O espião que veio da alfaiataria

Uma versão dos filmes de espionagem nostálgica e satírica, genial e idiota.

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Fica comprovado em dois diálogos-chave de Kingsman – Serviços Secretos. No primeiro, repetido em duas ocasiões, Colin Firth, o herói suave e cavalheiresco, e Samuel L. Jackson, o vilão maquiavélico e megalomaníaco, discutem a sua paixão pelos velhos filmes de James Bond. “Que pena que tenhamos entretanto crescido”, diz Jackson à laia de despedida, “e que este não seja um desses filmes.” No segundo, Michael Caine, chefe de uma agência de espionagem super-secreta, pergunta a Taron Egerton, que chegou à prova final, se o nome do seu cão, J.B., vem de “James Bond”. “Não, vem de Jack Bauer.”

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Fica comprovado em dois diálogos-chave de Kingsman – Serviços Secretos. No primeiro, repetido em duas ocasiões, Colin Firth, o herói suave e cavalheiresco, e Samuel L. Jackson, o vilão maquiavélico e megalomaníaco, discutem a sua paixão pelos velhos filmes de James Bond. “Que pena que tenhamos entretanto crescido”, diz Jackson à laia de despedida, “e que este não seja um desses filmes.” No segundo, Michael Caine, chefe de uma agência de espionagem super-secreta, pergunta a Taron Egerton, que chegou à prova final, se o nome do seu cão, J.B., vem de “James Bond”. “Não, vem de Jack Bauer.”

Portanto, Kingsman é esquizofrénico. Quer ser um filme de espionagem à antiga inglesa: a sua agência secreta tem como fachada uma alfaiataria de luxo londrina e os seus agentes usam como nomes de código os nomes dos cavaleiros da Távola Redonda, o herói do nosso filme é Colin Firth, cujos óculos remetem para Harry Palmer, o agente secreto criado por Len Deighton a que Michael Caine deu corpo em três filmes – e Caine aparece aqui como o seu chefe. Mas tem consciência que os tempos são outros, e não é possível recuperar a “inocência perdida”. Isso introduz a outra temática central a Kingsman, também ela típica do cinema inglês – o conflito surdo das classes sociais, aristocratas contra peões, com Taron Egerton no papel de um candidato a agente proposto por Firth que, antes de tudo, tem de ultrapassar o facto de não ter sangue azul numa agência onde vir de uma família brasonada parece ser obrigatório.

O resultado é não só esquizofrénico como suficiente para deixar o espectador à toa: simultaneamente sincero e paródico, simplista e meta-ficcional, nostálgico e futurista, Kingsman é o candidato a blockbuster mais desarmante que vimos recentemente. À imagem do que já fizera no igualmente controverso Kick-Ass – O Novo Super-Herói (2009), Vaughn pisa o risco da violência gráfica, sobretudo numa cena fulcral que torna visível não apenas o plano megalomaníaco do seu vilão como transpõe os limites que se julgariam aceitáveis num filme de entretenimento. E, para complicar as coisas, mais à frente entra numa de sátira negríssima que evoca talvez em excesso o Dr. Estranhoamor de Kubrick. É tudo demasiado reflectido para ser descartável, demasiado referencial para ser casual – e faz com que Kingsman seja um entretenimento hollywoodiano que mantém intacta a sua dimensão profundamente britânica, mais próxima da ficção-científica mal-disposta e radical de uma revista como a 2000AD do que do conforto previsível de um super-herói que salva o mundo. Se isso faz dele um grande filme são outras conversas (ainda não conseguimos decidir se Kingsman é genial ou idiota, porque é demasiadas vezes as duas coisas ao mesmo tempo), mas que não se venha aqui à espera de mais do mesmo.