“Estou muito contente com a companhia, mas queria ter feito mais”

A Companhia Nacional de Bailado conta apresentar nova temporada em Maio. Luísa Taveira, a directora artística, continua a apostar num reportório singular e ainda não desistiu da internacionalização.

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Luísa Taveira fotografada num dos estúdios da Rua Vítor Cordon Pedro Cunha

Barbora Hruskova nunca fez outra coisa se não dançar e isso deixou-lhe marcas num corpo que à partida, diziam-lhe, não tinha sido feito para a clássica. Luísa Taveira sabe bem do que ela fala. Também foi bailarina e muito do que ouve na voz daquela mulher que em A Perna Esquerda de Tchaikovski partilhou até domingo o palco com uma barra e o pianista e compositor Mário Laginha é-lhe absolutamente familiar: as expectativas, as dificuldades, as dores, as lesões, os medos, as memórias de um bailado particularmente difícil, mas feliz.

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Barbora Hruskova nunca fez outra coisa se não dançar e isso deixou-lhe marcas num corpo que à partida, diziam-lhe, não tinha sido feito para a clássica. Luísa Taveira sabe bem do que ela fala. Também foi bailarina e muito do que ouve na voz daquela mulher que em A Perna Esquerda de Tchaikovski partilhou até domingo o palco com uma barra e o pianista e compositor Mário Laginha é-lhe absolutamente familiar: as expectativas, as dificuldades, as dores, as lesões, os medos, as memórias de um bailado particularmente difícil, mas feliz.

“Nesta peça a Barbora é ela mesma, mas é também todas as bailarinas clássicas”, diz Luísa Taveira, consciente do exagero. Está sentada no seu gabinete da Rua Vítor Cordon, perto da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e longe do teatro a que a companhia chama casa, o Camões. É no Chiado que os bailarinos têm os seus dois estúdios principais e, por isso, é lá que passa boa parte do tempo quando não há digressões.

O planeamento da vida da companhia é feito quase todo nesta sede no centro da cidade, que parece não mudar desde os anos 1980. Taveira admite que precisa de obras, tal como o Camões, teatro que foi construído nos tempos da Expo-98, mas não foi especificamente pensado para a dança, o que deixa os seus “bastidores” desadequados às necessidades do dia-a-dia de uma companhia que tem quase 70 bailarinos, embora metade não dance.

“Corremos de um lado para o outro, mas estamos em casa nos dois. Bom, o Camões é ‘a’ casa, mas aqui estão os dois estúdios onde muita coisa nasce e cresce”, diz ao PÚBLICO, com o programa da actual temporada nas mãos, a reservar ainda o paradigma do bailado romântico numa versão do coreógrafo Georges García – Giselle (29 de Abril a 10 de Maio), uma reposição que teve a sua estreia no ano passado, precisamente a peça em que Hruskova se despediu dos palcos; uma homenagem ao Ballet Gulbenkian (12 a 29 de Março), um espectáculo de pequeno formato que junta dois bailarinos da CNB a dois convidados (Tábua Rasa, 21 a 23 de Maio); e ainda uma estreia mundial de um bailado de sempre, O Pássaro de Fogo (18 a 28 de Junho).

Taveira gosta de temporadas assim, que ponham a formação que dirige a trabalhar em velocidades distintas, em “vários andamentos”. 

“Repor o Giselle é importante, porque significa que os projectos continuam vivos. E este é um bailado que faz parte da história da dança e da própria companhia – temos obrigação de o mostrar. Com O Pássaro de Fogo passa-se a mesma coisa. É um daqueles incontornáveis do reportório que já não dançamos há muito tempo, com uma música extraordinária [Igor Stravinski]”, explica, acrescentando que este último é uma das grandes apostas da programação. 

Uma aposta que vem com a assinatura coreográfica de um bailarino da CNB em quem a directora artística tem vindo a confiar projectos de fundo, num gesto que muitos consideraram arrojado. Fernando Duarte já trabalhou clássicos de respeito em anos anteriores – O Lago dos Cisnes e O Quebra-Nozes –, mas este bailado de Fokine, com todo o seu universo mágico que Carlos Pimenta (encenação e dramaturgia) também se encarregará de explorar, será certamente um desafio que se estenderá aos bailarinos e à orquestra.

Foi a pensar nesta última, aliás, que Luísa Taveira foi buscar a obra de 1910: “Pensei num programa que a Sinfónica [Orquestra Sinfónica Portuguesa, formação residente do Teatro Nacional de São Carlos] gostasse mesmo de fazer e lembrei-me do Pássaro. Vai exigir muito de nós e sobretudo do Fernando Duarte, porque é ele que vai ter de reconstruir padrões coreográficos numa área em que já se fez tanto, tanto que é difícil inovar. Mas o Fernando tem um imenso talento como coreógrafo e ensaiador e, por isso, eu confio.”
 
Projecto europeu

Luísa Taveira está habituada a confiar – na equipa, no mecenato da EDP, no crescimento gradual e sustentável das receitas de bilheteira do Camões (285 mil euros no ano passado), nos pequenos projectos que, entre grandes produções, lhe permitem manter abertas as portas do teatro.

Também é na base da “confiança” que está já a projectar a próxima temporada – parte do princípio que terá da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), através do Opart, o organismo que gere a CNB e o São Carlos, a mesma verba que teve no ano anterior para programação (300 mil euros). “Quando começo a trabalhar na programação, faço-o de forma muito solitária e contando com o orçamento do ano anterior, a que se juntam os milagrosos 500 mil euros da EDP. E trabalhar apenas de ano a ano espartilha-nos muito, prende-nos.”

Para cumprir um dos primeiros objectivos que impôs a si mesma quando chegou à direcção artística – a internacionalização da companhia –, Taveira precisa de poder programar a três ou quatro anos, o que não acontece, porque os ritmos da SEC e do Orçamento do Estado são outros. “Assim não conseguimos garantir a presença dos coreógrafos estrangeiros com quem gostaríamos de trabalhar e que nos permitiriam, depois, fazer digressões lá fora, com um reportório que misturaria as nossas apostas com peças que são mais reconhecíveis por públicos estrangeiros.”

A belga Anne Teresa de Keersmaeker tem sido uma excepção no que toca a convites internacionais, porque, garante Taveira, “a sua relação com a companhia é fácil, começou ainda nos anos 1990 e o director da Rosas [a formação que a coreógrafa criou] tem casa em Lisboa”. Com os outros é mais difícil, mas isso, reconhece, também a levou a virar-se para pequenos projectos com criadores e companhias que nunca tinham trabalhado com a CNB, a par dos coreógrafos portugueses “que tinham obrigatoriamente de estar”, como Paulo Ribeiro, Olga Roriz ou Clara Andermatt. 

Na próxima temporada, de que Taveira só quer destapar uma pontinha do véu, a Cão Solteiro vai juntar os seus actores à CNB numa peça que explora o ritual do agradecimento em palco. Uma novidade num pacote a anunciar em Maio e que inclui uma reposição de peso – Pedro e Inês (2003), de Roriz, certamente uma das obras mais aplaudidas nos últimos 15 anos da companhia. 

“Estou muito contente com o trabalho que fiz até aqui com a companhia, mas queria ter feito mais”, diz, apesar de a formação “ter evoluído bem”, “com grande intensidade”, a fazer 90 espectáculos na temporada de 2014/2015. “Com outras condições – e não falo só de dinheiro – podíamos ter feito mais.”

Luísa Taveira refere-se ao estatuto do bailarino, um projecto que começou a ser discutido na Assembleia da República há 20 anos, mas que continua por aprovar e que, indirectamente, obriga a companhia a contar com um elenco de 70 bailarinos, embora metade não dance de forma regular; e à sua inclusão no Opart, num modelo que não se cansa de contestar publicamente.

“Continuamos a reconverter as carreiras dos nossos bailarinos que já não dançam, dando-lhes trabalho no guarda-roupa, no serviço educativos, na comunicação, nos estúdios… Mas isto não pode continuar indefinidamente”, diz. Jorge Barreto Xavier, o secretário de Estado da Cultura, deu-lhe garantias de que o problema teria, muito em breve, uma solução, mas para já tudo se mantém na mesma. “Sei que a criação de um estatuto para os bailarinos não tem uma solução fácil nem linear, porque exige regimes de excepção e a solução envolve vários ministérios, mas tem de ser feita. Há muitos modelos diferentes por toda a Europa, e nós temos de chegar a um – mas para isso é preciso vontade política.”

Além do estatuto, Taveira insiste na relação “desadequada” com o Opart, que “torna tudo muitíssimo burocrático”. A chegada recente de dois novos administradores a este organismo, que tem, na sua opinião, carecido de estabilidade – é a oitava composição do conselho de administração que a directora artística conhece desde que chegou há menos de cinco anos –, vem acrescentar mais um episódio a um enredo que já provou, garante, que “o modelo de ligação da ópera ao bailado que o Opart defende está ultrapassado” e tem servido, sobretudo, para “subalternizar” a dança.

Se é verdade que o São Carlos é o único teatro de ópera do país, também é verdade que a CNB é a única companhia de reportório, depois de extinto o Ballet Gulbenkian, que este ano faria meio século, lembra Taveira. “Temos aqui uma máquina complexa mas com muitas possibilidades. Temos de a deixar andar, fazer coisas.”

Aos 57 anos, e com o seu mandato à frente da companhia a terminar no próximo ano, a directora artística ainda não desistiu da internacionalização e gostaria de ver candidato a fundos europeus um projecto de intercâmbio – o European Dance Exchange – que tem vindo a trabalhar com vários teatros e companhias na Bélgica, Itália, França ou Polónia. Para isso conta com a experiência de Sandra Castro Simões, a nova administradora do Opart, responsável pela área financeira.

“Os nossos bailarinos têm qualidade, o nosso reportório tem qualidade. É preciso que outros o vejam. Temos trabalhado com os coreógrafos, os compositores, os músicos, os poetas, os dramaturgos… A companhia tem sabido responder mesmo em tempos de crise, com cortes orçamentais muito sérios.” A companhia, como o corpo de Barbora Hruskova, é um corpo que merece dançar – mesmo quando é difícil.