O charmoso e arrepiante mentor dos ataques de Paris
Os atentados de Janeiro na capital francesa podem ter revelado uma nova parceria estratégica entre o Estado Islâmico e a Al-Qaeda para operações transnacionais. Há um homem no centro do enredo, Djamel Beghal.
Djamel Beghal, de quem se diz ser um dos maiores recrutadores da Al-Qaeda na Europa, ensinou aos futuros atiradores os princípios mais sensíveis da prática do Islão. Persuadiu-os a apoiar os órfãos palestinianos que diz precisarem de crescer para se tornarem "combatentes de amanhã".
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Djamel Beghal, de quem se diz ser um dos maiores recrutadores da Al-Qaeda na Europa, ensinou aos futuros atiradores os princípios mais sensíveis da prática do Islão. Persuadiu-os a apoiar os órfãos palestinianos que diz precisarem de crescer para se tornarem "combatentes de amanhã".
Agora, Beghal está a ser vigiado de perto pelas autoridades que procuram perceber o seu papel no massacre do mês passado que ceifou 17 vidas em Paris e que instalou o medo no coração da Europa. O que os investigadores descobriram é particularmente sensível, dizem fontes do contraterrorismo, porque emergem sinais de como elementos da Al-Qaeda e do Estado Islâmico, outrora rivais, podem ter colaborado neste ataque.
O que seria um desenvolvimento preocupante na guerra contra o terrorismo, uma vez que até agora os dois grupos têm tido bases de apoio em regiões diferentes, com objectivos distintos. O Estado Islâmico tem estado focado sobretudo na sua própria luta pelo território da Síria e do Iraque. A Al-Qaeda entrou em conflito com ele.
Beghal tem estado detido numa prisão francesa devido a acusações não especificadas de terrorismo desde 2010 — muito antes do desenvolvimento do Estado Islâmico, que emergiu como um grupo de combate no caos da guerra na Síria e que só chegou ao poder nos territórios que ocupa em 2013.
Assim, os laços entre Beghal, os atacantes de Paris e o Estado Islâmico podem ser de importância crucial para se perceber a evolução da ameaça que os países do Ocidente enfrentam, dizem fontes dos serviços secretos .
O homem que matou quatro pessoas num supermercado judeu de Paris, Amedy Coulibaly, jurou fidelidade ao Estado Islâmico numa entrevista que deu horas antes de morrer. Apesar de a filiação final de Coulibaly ter sido o Estado Islâmico, foi através da Al-Qaeda de Beghal que se radicalizou, dizem fontes da investigação.
"Ele foi uma pessoa que me tocou de uma forma muito humana", disse Coulibaly à polícia em 2010, segundo as transcrições dos interrogatórios.
Através do seu advogado, Beghal negou qualquer relação com os atacantes de Paris. "Ele é um homem muito, muito perigoso", disse Jean-Louis Bruguière, ex-investigador do departamento de contraterrorismo que dirigiu o processo que levou a Beghal à prisão, em 2001. Disse que não há dúvidas em como foi Beghal quem radicalizou os dois homens que conheceu na prisão, mas acrescentou que é difícil para os serviços secretos manterem-se a par dos padrões de alianças que conduziram aos ataques. "[Esses padrões] são um fenómeno que muda e evolui à medida que continuamos a nossa luta", disse Bruguière.
A radicalização
Beghal, de 49 anos, nasceu numa pequena cidade da Argélia e chegou à França quando tinha 21 anos, obtendo a cidadania e formando uma família com uma mulher francesa. Vendeu roupa e trabalhou numa fábrica de alimentos. Em 1997, e por pouco tempo, levou a família para a Inglaterra, onde frequentou uma mesquita dirigida pelo pregador radical conhecido como Abu Qatada.
As autoridades acusaram Abu Qatada, cujo verdadeiro nome é Omar Mahmoud Mohammed Othman, de ser uma figura importante da Al-Qaeda e um próximo de Osama bin Laden. Na mesquita britânica, Beghal deu sinais de se ter radicalizado, dizem as autoridades, e partiu para o Afeganistão em 2000. Foi preso no ano seguinte pela sua relação com um plano para atacar a embaixada dos Estados Unidos em Paris e foi condenado a dez anos de prisão. Declara-se inocente e diz que foi torturado durante os interrogatórios.
Em 2005, conheceu Coulibaly e outro dos futuros atacantes de Paris, Cherif Kouachi, na prisão de Fleury-Merogis, no Sul da capital francesa, tristemente conhecida pelas suas más condições.
A polícia perguntou depois a Coulibaly se conhecia algum "veterano da jihad". "Sim, conheço um, Djamel Beghal" respondeu Coulibaly.
Depois de os dois homens terem sido libertados, mantiveram-se em contacto. Coulibaly pedia muitas vezes conselhos a Beghadl, assim como a sua mulher, Hayat Boumeddiene, que está agora na Síria, dizem as autoridades.
As transcrições das chamadas telefónicas interceptadas mostram a relação de amizade entre os três homens, e que Beghal se metia com a habilidade de Kouachi para cozer esparguete ou fazia troça de Coulibaly que dizia ter que ser um "masoquista para querer sair com Cherif [Kouachi] à sexta-feira à noite".
Coulibaly perguntou a Beghal se havia alguma circunstância em que que era aceitável do ponto de vista religioso morrer com dívidas, sugerindo sem o dizer explicitamente que se referia ao martírio. "Deus irá pagar a tua dívida", respondeu Beghal.
Convenceu Coulibaly a doar dinheiro para uma organização de órfãos palestinianos dirigida por "um veterano que lutou no Afeganistão". "Ele fez uma bela jihad e passou por tudo o que isso implica, até a prisão. (...) As crianças palestinianas são os combatentes de amanhã, meu amigo. São eles que enfrentam os judeus", disse-lhe Beghal.
No estreito quarto de hotel no Sul de França onde Beghal vivia em 2010, em regime de prisão domiciliária vigiada, a polícia encontrou um artigo sobre rockets, mapas do Afeganistão e do Paquistão, textos sobre ataques suicidas e uma cassete com canções com títulos como "Eu, terrorista", "Rebenta com eles", "As armas são a única solução" e "Ó tu, mártir".
"São canções", disse Beghal quando a polícia lhe perguntou o que era aquilo.
Em documentos confiscados do seu computador, ele sustenta firmemente que não tem qualquer relação com o terrorismo. Mas protesta, num tom entristecido, pelas prisões em Guantánamo, Abu Ghraib e Bagram, que diz serem indicadores do "extermínio de pessoas por ‘aqueles que são civilizados’". Talbém se indigna com o sofrimento dos palestinianos às mãos dos israelitas e pelo massacre de muçulmanos na Bósnia, durante a Guerra das Balcãs nos anos de 1990.
"Isto é a guerra anti-terrorismo... que só enegreceu a paisagem global", escreveu.
A firme convicção dos seus textos tornam claro o seu poder sobre outros recrutas. "Ele tinha muita influência sobre potenciais terroristas em toda a Europa, especialmente em França", disse Jean-Charles Brisard, um especialista em terrorismo baseado em Paris. "Estas redes dependem muito dos mentores".
Mudança de estratégia
As agências de contraterrorismo continuam a tentar perceber as relações entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico nestes ataques de Paris. Continua por apurar até que ponto as redes terroristas estiveram envolvidas no planeamento dos ataques. Alguns especialistas dizem que a amizade entre Coulibaly e Kouachi foi mais importante para a coordenação dos ataques do que uma força distante.
Mas esta aparente "polinização" entre os dois grupos levantou muitas questões. Fontes dos serviços secretos dizem que um dia antes de Coulibaly ter atacado o supermercado, a mulher dele entrou em território sírio, ajudada pelo Estado Islâmico — ia acompanhada por um homem, Mehdi Belhoucine, que é o irmão mais novo de um homem que faz filmes de propaganda emitidos pelos media ligados à Al-Qaeda. Os investigadores acreditam que fazia parte de uma rede operacional com laços à Al-Qaeda. Coulibaly também conseguiu as armas que usou no ataque através de fornecedores com ligações à Al-Qaeda, dizem as fontes do contraterrorismo.
E os investigadores acreditam que pelo menos um dos irmãos Kouachi, que mataram 12 pessoas na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo, foi treinado no Iémen, a sede da Al-Qaeda na Península Arábica.
"Os ataques de Paris e outras recentes operações na Bélgica levantam a possibilidade de ter havido uma possível mudança na estratégia da Al-Qaeda e do Estado Islâmico no que diz respeito às suas operações mundiais", diz uma fonte europeia das agências que combatem o terrorismo e que só aceitou discutir pormenores sensíveis da investigação sob anonimato. "Pode acontecer que Paris tenha sido o início de uma nova cooperação entre o Estado Islâmico e a Al-Qaeda", diz a fonte.
Os especialista em contraterrorismo ainda estão a tentar entender o que vai fazer a seguir o Estado Islâmico, à medida que alarga as suas aspirações para além das fronteiras que controla na Síria e no Iraque.
"O Estados Islâmico considera [Osama] bin Laden uma figura histórica e um exemplo. Por isso, podemos estar de facto a assistir a uma nova estratégia comum quando se trata de grandes operações", apesar dos confrontos entre os dois grupos no passado, diz Mohammad-Mahmoud Mohamedou, director do Centro para a Política de Segurança de Genebra. "A grande incógnita agora é, fundamentalmente, como é que [o Estado Islâmico] vai agir na sua próxima fase e se irá expandir-se ou actuar de forma mais transnacional". Com Cléophée Demoustier e Anna Polonyi
Exclusivo PÚBLICO/"The Washington Post"