Leves como fios
As esculturas de Miguel Ângelo Rocha voam pelas salas de exposições temporárias do CAM.
O escultor falava-nos a propósito da sua mais recente exposição, Antes e Depois, inaugurada no Centro de Arte Moderna. Trata-se de escultura, como é habitual no trabalho deste artista, mas uma escultura que se duplica através de uma peça sonora, composta para esta exposição por Pedro Moreira, José Luís Ferreira e André Fernandes. Explicam estes últimos que gravaram um conjunto de 13 gestos em saxofone e guitarra, blocos de material musical depois arranjado electronicamente, e que, através de colunas escondidas dentro das paredes do espaço expositivo, estão continuamente a ser passados sem nunca se repetirem durante os três meses que dura Antes e Depois. O espectador que eventualmente visite esta mostra mais de uma vez nunca ouvirá, assim, a mesma música, a mesma sonoridade dentro da sala.
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O escultor falava-nos a propósito da sua mais recente exposição, Antes e Depois, inaugurada no Centro de Arte Moderna. Trata-se de escultura, como é habitual no trabalho deste artista, mas uma escultura que se duplica através de uma peça sonora, composta para esta exposição por Pedro Moreira, José Luís Ferreira e André Fernandes. Explicam estes últimos que gravaram um conjunto de 13 gestos em saxofone e guitarra, blocos de material musical depois arranjado electronicamente, e que, através de colunas escondidas dentro das paredes do espaço expositivo, estão continuamente a ser passados sem nunca se repetirem durante os três meses que dura Antes e Depois. O espectador que eventualmente visite esta mostra mais de uma vez nunca ouvirá, assim, a mesma música, a mesma sonoridade dentro da sala.
E, contudo, não se trata de música ambiente. Os músicos afirmam explicitamente que o escultor lhes pediu que não criassem um fundo musical mas, explicando-lhes o conceito da exposição, falou de linha, de espaço, de vazio. Foi isso que pretenderam traduzir: uma linha melódica que se desenrolasse sem repetições nem pontos de contacto. Dito de outra forma, fizeram uma escultura sonora. O que não é inédito. Nos anos 60, por exemplo, Robert Morris já tinha criado uma Box with the sound of its own making, caixa que continha uma gravação dos sons da sua própria construção.E o próprio Miguel Ângelo Rocha fez, em tempos, instalações que incluíam uma componente sonora.
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Quanto à peça em si, trata-se de um emaranhado de finas linhas em contraplacado pintadas de branco, que se distribuem por três espaços distintos: a sala polivalente do CAM e a Sala de Exposições Temporárias, dividida para esta ocasião em duas partes distintas. O artista concebeu a peça como um todo. Vêmo-la assim ocupar o espaço da Sala Polivalente, sobre o anfiteatro de cadeiras e o vazio sobre o palco, continuar como se atravessasse paredes para as salas contíguas, e enovelar-se no espaço, numa aparente contradição da sua materialidade física, mal tocando no chão.
O curador da exposição, Nuno Crespo, num texto que contextualiza a obra do escultor, fala de tempo e de espaço. Podemos na realidade inferir esta presença do tempo no próprio título, Antes e Depois, que, como o artista conta, não tinha esta estrutura no momento em que o pensou. Numa entrevista feita por Maria João Gamito, também publicada no catálogo, menciona que estas palavras eram seguidas por outras duas, que decidiu retirar por sugestão de Isabel Carlos. E acrescenta: “Contudo, sendo uma referência a dois momentos sequenciais no tempo, e um tempo métrico, senti necessidade de as rasurar, mas de não as obliterar mantendo, portanto, as palavras e a rasura; elemento também gráfico; linha contínua – um gerúndio.” Antes e Depois, Before and After são escritas om esse risco que implica uma emenda, deixando-se contudo ao leitor a possibilidade de saber o que existia antes dela.
Esta palavra, gerúndio, este modo verbal que indica uma continuidade temporal, reforçada pelos advérbios “antes” e “depois”, será a chave para compreender a instalação idealizada para este espaço. Voltamos aqui à afirmação de Rocha citada no começo do nosso texto, que falava da impossibilidade de ser ajudado por alguém na realização da obra. Acrescenta ele: “É que há uma distância grande entre o desenho preparatório de uma escultura e a sua concretização final. O acaso intervém sempre. E eu aceito-o, desde que ele não intervenha na concentração e na intensidade necessárias para realizar a escultura.” Miguel Ângelo Rocha fala ainda de John Cage, e menciona, a propósito desta interferência do acaso, a possibilidade que este compositor dava aos músicos de improvisarem nas peças que compunha. E conclui: “A escultura vai mudando à medida que é feita, vaza o espaço, nega o volume. Abrir-se ao acaso não significa que o desenho passe a ser aleatório.”
O desenho, de facto, e agora exclusivamente sob o ponto de vista formal, é a grande presença nesta escultura que recusa o volume - excepto se considerarmos os volumes em negativo das salas onde se desdobra. É que, na obra deste artista, as fronteiras entre as diferentes disciplinas artísticas estão constantemente a ser ultrapassadas e transgredidas. Seja, como aqui sucede, e tem sucedido noutras exposições recentes (recordo uma outra, com Sara Bichão, na Galeria Quadrum; ou a sua intervenção na Landart Cascais de 2013), na materialização das linhas fluidas do desenho através da madeira. Seja, noutras ocasiões, pela presença da cor na escultura, esse elemento que costuma ser apanágio da pintura. Seja ainda, finalmente, mas isto é mais antigo, pela presença de materiais moles na escultura, tecidos, telas, enchimentos têxteis que extravasam caixas penduradas em paredes. Ou ainda, sobretudo nos desenhos, a presença de um gesto largo, orgânico, a recordar o corpo actuante, de que aqui também faz memória, tanto na escultura como nas sábias sombras projectadas nas paredes por uma iluminação impecável. Contaminações, transgressões? Miguel Ângelo Rocha prefere usar outras palavras na entrevista já mencionada. Ao referir o seu processo de trabalho, diz que o mesmo inclui sempre “excessos”, “imperfeições”, “impurezas”, “ambiguidades”.E acrescenta: “Para que uma obra nos “toque”, tem que incluir a possibilidade do “estranho” (ou estrangeiro), aquilo que permite uma espécie de “saída” ao que simultaneamente propõe e dá a ver.”