Correr para ficar quieto

Depois da estreia em clima de festa no Lisbon & Estoril Film Festival, Os Belos Dias de Aranjuez, de Peter Handke, chega à cena de forma mais íntima no São Luiz: de 19 a 28 de Fevereiro.

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Ou melhor, a conversa entre um casal de intimidade tão antiga que as suas almas parece que se conhecem desde sempre, e que só podia ter lugar numa cidade banhada pela parte espanhola do Tejo, com um palácio real reconstruído. Ou talvez Os Belos Dias de Aranjuez se passe num outro lugar, sem tempo nem espaço concretos — o da paixão que docemente se transforma em amor e depois em amizade. Os dias foram igualmente belos.

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Ou melhor, a conversa entre um casal de intimidade tão antiga que as suas almas parece que se conhecem desde sempre, e que só podia ter lugar numa cidade banhada pela parte espanhola do Tejo, com um palácio real reconstruído. Ou talvez Os Belos Dias de Aranjuez se passe num outro lugar, sem tempo nem espaço concretos — o da paixão que docemente se transforma em amor e depois em amizade. Os dias foram igualmente belos.

Tiago Guedes, o realizador de Entre os Dedos (2008) e Coisa Ruim (2006), não encenava uma peça de teatro desde 2010, quando estreou Blackbird, de David Harrower, no Teatro Dona Maria II, em Lisboa. João Pedro Vaz levava já quatro anos sem pisar um palco, pelo menos enquanto actor, dedicado que estava ao projecto das Comédias do Minho, em Paredes de Coura, Cerveira, Valença, Monção e Melgaço. Mas Peter Handke, autor do argumento de As Asas do Desejo (1987) e de peças como Insulto ao Público (1966) e A hora em que não sabíamos nada uns dos outros (1992), vinha ao Lisbon & Estoril Film Festival, onde seria membro do júri, e escrevera uma peça nova, ou melhor, Um diálogo de Verão, entre dois antigos amantes, como é subintitulado Os Belos Dias de Aranjuez.

Quando Paulo Branco desafiou o casal Tiago Guedes e Isabel Abreu a estrear a peça no Festival, os dois pensaram logo em João Pedro Vaz para fazer a personagem masculina. Tiago, aliás, só aceitou o repto do produtor depois de João Pedro Vaz ter alinhado. O actor nem hesitou: era hora. Tinha vontade de trabalhar com estas pessoas, com quem se identifica, mais do que qualquer outra coisa, e disse que sim ainda antes de ler o texto. Depois, compreendeu, julga, porque se lembraram dele: tem feito muitas personagens em que a reflexão está desfasada da ação física, tipos que “elaboram muito, verbalmente” — uma “especialização por falta de recursos”, como diz. De resto, é rara a oportunidade de fazer uma peça do autor austríaco.

Handke é um dos dramaturgos mais importantes dos séc. XX e XXI, pela inovação, profundidade e relevância das suas obras no teatro contemporâneo (e até na performance). Os Belos Dias poderá originar um dos próximos filmes de Wim Wenders. Outra das suas peças recentes, Immer Noch Sturm (Ainda e Sempre Tempestade), foi uma das peças do ano em 2011.

Isabel, actriz de, entre outras peças, Três Dedos Abaixo do Joelho (2012), também “aceitou às cegas”, mesmo sem ter lido o texto. Difícil foi descodificar os significados ocultos da peça, escondidos nas alusões a poemas, filmes, lugares. “Tudo era misterioso, mesmo a decorar o texto.” A princípio, “não compreendia o que o autor estava a querer dizer… porque estava ele a falar sobre isto aqui, perguntava-me. Mas à medida que avancei fui-me apaixonando cada vez mais pela peça.”

A tranquilidade dos primeiros tempos de estudo e ensaio da peça, em que trabalhavam quase sem horários, o tempo todo, de forma muito pessoal, contrastaram com a urgência das semanas antes da estreia, no CCB. Os atores tiveram um dia para se habituar ao espaço, conhecer a acústica da sala e preparar a voz para chegar ao último espectador da sala. Foi “sem rede”, diz Isabel Abreu. Porém, a lembrança daqueles primeiros ensaios, realmente “debaixo de árvores, com os sons do verão” em fundo, que instalaram o ambiente da peça, e criaram o tom pessoal do espectáculo, nunca os largou.

A intimidade da sala estúdio do São Luiz vai devolver ao espectáculo esse estado de espirito inicial, espera Tiago Guedes. “Esta sala está mais perto de nós, a conversa que eles têm precisa dessa paz”, diz o encenador. É também por ter lido a peça como uma conversa serena que teve “dificuldade em criar impulsos para os actores se mexerem. Está tudo no texto.” A peça foi montada com planos aproximado. “Numa sala menor, o foco é diferente, estamos mais perto dos atores, das suas expressões. Para quem ficar sentado na primeira fila será como se estivesse à mesa com as personagens.”

Handke não viu a estreia, justificando-se com o excesso de foco que estaria sobre ele, e não sobre a obra. Mas a esposa, a quem a peça é dedicada, viu e ficou encantada — mais do que com a montagem original de Luc Bondy, e precisamente pela encenação em tom de conversa. E Isabel Abreu queria ver o autor. Um dia depois da apresentação única, a atriz meteu-se no táxi em direção ao aeroporto, para se despedir de Sophie e saudar Peter Handke, que acabara por não assistir à peça. Tanto tempo a tentar descodificar o texto, conhecer os seus mistérios, identificar as referências ocultas, entrar na cabeça do autor, e agora não lhe poder ver o rosto? À última hora, correu para lá. A última peça do puzzle seria encontrada já depois dessa despedida. Uma referência obscura a um tal Fernando e a uma Soledad, no fim do texto. A resposta veio por email: trata-se de um poeta austríaco que Handke invocou, na boca das personagens, sem nenhuma razão aparente. Fernando é também o nome do rei que, no século XVIII, mandou reconstruir o palácio real de Aranjuez, depois de um incêndio.

O trabalho de ligar as alusões não acaba. Quando falou com o Ípsilon, Tiago Guedes contou que ainda estava a tentar navegar no texto, a tentar encontrar os seus significados. “Se calhar vamos ter que repensar o final”, dizia Isabel Abreu, porque tinham encontrado novas pistas. O texto “vai um pouco contra a corrente, em termos de dramaturgia, contra o ar dos tempos”, afirma João Pedro Vaz. “Aranjuez é um lugar de fantasia, onde as personagens tentam evocar um tempo que já passou.” Essa sensação de fragilidade, esse estado de abandono, é a sua graça.

Depois da estreia em clima de festa no Lisbon & Estoril Film Festival, Os Belos Dias de Aranjuez, de Peter Handke, chega à cena de forma mais íntima no São Luiz. A apresentação única, no CCB, tornou-se um aperitivo para uma curta temporada na sala estúdio Mário Viegas, de 19 a 28 de Fevereiro.