Cinco hipóteses sobre o poder e eficácia das reformas
Por várias razões, Portugal surge agora diminuído numa União aumentada
Nos primeiros catorze anos deste século (2000 a 2013), o produto interno bruto português (PIB) cresceu 0,9%; ficámos 15% mais pobres em relação à União Europeia. Nos catorze anos anteriores (1986-1999), com apenas dois primeiros-ministros, o PIB aumentou 62%. Seria insensato pretender estabelecer uma correlação numérica entre taxa de crescimento do PIB e volatilidade governativa. Mas não será evidente a correlação qualitativa entre crescimento económico e estabilidade de governo? Não será óbvio que governabilidade é condição de possibilidade de desenvolvimento?
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Nos primeiros catorze anos deste século (2000 a 2013), o produto interno bruto português (PIB) cresceu 0,9%; ficámos 15% mais pobres em relação à União Europeia. Nos catorze anos anteriores (1986-1999), com apenas dois primeiros-ministros, o PIB aumentou 62%. Seria insensato pretender estabelecer uma correlação numérica entre taxa de crescimento do PIB e volatilidade governativa. Mas não será evidente a correlação qualitativa entre crescimento económico e estabilidade de governo? Não será óbvio que governabilidade é condição de possibilidade de desenvolvimento?
Aceitando esta hipótese, coloca-se a questão de saber como melhorar a governabilidade no futuro, tendo também em conta as tendências eleitorais, em Portugal e na Europa, que vão no sentido da crescente e aparentemente irreversível pulverização dos partidos que acompanha a erosão das famílias políticas tradicionais. Apenas duas soluções ocorrem: ou uma alteração da lei eleitoral, introduzindo um robusto prémio de maioria para o partido mais votado; ou a adopção de uma cultura parlamentar de negociação e compromisso que facilite a contratualização de governos de coligação estáveis, aceitando com naturalidade a alternância de geometrias variáveis. Cultura essa que a segunda república não conseguiu, até hoje, engendrar.
2. O curto prazo de vida dos governos reforça o curto prazo de validade das políticas públicas. Com raras excepções, devidas a escassez de vontade ou a míngua de ideias, mais que a abundância de prudência, cada novo titular traz consigo um imperativo de reforma e uma cosmologia. A sua reforma não é um segmento a inserir modestamente na recta infinita da história: ela é esse ponto mágico que marca a própria origem do tempo. Na mente do titular, é nítido o eco do big bang, é nítida a luz que irradia do momento fundador da nova política pública, rasgando as trevas do passado para toda a eternidade e inaugurando uma nova era onde nada será como dantes. A legislatura anterior pertencia, no melhor dos casos, ao Piloceno, e o Augusto de turno encontra sempre Horácios aptos em métrica sáfica para amodernar os Carmen saeculare.
A reforma é concebida praticamente ex nihilo, visto que o passado apenas transmite ruído indecifrável e nada mais exibe além de caos. Só o presente é inteligível, só o futuro salvífico. No princípio era a reforma, e a reforma estava com o titular...
Esta visão revolucionária da reforma, negando a necessidade, a utilidade e por vezes até mesmo a possibilidade de um confronto dialéctico com o passado, unida à perecibilidade dos reformistas, acaba por não produzir reforma nem contrarreforma; apenas acumula uma resma de esboços de reforma, urde uma teologia laica do desenho inteligente, fabrica um perpetuum mobile que ilude provisoriamente as leis de transformação da energia social.
Políticas públicas que mudam “as often, and as much, and in as many ways as there are floating fancies or fashions”, nas palavras de Burke, quebram “the whole chain and continuity of the commonwealth” e transformam os homens em qualquer coisa “little better than the flies of a summer”. A dificuldade colectiva em lidar com os nossos antepassados, reflectida na dificuldade do reformista revolucionário em funções em se relacionar com os seus predecessores, aniquila aquela continuidade necessária à eficácia de qualquer reforma e deixa-nos à mercê de moscas efémeras de um verão desolado.
A segunda república nasceu também da necessidade de liquidar a visão mítica e metafísica da pátria que a ditadura embutira na escola e na sociedade, reinserindo os portugueses na corrente tonificante da história. Contudo, a torrente de eventos inicial, densa de carga histórica, aumentou rapidamente de viscosidade produzindo um escoamento turbulento e intensificando a rarefacção da consciência histórica. A segunda república não só tem dificuldade em interpretar historicamente o meio-século que a precedeu como tem dificuldade em se auto-compreender historicamente. Só neste contexto de dilatada a-historicidade a “reformite” da segunda república pode ser concebida. Consequentemente, só recuperando a consciência histórica perdida a quimera do reformismo revolucionário pode ser erradicada.
3. Não é necessário ser um conservador à la Burke para ficar perplexo com a falta de consideração que as políticas públicas manifestam pelo passado, assim como não é necessário ser um fanático da fundamentação da metafísica dos costumes para ficar perplexo com a falta de respeito que elas nutrem pela razão. Quando se observa de perto a forma como as políticas públicas são elaboradas e reformadas, surge a suspeita de estarmos perante casos recorrentes de misologia.
A ausência de coerência, manifestação elementar de racionalidade, é particularmente sentida e particularmente grave na intersecção das esferas política e económica. Aqui, os paradigmas sucedem-se sem serem assimilados: nem o corporativismo da constituição de 1933, nem o socialismo da constituição de 1976, nem a economia de mercado e a concorrência importadas com o Tratado Europeu, em 1986, chegaram a criar raízes profundas. Pelo contrário, subsistem e acumulam-se resíduos de todas as épocas e de todos os modelos que sempre se sobrepõem e raramente se combinam. O ordenamento político-económico português não degenera pela simples razão que nunca atinge a forma mínima que o permita caracterizar e associar morfologicamente a um género. A aquiescência à economia social de mercado, vinda de Bruxelas juntamente com fundos e subsídios, convive, no espaço público e nas páginas do Diário da República, com a observância de práticas da mais pura idolatria intervencionista.
Assistimos, ano após ano, aos mais graves pecados capitais contra os princípios constitutivos e regulativos da economia social de mercado. Mas logo surgem, em nome do interesse nacional, generosas indulgências. Contudo, como notava o Doutor Lutero na sua tese trigésima nona, “Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar simultaneamente perante o povo a liberalidade de indulgências e a verdadeira contrição”.
Articuladas fora de um quadro historiográfico que lhes dê profundidade temporal e fora de um quadro conceptual que lhes dê consistência formal e métricas de avaliação (ex-ante e ex-post), as políticas públicas e as suas reformas estão condenadas à ineficácia.
O nascimento da segunda república foi uma marcha e uma enorme mancha de pathos; hoje, muitos atalhos depois, ela vive uma profunda crise de ethos. Para recuperar sentido e substância, a segunda república precisa de se auto-reformar, encontrando finalmente o caminho em direcção ao logos.
4. A racionalização das políticas públicas depende, em grande medida, da qualidade da informação e da qualificação dos trabalhadores na Administração Pública.
O Estado português recolhe, armazena e processa muita informação; contudo, essa informação é dispersa, inconsistente, desactualizada, incompleta, bem como dificilmente acessível, inclusivamente dentro do próprio Estado.
Políticas públicas que visem promover a eficiência e a equidade através de um consenso baseado na argumentação envolvendo de forma transparente todos os interessados só podem ser construídas a partir de uma sólida base de informação. É a existência desta plataforma que permite, a cada momento, com objectividade, realizar os necessários diagnósticos, avaliar correctamente alternativas de actuação e estudar as suas potenciais consequências. Este tipo de análise é essencial não apenas nas fases de formulação de políticas públicas e nos momentos de decisão política, mas igualmente para comunicar essas políticas e decisões aos interessados e à opinião pública, para avaliar resultados da implementação das mesmas e para as ajustar onde necessário.
Obviamente, além de servir de base à elaboração de políticas públicas, a informação é também um suporte fundamental para melhorar a eficácia e eficiência do funcionamento da própria Administração Pública, tanto na prestação de serviços aos cidadãos e às empresas como na gestão interna dos seus recursos. Permite ainda proceder sistematicamente a avaliações prévias de impacto de nova legislação, evitando ou reduzindo custos de contexto. A disponibilização pública da informação pode ainda ser uma importante fonte adicional de criação de valor para a sociedade e para a economia nacional, por exemplo ao permitir que investigadores a utilizem e tratem para outros fins, desenvolvendo modelos mais sofisticados ou produzindo análises inovadoras que ajudem a melhorar a compreensão e implementação das políticas públicas ou o desempenho da Administração Pública.
Embora tenham sido dados alguns passos importantes e inovadores, a a verdade é que a segunda república está ainda muito longe da sociedade da informação.
5. Como Estado-membro da União Europeia, Portugal não pode conjecturar reformas desalinhadas das regras dos Tratados; por outro lado, os próprios Tratados impõem políticas e procedimentos que obrigam a reformas no ordenamento nacional. Sendo a União Europeia uma realidade fortemente dinâmica, estes condicionamentos devem obviamente ser considerados numa perspectiva aberta.
Por várias razões, comparando com a situação verificada no final do século XX, Portugal surge agora diminuído numa União aumentada. Contribuir eficazmente para a reforma da União Europeia requer hoje uma enorme capacidade política e instrumental dificilmente ao alcance do país; mas requer também, antes de mais, convicção. Como observa o mal-amado chanceler Kohl num Apelo publicado recentemente, “os erros praticados no caminho da unificação europeia que conduziram a graves derrapagens resultaram do facto de o processo de unificação europeia ter sido percorrido, a partir de 1998, com indiferença e sem a necessária linearidade e determinação”.
A entrada de Portugal na União Europeia viabilizou a segunda república e estimulou, inspirou e permitiu muitas das reformas que ela, bem ou mal, levou a cabo. Hoje, é a União Europeia que necessita de concretizar, com determinação e linearidade, uma profunda reforma. Esta necessidade de articular eficaz e atempadamente reformas nos planos nacional e europeu representa um formidável duplo desafio para a segunda república.
PS: Admirador do poder e eficácia da reforma ortográfica, o autor agradece o privilégio de a poder ignorar.
Presidente da Newes, presidente da comissão para a reforma da fiscalidade verde, membro da Plataforma para o Crescimento Sustentável