Sabemos o que se passa e deixamos acontecer: a culpa também é nossa

No século XX, cerca de 30 mil crianças foram abusadas física e sexualmente em instituições católicas na Irlanda. A companhia Brokentalkers estreia-se em Portugal com uma peça sobre o caso, The Blue Boy, e provoca no público sentimentos de culpa.

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As máscaras são de papel vincado e dão um ar desfigurado a cada cara. São todas iguais porque são símbolo do roubo de uma identidade. “Tiravam-lhes os nomes e atribuíam a cada criança um número”, conta Cannon ao PÚBLICO.

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As máscaras são de papel vincado e dão um ar desfigurado a cada cara. São todas iguais porque são símbolo do roubo de uma identidade. “Tiravam-lhes os nomes e atribuíam a cada criança um número”, conta Cannon ao PÚBLICO.

The Blue Boy, criado por Feidlim Cannon e Gary Keegan em 2011, quer mostrar a vida das cerca de 30 mil de crianças que durante o século XX foram agredidas fisicamente e abusadas sexualmente em instituições de educação católicas na Irlanda.

Este caso foi tornado mediático em 2009, quando o Ryan Report [relatório Ryan], que levou dez anos, concluiu que estas escolas apoiadas pelo Estado irlandês para educar as crianças órfãs ou de famílias pobres funcionavam como prisões e campos de trabalho e tinham hábitos de violência física e abuso sexual continuados.

Não eram alimentadas, não tinham cuidados de saúde e em muitas instituições eram levadas para fábricas durante o dia. As agressões eram como rituais que sabiam que iam acontecer todos os dias, sem necessidade de uma razão. O relatório responsabilizou os governos e autoridades irlandesas por não terem parado o ciclo vicioso.

Os Bronkentalkers, que se estreiam agora em Portugal, têm um percurso com histórias e acontecimentos reais que constroem o tecido da Irlanda actual: em 2009, encenaram Silver Stars, a partir das histórias de homossexuais irlandeses de meia-idade, em 2012 a mãe de Cannon subiu ao palco para falar de como levou a família para a frente depois da morte do marido e de um dos filhos, em Have I no Mouth.

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Quando Feidlim Cannon e Gary Keegan, ambos fundadores e directores da companhia criada em 2001, souberam que os dez anos do Ryan Report tinham chegado ao fim, sentiram que tinham de fazer esta peça, que tinham de estar “envolvidos no diálogo”, diz Cannon. Falaram, como é o seu método, com todos aqueles que lhes podiam trazer uma luz sobre a situação: sobreviventes, políticos, jornalistas, padres, cerca de 60 pessoas.

Numa das primeiras cenas, um bailarino está encostado a uma das paredes do cenário, de máscara voltada para o público. Tem a máscara na nuca e salta, dobra-se, arrasta-se. O seu corpo, por causa da cara fora do sítio, parece especialmente contorcido e irremediavelmente quebrado.

“Sentimos que os bailarinos [coreografados por Eddie Kay] poderiam conduzir melhor esta dor através do movimento”, diz Cannon, para explicar o porquê de não terem escolhido trabalhar com actores e de não apresentarem cenas de agressão, mas apenas as sugerirem com movimentos e música bruscos e repetitivos.

“Quando são actores a representarem, há uma distância entre eles e o que aconteceu — foi um dramaturgo que escreveu as falas. Além disso, quando as cenas são demasiado explícitas, é difícil relacionarmo-nos com elas, desligamo-nos porque são tão extremos”, explica, acrescentando que queriam, antes de mais, fazer uma obra de arte.

Aos bailarinos e à música juntam-se excertos das gravações áudio das entrevistas com os sobreviventes, hoje com cerca de 50 anos: “Diluíamo-nos nas fardas cinzentas e confundíamo-nos com o dia cinzento, especialmente no Inverno.” “Tento ficar menos próximo deste passado, porque as pessoas crescem. Quando os pais tratam das crianças, elas crescem com confiança, aos 21 já viajaram o mundo. Eu já não tenho rins e tenho esta dor que se transforma em raiva”, ouve-se no último testemunho, cheio de pausas de quem tenta arranjar maneira de se explicar. Muitos dos sobreviventes, de entre as milhares de vítimas, tornaram-se sem-abrigo, toxicodependentes ou alcoólicos, porque, ao saírem das escolas, não tinham nada, nem mesmo educação.

Para além das vítimas, há a voz de um narrador, Gary Keegan, que cresceu junto a uma destas escolas, a de Artane, a maior escola industrial da Irlanda. No início tem uma régua na mão, daquelas antigas, que se desdobram, e vai mostrando como brincava com ela em pequeno — dobra-a para fazer um cavalo, um dinossauro, uma guitarra — e explica que o avô a usava para trabalhar. Era coveiro e foi algumas vezes ao edifício da instituição levantar corpos de crianças mortas.

“O Gary é de alguma maneira a sociedade irlandesa, porque toda a gente teve alguma relação com estas atrocidades em algum ponto. Ele e a régua são as pessoas que estavam fora do edifício, também cúmplices da história. Não é preciso ser-se irlandês para se ter esse sentimento de culpa: há abusos a acontecer por todo o mundo e não só no seio da Igreja Católica.”

É esta Irlanda que sabe o que se passa que ri e aplaude quando o padre Joe O’Connor vai à televisão nacional falar de como educa as crianças na escola industrial de Artane — entrevista projectada durante a peça. “Se há alguém que merece uma vénia pela Artane Boys’ Band, é o padre O’Connor”, diz o apresentador, referindo-se à banda de rapazes que tocou para reis, presidentes norte-americanos e de que o país se orgulhava.

“Ele era particularmente violento para as crianças”, diz Cannon, que costumava ter dores de cabeça e sentir-se fisicamente doente ao ler os relatos registados no relatório nacional. “Viviam um dia de cada vez, sem alguém que fosse um exemplo. Muitos dos rapazes e raparigas mais velhos começavam a bater e a abusar dos mais novos, porque essa era a única realidade que conheciam. Nunca tiveram uma oportunidade de ser crianças.”

O dia-a-dia era o trabalho, a necessidade de roubar comida e as agressões e é a essa rotina quase ritualística que os Bronkentalkers querem chegar: os bailarinos repetem movimentos, agem em sincronia, fazendo o mesmo gesto uma e outra vez, no meio de pouca luz, à frente da projecção de um corredor interminável. O corpo é o que está sempre em risco, ora com a mão agarrada à garganta, ora ao arriscar-se a passar no intervalo de uma corda que bate pesada no chão.

"O menino azul" do título é o nome que os moradores de Artane deram ao fantasma de uma criança que diziam vaguear por este subúrbio de Dublin depois de morta. “Toda a gente sabia que havia alguma coisa de errado, mas não agiam. É muito difícil para a sociedade irlandesa lidar com essa vergonha de si mesma. As pessoas preferem que não se fale, mas é importante que se assuma a vergonha para que não volte a passar-se nada assim.”

Os sobreviventes podem actualmente recorrer a uma indemnização, através do redress board: descrevem a violência de que foram alvo e uma escala pré-feita avalia a gravidade do que viveram e portanto o dinheiro a que têm direito. No fim assinam um contrato em que se comprometem a não voltar a falar na sua experiência. “Muitos deles falaram connosco. Foram muito corajosos”, diz Cannon, lembrando que esta não é uma história sobre a Irlanda de há 50 anos, mas sobre a Irlanda de hoje.