Alemanha permite primeira reedição de Mein Kampf desde 1945

Após vários avanços e recuos, o governo da Baviera admitiu a publicação, em 2016, de uma edição comentada do manifesto de Hitler.

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AFP

O projecto começou a tomar forma em 2010, e o argumento dos académicos envolvidos era o de que uma publicação anotada, que desmontasse as teses de Hitler, atenuaria os efeitos das edições comerciais que poderiam chegar às livrarias quando se cumprissem 70 anos sobre a morte do Führer, em 2015, e a obra entrasse no domínio público.

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O projecto começou a tomar forma em 2010, e o argumento dos académicos envolvidos era o de que uma publicação anotada, que desmontasse as teses de Hitler, atenuaria os efeitos das edições comerciais que poderiam chegar às livrarias quando se cumprissem 70 anos sobre a morte do Führer, em 2015, e a obra entrasse no domínio público.

No final da II Guerra, quando as tropas americanas ocuparam Munique, a editora que publicara Mein Kampf, a Franz Eher, a mais importante editora nazi de jornais e livros, foi desmantelada e os direitos que esta detinha sobre o livro de Hitler transitaram para o governo da Baviera, que nunca permitiu a reedição da obra, autorizando apenas a publicação de alguns excertos para fins pedagógicos.

Após resistências iniciais, o governo da região alemã da Baviera acabou por assumir o projecto do IHCM, tendo-lhe mesmo atribuído um financiamento de 500 mil euros. Mas em 2012, na sequência de uma visita a Israel do líder do governo regional bávaro, o democrata-cristão Horst Seehofer, o executivo acabou por mudar de ideias e bloqueou a edição, afirmando tratar-se de um livro que “levou à morte e perseguição de milhões de pessoas” e esclarecendo que não desejava “ferir os sentimentos das vítimas”.

Mas o Instituto de História Contemporânea de Munique (IHCM) nunca deixou cair a ideia, e a discussão das vantagens e desvantagens de uma reedição comentada da cartilha hitleriana foi evoluindo. A própria organização que federa a maioria das associações judaicas na Alemanha, o Zentralrat der Juden in Deutschland, acabou por se aproximar da posição do instituto, com o seu secretário-geral, Stefan Kramer, a explicar que a proliferação da obra na Internet o levou a rever as suas iniciais reservas a esta reedição comentada: “É muito importante que os jovens vejam a versão crítica quando clicarem em Mein Kampf na Internet”.

Há menos de um ano, o então presidente da mesma organização, Dieter Graumann, actual vice-presidente do Congresso Mundial Judaico, defendera que Mein Kampf “foi e continuará a ser uma obra de ódio irracional puramente anti-semita, que deveria ser proibida para sempre”.

A solução agora encontrada pelo governo da Baviera é uma espécie de compromisso. O seu responsável da Educação e Cultura, Ludwig Spaenle, anunciou há dias que o governo bávaro deliberou retirar o seu veto à edição do IHMC, mas não patrocinará oficialmente o livro, ainda que também não tencione pedir a devolução das verbas que o instituto já recebeu para desenvolver o projecto, que envolve uma equipa de cinco especialistas.

Ambiguidades legais
Embora as antigas edições de Mein Kampf tenham sempre continuado a vender-se na Alemanha, de forma mais ou menos discreta, a reedição do livro foi sendo eficazmente inviabilizada por duas vias: o governo da Baviera, enquanto detentor dos direitos, não a autorizava, e a legislação federal entendia que uma publicação pura e simples do texto de Hitler era um gesto de propaganda nazi, proibido pela legislação contra o incitamento ao ódio racial e à violência.

Daí que não seja claro que, após a extinção dos direitos de autor, qualquer chancela alemã possa avançar com reedições comerciais de Mein Kampf e colocá-las nas livrarias. Prevendo que a questão irá colocar-se, os ministros da Justiça dos vários governos regionais já divulgaram aliás uma decisão conjunta, em meados de 2013, a declarar que mesmo após a extinção dos direitos de autor do manifesto hitleriano, a sua reedição continuará a ser proibida na Alemanha.

Uma interdição que teoricamente poderia também abranger as edições comentadas, que a legislação não refere. Mas o facto de o governo da Baviera ter agora anunciado que não tomará qualquer medida para impedir a publicação da edição de Mein Kampf que o IHCM se propõe lançar no início de 2016 é um sinal de que as versões críticas deverão ser consideradas uma excepção tácita pelas autoridades alemãs.

Apesar da longa luta que travou para convencer os decisores políticos das virtudes desta monumental edição comentada, o Instituto de História Comparada também não ignora que está a lidar com um tema sensível e não está interessado em transformar o lançamento da obra num grande acontecimento mediático. “O livro vai ser editado pelo Instituto para evitar que editoras privadas ganhem dinheiro com ele”, diz a porta-voz do IHCM, Simone Paulmichl, e embora não esteja ainda decidida a tiragem e o preço, parece pouco provável que venha a tornar-se num bestseller. Quer pelo aparato académico – cinco mil notas e comentários, que ocuparão quase dois terços das 2000 páginas do livro –, quer pelos 160 euros que, segundo o jornal alemão Die Zeit, poderá vir a custar cada um dos dois tomos da obra.

Um lixo que mudou o mundo
O texto de Hitler cabe em 700 páginas e inclui os dois volumes originais de Mein Kampf. O futuro líder do III Reich ditou o primeiro em 1924, no período em que esteve detido na prisão de Landsberg após a fracassada tentativa de golpe de Estado de 9 de Novembro de 1923, quando os nazis tentaram tomar de assalto o governo da Baviera. Este primeiro tomo foi publicado em 1925 e o segundo no ano seguinte, já com Hitler em liberdade.

Se o primeiro volume pretende retratar o seu percurso biográfico e a sua formação, da infância “na casa paterna” (primeiro capítulo), passando pelos “anos de aprendizagem e sofrimento em Viena” (segundo capítulo), até à criação e período inicial do Partido Nazi, o segundo, expõe as suas doutrinas racistas e anti-semitas e sintetiza a sua visão para o partido e para a Alemanha.

Uma das tarefas em que os investigadores do IHCM mais investiram foi a de rastrear as fontes de Hitler (quase nunca citadas pelo autor), mostrando que uma parte muito substancial de Mein Kampf veio directamente dos livros, jornais e panfletos anti-semitas da época. E procuraram também desmentir de forma sistemáticas as mentiras e meias-verdades que o livro apresenta como supostos factos. Num artigo para a revista New Yorker, a jornalista Sally McGrane cita um exemplo adiantado pelo historiador Christian Hartmann, que coordena as notas desta edição. “Hitler queixa-se de que os parlamentares não lutaram na frente durante a primeira guerra”, observa Hartmann, “e é verdade que só dois o fizeram, mas esquece-se de dizer que um deles era judeu e social-democrata, e morreu na frente”.

Um exemplo anódino, tendo em conta algumas das opiniões que Hitler expressa no livro como a de sugerir que a Alemanha devia ter gaseado dez mil judeus na primeira guerra. “Dá-nos arrepios”, diz Hartmann. “Geralmente não temos de dar atenção a lixo deste género, mas este mudou o mundo”.

No ano do seu lançamento, em 1925, Mein Kampf vendeu 9473 exemplares, números que foram descendo gradualmente nos anos seguintes. Em 1928, vendeu apenas 3015, mas a partir de 1929 as vendas começaram outra vez a subir. O grande salto – para um milhão de exemplares – ocorre em 1933, quando Hitler chega a chanceler. Em 1940, o livro, quase obrigatoriamente oferecido em baptizados e casamentos, vendeu seis milhões de exemplares.