Os botins de Camilo (versus as botas de Sócrates)

Cada um aplica de forma difusa os métodos que considera mais “ajustados”, com base em leis já revogadas.

Mau grado o ranço que exibem, as prisões portuguesas mostram melhoria no tratamento dos reclusos, mormente da saúde penitenciária que desfrutam, pelo ar fresco que tem sido insuflado pelas saídas prolongadas dos reclusos concedidas pelo sistema, os chamados fins-de-semana fora da cadeia junto da família, bem como da medida de aplicação do regime de pulseira eletrónica, que permitem um cumprimento da pena de prisão humanizante, ora no domicílio do prevaricador, ou até da aplicação quase geral da concessão da liberdade condicional, numa dada fase da pena de prisão.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Mau grado o ranço que exibem, as prisões portuguesas mostram melhoria no tratamento dos reclusos, mormente da saúde penitenciária que desfrutam, pelo ar fresco que tem sido insuflado pelas saídas prolongadas dos reclusos concedidas pelo sistema, os chamados fins-de-semana fora da cadeia junto da família, bem como da medida de aplicação do regime de pulseira eletrónica, que permitem um cumprimento da pena de prisão humanizante, ora no domicílio do prevaricador, ou até da aplicação quase geral da concessão da liberdade condicional, numa dada fase da pena de prisão.

O episódio atual das botas lembra-nos o passeio que Camilo Castelo Branco dava pela baixa do Porto quando estava preso, preventivamente, na Cadeia da Relação do Porto, na década de sessenta do século XIX.

Por consentimento do diretor da cadeia e a conselho médico, Camilo passeava, frequentes vezes, pelas ruas da baixa do Porto. Um seu familiar descreveu, com inusitado escândalo, que o tinha visto a descer a Rua de Santo António, com uns botins de senhora debaixo do braço. E que, como que justificando-se, explicou. São para a Ana Plácido que passa muito frio na cela. Estavam os dois presos, cada um na sua ala e cela, nessa velha prisão que foi visitada, por essa ocasião, pelo Rei D. Pedro V.

Muito embora o tratamento penitenciário venha preconizando um tratamento igual e nivelado para todos os presos, certas diferenças são muito discutíveis de aplicar na prática, porque se esbatem e diluem na desconformidade prisional, na condição social e cultural do preso, mas sobretudo quando um sujeito está, intramuros, privado da sua liberdade. Neste caso a condição de não condenado tira campo de manobra a um tratamento criterioso do sistema, que se pretende igualitário e de semelhança entre todos. As diferenças sociais são difíceis de se esbater e torna-se complicado negar meios de defesa que já foram propiciados aos outros reclusos que tiveram o seu momento de detidos e estão, entretanto, no cumprimento da sua pena privativa da liberdade.

Neste controverso quadro que se nos deparou, buscámos, como cidadãos interventivos, informar-nos melhor sobre o assunto e visitar a página da internet da Direção geral dos Serviços Prisionais para apreciar a lei penitenciária em vigor e os seus regulamentos, que julgavam existirem sobre as diversas cadeias.

Mas nada. Deparou-se-nos então com uma escassa e desajustada informação sobre lei penitenciária em vigor. Para além de uma carunchosa página, que não remetia para qualquer regulamento de uma qualquer cadeia, que fosse uma mera extensão da lei prisional adaptada a casos específicos, como prisão regional, cadeia central, regime de alta segurança. Não, e como nada se vislumbrava, pensámos que o poder discricionário ou mesmo o livre arbítrio podiam imperar entre as geladas e caladas paredes de um moderno estabelecimento prisional.

As leis que estão apresentadas nessa estática e cinzenta página eletrónica não informam o cidadão, nem os familiares, de questões elementares da lei prisional e muito menos o detido nem o seu advogado. Quem porventura a quiser consultar apenas consegue ver alguns normativos, muitos deles explicitamente revogados, portanto desajustados e sem eficácia legal, e um outro datado de 1933 do governo de Oliveira Salazar, em vigor mas a lembrar mais o tratamento a pão e água que na altura existia, semelhante ao chicote que Churchill mandava usar, em 1910, quando foi ministro das prisões em Inglaterra.

Perdura assim desta maneira e sem luz nesta página a desinformação cabal e total em desrespeito do preceito constitucional do direito à informação e do dever de informar e que espelha a generalizada confusão discricionária que deve ir pelas prisões, com cada diretor a aplicar de forma difusa os métodos que considera mais “ajustados”, com base em leis que estão já revogadas.

Licenciado e Mestre em História Contemporânea