uma futura nacionalização. Os alemães têm grande parte do sector financeiro sob controlo público, e do não financeiro também. São sistemas capitalistas, mas que têm outra visão da soberania.
É por isso que não acredita numa solução europeia?
O problema é muito complexo, mas para o PCP não se trata de aprofundar o federalismo ou a união política ou monetária. Pelo contrário. A solução passa por desconstruí-la e devolver a soberania aos Estados. Quando discutimos eurobonds ou o financiamento do BCE aos Estados, estamos sempre na óptica do funcionamento actual da União. E esta União é controlada por países poderosos que penalizam os restantes. É uma ilusão pensarmos que pode haver uma política alternativa nesta Europa.
Como é que se pode mudar alguma coisa, então?
A transformação faz-se de baixo para cima. Não é a cúpula europeia, têm de ser os povos, nos Estados. Tem de haver uma libertação de Portugal para haver uma mudança na Europa. Tal como na Grécia.
Como tem visto a mudança de Governo na Grécia?
É no seu território que os povos têm de colocar entraves à construção do projecto europeu. Há quem diga que se está a trair o projecto europeu, mas não, é o contrário: a Europa está a cumprir o seu projecto. Sempre foi um projecto centralista, de concentração. Como é que estamos a olhar para Grécia? Em primeiro lugar com a alegria de ver que há um povo que rejeitou o círculo vicioso PS/PSD, no caso PASOK/Nova Democracia. Isso, em si, é um factor de esperança. Apesar de não conhecermos ainda muito bem a consistência do programa do Governo. Não sabemos como isto vai desenvolver-se, mas pessoalmente estou confiante de que os trabalhadores gregos, no terreno, vão decidir se o Governo vai ter condições para romper com a austeridade.
Qual é o cenário mais provável? Vai haver acordo? A Grécia pode sair do euro?
Enquanto comunista, esta União Europeia e aquele programa não são conciliáveis.
Está a dizer o mesmo que a Alemanha tem dito.
É um facto... Parar as privatizações, intervenção em sectores estratégicos da economia, devolver salários e pensões? Isso não é conciliável com a União. Aquele projecto é inconciliável. Em última instância, ou a Grécia altera o seu programa e se conforma, ou a União teria de se conformar com a Grécia, o que não me parece viável.
Está céptico?
Estou. A única forma para isso acontecer seria a Grécia sair do Euro, o que pode ser catastrófico para o povo grego, se não estiver preparado para isso, numa circunstância quase de expulsão. A Grécia, não estando preparada para isso, o que devia fazer era planear essa saída, negociar a saída. Mas isto é especulação.
Na sua opinião, Portugal devia fazer o mesmo?
Portugal devia estar a preparar, há muito tempo, a saída ordenada do euro. Tendo em conta a drenagem de recursos nacionais e a estagnação económica que a união monetária representou. Não deve ser uma saída por expulsão, nem por impulso.
Acha que essa é a solução para os problemas do país?
A renegociação da dívida e a saída ordenada do euro e, eventualmente, a alteração do nosso posicionamento face à União não são soluções, são instrumentos. Podem vir a demonstrar-se necessários. São passos que podem vir a ter de ser dados, mas a solução é outra. É o controlo das alavancas da economia, é a garantia de direitos na Saúde e na Educação e uma qualidade de vida, acabar com o desemprego, o controlo da banca. Isso é que são as soluções. A saída do euro não é, para os comunistas, um sinal de vitória. Pode é ser um instrumento, e teria de ser negociada. O povo português não pode sentir-se limitado perante escolhas futuras.