Aviso aos novos: fiem-se na Virgem e carreguem no “like”
Quando eu era muito puto não havia telemóveis, nem computadores na casa da gente, nem fotocópias a cores, nem reciclagem, nem problemas de fumar ao pé dos gaiatos
Quando eu era muito puto contava pelos dedos para ver que idade ia ter no ano 2000, que idade ia ter quando fosse crescido e vivesse no futuro.
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Quando eu era muito puto contava pelos dedos para ver que idade ia ter no ano 2000, que idade ia ter quando fosse crescido e vivesse no futuro.
Quando eu era muito puto houve um dia que chegou a televisão lá a casa, um cubo folheado a madeira que dava dois canais a preto-e-branco e onde víamos o “Zé Gato”, o “Dartacão”, o “Polvo” e a miúda que dava porrada neles todos do “Duarte & Companhia”. Quando eu era muito puto tínhamos todos “kispos” parecidos e quando chovia íamos todos para a escola com as mesmas galochas de borracha encarnada. A rádio era cheia de António Sala e a televisão de Júlio Isidro, a Eurovisão era um caso sério e toda o mundo via a mesma telenovela.
Quando eu era muito puto não havia telemóveis, nem computadores na casa da gente, nem fotocópias a cores, nem reciclagem, nem problemas de fumar ao pé dos gaiatos, a farda dos móinas era cinzenta, havia uma cintura de barracas a cercar Lisboa, o vinil não era “hip” nem “cool”, a canalha brincava mais na rua, as mães que barravam os miúdos com protector solar na praia eram exóticas, o Marco Paulo era o Tony Carreira de agora, o Futre o Cristiano Ronaldo, o Herman ainda tinha garras e apetite e o Portas os dentes tortos e amarelados da bica.
Quando eu era muito puto escrevíamos cartas com envelope e selo e tudo, a fome era na Etiópia, a guerra a do Irão-Iraque e o terror o da guerra nuclear entre o Kremlin e o Pentágono. Ainda não sabíamos o que era a SIDA, não havia pizza ao domicílio, nem sushi, nem mojitos e caipiroskas, nem cintos nos bancos de trás dos carros. O Bairro Alto era cheio de punks dos antigos, o Frágil inacessível a maltinha como eu, o Gingão era mesmo a puta da confusão e com o Ary falecido, o Variações sobrava como único e solitário homossexual cá no torrão.
Quando eu era muito puto a política nacional, a santa madre igreja, o FMI, a Palestina e o Garcia Pereira já eram tal e qual o que temos hoje mas tínhamos o Zé Duarte na Comercial e ainda não tinham inventado as “playlists”; o Michael Jackson e o Carlos Cruz eram respeitáveis e a Madonna vestia as adolescentes todas. Os GNR enchiam Alvalade e o fado era reaccionário, todos os carros da Judiciária eram Fiats Mirafioris, a malta não queria fazer a PGA, só o amigo mimado é que tinha um Spectrum, não havia capacete para andar de skate, apoio psicológico para o “bullying” ou poliamorosos. Espancar a mulher ainda era mais legal e aceitável do que é hoje, ainda haviam autocarros de dois andares que desciam a Estrada da Luz, o metro acabava em Sete Rios, os filmes às vezes demoravam seis meses a cá chegar e ia-se a Badajoz para os desmanchos.
Mas no meio de toda a mudança dos últimos vinte anos há coisas que perduram e se reproduzem como que por geração espontânea: e eu dou por mim a reviver o puto imberbe que era, convencido que os pais haveriam de resolver os dramas do Telejornal e as tragédias que via na rua antes que se tornassem problemas meus, nas caras absortas pelo Facebook dos putos de hoje...
Sim, sim, diz-vos esta velha carcaça, deixem-se andar que a minha geração não tem nada mais com que se ralar do que com o vosso futuro. Nós havemos de vos resolver a dependência dos combustíveis fósseis, o aquecimento global, a tendência para a privatização da água, a planeada falência do estado social, a modificação genética da comida, a fome em África e o crónico imbróglio do Médio Oriente, a gripe comum e as carraças dos cães, estejam descansadinhos, sabem que podem confiar em nós, fiem-se na Virgem e carreguem no “like”.