A arte não é para distrair
Haverá quem defenda um mundo sem cultura, ou cultura feita de borla, porque o dinheiro e o pão são as coisas que mais importam neste mundo?
Recentemente, dezenas de professores do ensino artístico manifestaram-se por não receberem os seus salários há meses. Depressa se ergueram vozes dizendo que aqueles não eram empregos a sério, que havia coisas muito mais importantes para resolver no país do que ensinar canções às criancinhas – cheguei a ler algures o tipicamente popularucho “vai trabalhar!”. Coincidência ou não, Mário Amorim Lopes, cronista do Observador, teve uma infeliz tirada, na qual parecia defender que o Estado devia deixar de apoiar esta ou aquela obra cultural para resolver assuntos de… maior urgência.
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Recentemente, dezenas de professores do ensino artístico manifestaram-se por não receberem os seus salários há meses. Depressa se ergueram vozes dizendo que aqueles não eram empregos a sério, que havia coisas muito mais importantes para resolver no país do que ensinar canções às criancinhas – cheguei a ler algures o tipicamente popularucho “vai trabalhar!”. Coincidência ou não, Mário Amorim Lopes, cronista do Observador, teve uma infeliz tirada, na qual parecia defender que o Estado devia deixar de apoiar esta ou aquela obra cultural para resolver assuntos de… maior urgência.
Parece-me que anda por aí muito telhado de vidro. Não serão as pessoas que dizem e escrevem este tipo de coisas as mesmas que tanto se sensibilizam com o Charlie Hebdo, que se comovem pela morte de Robin Williams ou são os maiores fãs do mundo de séries como "Game of Thrones", "House of Cards" ou "Breaking Bad"? Será este um novo fascismo cultural, de gente que advoga um “podes ler livros e ver peças de teatro, mas só os que forem aprovados por mim/Estado/deus”? Ou, pior ainda, haverá quem defenda um mundo sem cultura, ou cultura feita de borla, porque o dinheiro e o pão são as coisas que mais importam neste mundo?
Pois bem, permitam que este agnóstico cite uma das melhores colectâneas de textos literários que já se produziu neste planeta — a Bíblia. Ficcional ou não, a personagem de Jesus diz, algures no Evangelho Segundo São Mateus, que “nem só de pão vive o homem”. Em “Art as Therapy”, Alain de Botton coloca diferentes questões sobre a importância da cultura no mundo contemporâneo. A mais útil de todas é esta: qual é o objectivo da arte? Segundo o filósofo, a arte tem a função de atenuar as fragilidades de sete funções psicológicas humanas. É um mecanismo que nos impede de esquecer as coisas mais preciosas, que nos foram apresentadas da melhor forma possível, mantendo-as acessíveis ao público; a arte serve a manutenção da esperança porque parece saber que desesperamos com relativa facilidade; relembra-nos do lugar legítimo da tristeza numa boa vida, de maneira a que não entremos em pânico com as dificuldades com que nos defrontamos; é um agente que nos confere balanço nos processos de tomada de decisão; serve como guia para conhecermos aquilo que é central sobre a nossa própria existência; em simultâneo, a arte é uma acumulação imensa das experiências dos outros, mostrando-se como ferramenta utilíssima para nos colocarmos em perspectiva perante o mundo; e, finalmente, a arte tende a sensibilizar-nos na nossa humanidade, eliminando as nossas tendências para descartar tudo o que nos é estranho no dia-a-dia.
Em "A Mecânica da Ficção", James Wood revela um dogma: “A literatura faz de nós melhores observadores da vida e permite-nos exercitar o dom na própria vida”. Só para ilustrar a verdade, verdadinha desta afirmação, eis uma história: no início de 2006, Luis Sanchez, presidente da câmara municipal de Ciudad Nezahualcoyotl (México), resolveu aplicar medidas drásticas para diminuir os níveis de corrupção da polícia daquela vila. E — pasmem-se! — a solução não passou por dinheiro ou cárceres ou orçamentações tolas. Nada disso. Sanchez elaborou uma lista e distribuiu pelos agentes da autoridade obras de autores como Miguel de Cervantes, Antoine de Saint-Éxupery, Arthur Conan Doyle, Gabriel García Marquez, por aí fora. Leiam, está tudo contado aqui pelo LA Times. Também podíamos falar da importância que o Homem de Vitrúvio de Da Vinci teve, tanto para a Ciência como para a Arte, ou da forma como Jimi Hendrix pôs muita gente a pensar sobre a guerra do Vietname com uma interpretação livre do hino norte-americano, “Star Spangled Banner”, durante o festival Woodstock, em 1969, mas estaríamos aqui até ao ano 2235 a dar bons exemplos de como a arte valorizou mais o mundo do que qualquer outra coisa.
Arte não é lazer. Entretenimento é lazer (e mesmo assim dá emprego a muita gente). E o melhor entretenimento só nasce graças às artes. E as artes são mães de outros pensamentos muito mais relevantes que o ócio. Portugal continua a ser um daqueles países onde ainda se tem a mentalidade medieval de que os artistas são aqueles bichos perigosíssimos que podiam muito bem arder na lareira lá de casa. (Por esta altura, já os que não compreendem o valor da arte estarão a ler isto, dizendo aos seus botões de punho: “olha-me este artista…” — e até nesta expressão podemos ver espelhado o preconceito perante o alto valor da arte.)
Normalmente, a ignorância causa medo do desconhecido. Mas lá por eles serem mais e parecerem ter mais certezas que nós, não podemos nunca ter medo dos ignorantes. O maior perigo de todos é a falta de conhecimento.