Olga Roriz, 40 anos a fabricar uma dança sem prisões
Num longo gesto que se estenderá pelo ano de 2015 e revisitará em vários palcos algumas das suas peças mais emblemáticas, Olga Roriz irá celebrar os 20 anos da sua Companhia e os 40 da sua carreira. Ao mesmo tempo, estará a lembrar-nos e a implicar-nos numa das mais marcantes, resistentes e singulares obras da dança portuguesa.
Em quase todas as suas criações, o ímpeto inicial é fácil de identificar, quer surja de uma necessidade simples de trabalhar a relação visceral do corpo com a terra (Terra, 2014), quer parta do visionamento acidental do programa Hollywood Pets e a leve a reflectir de que forma as relações humanas podem também ser um espelho da dinâmica dono/animal domesticado (PETS, 2011), quer tenha por impulso a descoberta da fotografia de uma mulher turca lutando pela sobrevivência dentro de um carro arrastado pela correnteza de umas cheias (Os Olhos de Gulay Cabbar, 2000), quer se inspire livremente no centenário da História do cinema (Propriedade Privada, 1996). Em A Cidade (2012), essa razão primordial anunciou-se-lhe nebulosa, pouco explicada, e só aos poucos se foi desvendando como tendo na crise económica o seu ponto de partida. De repente, a cidade eram vozes que se faziam ouvir, a toda a hora, um sem-fim de gente que, diz Olga Roriz, “do taxista à vizinha todos falavam da mesma coisa, todos sabiam de economia e de finanças, todos tinham um discurso politizado e coisas para dizer uns aos outros”. “Tenho a certeza de que foi por cauda disso que comecei a sentir mais a cidade.”
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Em quase todas as suas criações, o ímpeto inicial é fácil de identificar, quer surja de uma necessidade simples de trabalhar a relação visceral do corpo com a terra (Terra, 2014), quer parta do visionamento acidental do programa Hollywood Pets e a leve a reflectir de que forma as relações humanas podem também ser um espelho da dinâmica dono/animal domesticado (PETS, 2011), quer tenha por impulso a descoberta da fotografia de uma mulher turca lutando pela sobrevivência dentro de um carro arrastado pela correnteza de umas cheias (Os Olhos de Gulay Cabbar, 2000), quer se inspire livremente no centenário da História do cinema (Propriedade Privada, 1996). Em A Cidade (2012), essa razão primordial anunciou-se-lhe nebulosa, pouco explicada, e só aos poucos se foi desvendando como tendo na crise económica o seu ponto de partida. De repente, a cidade eram vozes que se faziam ouvir, a toda a hora, um sem-fim de gente que, diz Olga Roriz, “do taxista à vizinha todos falavam da mesma coisa, todos sabiam de economia e de finanças, todos tinham um discurso politizado e coisas para dizer uns aos outros”. “Tenho a certeza de que foi por cauda disso que comecei a sentir mais a cidade.”
Como que provocada por esse motivo semi-oculto, a crise havia de instalar-se também naquela criação de Olga Roriz. Uma certa declinação de crise, pelo menos. “A Cidade foi estreada como uma peça que nunca foi começada”, ri-se a coreógrafa. A afirmação é dita com a leveza de um exagero. Mas a verdade em que se baseia prende-se com o reconhecimento de que, naquele momento, a companhia emperrou. “As exigências eram muitas e os bailarinos entraram em pânico”, recorda, “porque a primeira coisa que lhes disse foi que não queria clichés. Foi o pânico geral, não se criava nada. Foram dias e dias e dias de vazio infinito. Muita excitação no início do dia porque lhes levava fotografias e outro material e depois…” Depois, Olga simula o som de um motor que vai perdendo fôlego até se engasgar. Até emperrar. “Eram dias consecutivos assim – fomos trabalhando umas coisinhas e às tantas disse-lhes ‘Meninos, acabou’. Pânico outra vez.” Ao pânico da ausência de ideias, sucedia o pânico das escassas ideias desgarradas. Para os bailarinos, o processo de criação de A Cidade mal estava a começar. Para Olga Roriz, estava praticamente finalizado.
“De repente, olho para A Cidade e acho um espectáculo lindo, que não precisa de mais nada”, diz. E esse sentimento é de tal forma veemente que é a remontagem desta coreografia, que inclusivamente deixou marcas em dois dos seus bailarinos-âncora – “a Catarina Câmara perguntou-me se ainda queria continuar a trabalhar com ela porque aquilo tinha sido impossível, o Pedro Cal foi-se embora a seguir”, admite –, a escolhida para iniciar esta sexta-feira um longo programa de celebração dos 20 anos da Companhia Olga Roriz e dos 40 anos da sua carreira na dança. A Cidade formou-se então como um compósito de vários solos que resultou não como uma colagem de momentos avulsos mas como essa sucessão de vozes que se erguem no cenário urbano, potencialmente desligadas, involuntariamente unidas num mesmo discurso, solitárias mas capazes de soar a um coro se dermos um passo atrás e percebermos a coreografia própria de cada indivíduo na sua contribuição para o todo.
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A Cidade representa também, em paralelo, um momento de renovação e sobrevivência. Depois de muitos anos em que a Companhia Olga Roriz podia assegurar estabilidade salarial aos seus bailarinos, esta era, afinal, e mais um sinal da crise, uma peça criada sobre uma nova realidade em que o elenco – muito embora com alterações mínimas – passava a ser contratado em função de cada projecto específico. As finanças tinham deixado de possibilitar outra solução. “Essa é a grande mágoa e a grande mudança na vida da companhia, não tenho dúvida nenhuma”, lamenta Olga Roriz ao colocar em perspectiva as últimas duas décadas. “Perde-se os links, perde-se as pessoas porque têm de ir fazer outras coisas, perde-se uma continuidade e tudo começa a ser mais complexo.”
Só que é essa ligeireza de saltar e seguir caminho em vez de tropeçar nos obstáculos que Olga Roriz traz igualmente para a primeira linha de um ano de apresentações, em Portugal e no estrangeiro, de várias peças marcantes nos 20 anos da sua companhia. Um caso absolutamente singular de regularidade criativa e manutenção de um corpo de bailarinos num cenário de dança contemporânea em Portugal esfrangalhado pelas generalizadas grilhetas orçamentais. Mesmo quando Olga Roriz fala das suas colaborações com a Companhia Nacional de Bailado ou dos seus solos, fá-lo frequentemente para lembrar a falta que sente dos seus bailarinos e para explicar que entende cada afastamento provisório como “um momento de muita força para injectar nos momentos a seguir”. Foi, ironicamente, na sua Sagração da Primavera (2010), o solo que revisitou em 2013, que colocou em perigo todo o programa a que agora assistiremos. Devido ao extremo vigor físico que empresta às suas interpretações enquanto bailarina, repetiu várias vezes a brusquidão de um movimento equiparável à projecção sofrida por uma cabeça durante um acidente de viação. E ficou depois a saber, devido ao acompanhamento médico de uma lesão na carótida entretanto diagnosticada, que correra um perigo extremo. Ligando o facto à dança, a coreógrafa assinala que a Sagração tem por personagem uma mulher que dança até à morte. Poeticamente, mesmo não o sabendo, andou em palco a desafiar esse mesmo fim. E, mais vez, não caiu por terra.
Um cunho dramatúrgico
Numa obra de fôlego lançada em 2007 pela Assírio & Alvim, a então jornalista e crítica de artes performativas Mónica Guerreiro, hoje subdirectora da Direcção Geral das Artes, culminava anos de pesquisa e aturada recolha de depoimentos com uma rigorosa biografia homónima de Olga Roriz. Em vez do tom celebrativo esculpido agora pela criadora para assinalar os dois importantes marcos temporais na sua carreira, a leitura do livro teria então um forte impacto na coreógrafa, forçando-a a ver-se de fora pela primeira vez, mastigando cada página num intenso confronto com a sua própria vida e a sua obra, e percebendo que deixara marcas profundas noutros percursos e no meio artístico português. No prefácio do livro, justamente, Gil Mendo afirma que “Olga Roriz tem tido um papel de destaque em praticamente todos os movimentos importantes das últimas três décadas em Portugal, sem ter ficado aprisionada em nenhum deles, sinal da sua independência e da sua individualidade artística.”
Na opinião de Mónica Guerreiro, assim o escreve em Olga Roriz, há um traço fundamental nessa individualidade: “O carácter distinto da sua linguagem coreográfica sempre revelou uma apetência forte pela construção dramática, pela densidade narrativa das acções e pelo desenvolvimento de um texto (frequentemente não verbal) que resgatava a dança de uma expressividade abstracta ou ilustrativa. Nas suas obras, as relações humanas evocadas e as situações geradas – conflituais, passionais – sempre tiveram um cunho dramatúrgico.” Olga sabe que essa é uma tendência natural, uma atracção que é incapaz de ignorar na totalidade. Em Terra, exemplo máximo de uma decisão de sossegar essa fabricação narrativa que enriquece e dá espessura às suas criações, aquilo que a movia era uma ideia plena de movimento, um chamamento puramente telúrico, uma vontade primeva de trabalhar os corpos em contacto com a matéria orgânica e de uma forma tão vigorosa que a própria respiração tornava o exercício da dança um tremendo esforço físico e uma sequência de uma fisicalidade bela, embora extenuante para os bailarinos.
“Só que depois houve um volte-face, aquilo não me chegava, tinha de ter uma ‘teatrice’ qualquer que resolvesse o porquê de irem para ali”, lembra. Para justificar toda essa entrega dos corpos à terra, Olga Roriz engendrou uma espécie de prelúdio, a encenação de um piquenique, de homens e mulheres que se propõem estar em contacto com a natureza, mas não abdicam da toalha, do cesto, de um pequeno arsenal de objectos que os protege e mantém a salvo de qualquer contaminação as suas mascaradas sofisticação e civilidade. Até que este pudor é progressivamente trocado por um prazer físico, por uma relação sensual com a matéria, por um fim do contrato colectivo que obriga ao controlo emocional, por uma desconstrução de condutas sociais. Essa introdução, não alterando a substância de tudo quanto havia sido trabalhado na restante coreografia, reconfigurava necessariamente a leitura a extrair de Terra.
Essa afinidade dramatúrgica é um traço criativo presente desde cedo na obra de Olga Roriz. E talvez nunca tenha sido tão exacerbada na vida da companhia quanto em Propriedade Privada (1996), a mais longínqua coreografia a ser remontada durante este ano. Tratando-se de uma peça que parte de uma homenagem ao cinema, o discurso foi depois engrossando e arrastando outras temáticas, como o Holocausto. “Acho que é a minha única peça política”, reflecte a coreógrafa e bailarina. “Tem muitas facetas, mas tudo foi pendendo para algo muito conflituoso, muito ‘holocáustico’, contra a Alemanha e fui por aí fora. Basta a lista de acontecimentos entre 1900 e 1996, daquilo que aconteceu em cada ano, coisas que eu fui escolhendo, para perceber o que se estava a tentar dizer ali. Depois fui buscar textos mais ou menos sobre a questão, sobre maus tratos, genocídios… É curioso que nunca toquei muito nesse lado político. No lado social, isso sim. Acho que os meus homens e as minhas mulheres são verdadeiros, mas não são muito reivindicativos, são mais conflituosos. Em Propriedade Privada são mesmo reivindicativos, com um discurso político que também existe em mim mas não forço.”
Gozando de um distendido tempo de gestação (nove meses), Propriedade Privada não é, no entanto, “um alien” no percurso de Olga Roriz, mantendo a sua assinatura artística bem visível. Mas ganhou uma aura icónica na história da companhia, ajudada por uma relação rara entre movimento, concepção cenográfica (premiada e a mais cara de sempre na companhia, a cargo do arquitecto …) e dramaturgia. Na dramaturgia em particular, e antes de contar com o auxílio permanente de Paulo Reis – “lê os livros todos sobre os temas, selecciona os capítulos que me podem interessar, faz-me a papinha toda”, confessa –, Olga contou então com a intervenção de João Carneiro, crítico de teatro do semanário Expresso e professor. “Conhecia a obra da Olga Roriz, tinha amigos e conhecidos em comum”, descreve Carneiro sobre a sua aproximação. “Num pequeno meio, era relativamente conhecido por ser um interlocutor para alguns criadores, artistas, que me perguntavam coisas, opiniões, ou simplesmente falavam comigo sobre coisas que podiam ser diferentes, mas que recobriam, e recobrem, domínios comuns. Neste contexto, quase natural, a Olga um dia disse-me que gostava de ter alguém que colaborasse com ela na dramaturgia daquele espectáculo.”
Chamado a “olhar para o material que existia e dar-lhe uma ordem”, explica João Carneiro, reconhecia naquele material “traços muito fortes da atitude dramatúrgica, criativa, e artística, em geral, do trabalho da Olga”. Para o crítico, há uma articulação de factores que, em conjunto, fornecem “um carácter de estrutura complexa quase único no universo da dança contemporânea em Portugal”: “a utilização de uma técnica de base, mesmo que remotamente, clássica, e a sua inteligente alteração e manipulação; um tipo de expressão pessoal que evolui sem nunca perder a sua identidade; a abertura a influências sem ter medo de as mostrar, ou melhor, de as incorporar como integrando a sua maneira de criar; e também a solidez da articulação entre inspiração, liberdade criativa, estrutura dramatúrgica e competência técnica.”
Os tempos da Gulbenkian
A presença inequívoca e constante da teatralidade na sua obra foi uma marca constante desde muito cedo. Mas conquistada também diante de alguma resistência de Jorge Salavisa, director do Ballet Gulbenkian logo após a entrada de Olga Roriz como bailarina para a companhia há 40 anos – a outra data que em 2015 se comemora – na única audição que fez até hoje. Olga encontrava no BG uma estrutura sintonizada com a sua própria deslocação pessoal de uma linguagem clássica para territórios da contemporaneidade, aliada a uma disciplina de trabalho seríssima que implicou uma concentração total, logo no início, à sua condição de intérprete. “Quando entrei, retraí a minha vontade de coreografar”, admite. “Os ateliers coreográficos com o Jorge Salavisa era muito interessantes, mas não me podia desconcentrar e, por outro lado, aquele era o auditório da Gulbenkian, para eu dançar quando os coreógrafos me pusessem a dançar, não era para ir brincar às coreografiazinhas. Não que eu achasse que era brincadeira o que fazia, mas havia um respeito pelo espaço e por mim também – não podia falhar.”
Aos poucos, ajudada pelas semelhantes cautelas de Gagik Ismailian, avançaram os dois para as primeiras criações no BG, em 1978. “Por diversas razões, esta colaboração não causou grande impacto junto do público. Foram obras de parceria que não conseguiram aquilatar o talento de cada um”, escreveu Salaviza no seu livro de memórias, Dançar a Vida (ed. Dom Quixote, 2012). A experiência e a mestria de Salaviza foram então essenciais para ajudar a balizar o furor criativo e a fervilhante novidade que Olga Roriz começava a introduzir. “Ele teve a inteligência de me pedir uma série de coisas muito importantes”, refere a coreógrafa, “e eu tive a inteligência de fazer aquilo que ele queria, de o aceitar e de acreditar piamente sem desacreditar em mim.” Olga acedia então a trabalhar sobre uma composição de Fernando Lopes-Graça (Sonatina nº1) na condição de, com um tempo muito mais reduzido, poder preparar uma peça sobre a música da punk alemã Nina Hagen (Lágrima). António Pinto Ribeiro, na sua História da Dança (INCM, 1991, citada por Mónica Guerreiro), escreve a esse propósito: “Lágrima introduziu o espectáculo da violência sexual no interior de uma Companhia tradicionalmente lírica e com um repertório leve no que diz respeito ao tratamento de temas amorosos. Com a música da rocker Nina Hagen, Lágrima foi uma profanação no palco do Ballet Gulbenkian.”
Interpretada por Elisa Ferreira e Ismailian, Lágrima vincaria a chegada de Olga Roriz ao lugar de coreógrafa residente do Ballet Gulbenkian, ao mesmo tempo que afirmava esse quase manifesto que era tratar o amor não como uma imagem etérea e idílica e sim como algo real, carnal, com sangue, luta, desejo. Estava-se entre homens e mulheres, e não num qualquer plano ascensional. Ao mesmo tempo que Salavisa lhe pedia para se concentrar mais no movimento e menos nas histórias, algo que, à distância, Olga reconhece ter-lhe permitido “entrar num estádio mais maduro” da sua linguagem, deixava-a “deslizar por também se aperceber muito bem que era nesses deslizes que por vezes vinham as coisas mais interessantes”. Assim foi com Isolda, Treze Gestos de Um Corpo ou Terra do Norte, coreografias fundamentais na criação para o Ballet Gulbenkian e na transformação da própria companhia. “Via-se desde logo a energia, a personalidade, a força, o ataque dela, via-se que era uma mulher com garra”, comenta Salavisa ao ÍPSILON.
A família
A concretização de todo o potencial que Salavisa ter identificado em Roriz e o seu “lugar muito importante na criação da dança portuguesa”, acredita o ex-director, deve-se a “um carimbo muito pessoal e uma grande curiosidade, sempre muito atenta a tudo o que a rodeava”. Daí que Olga Roriz tenha sido totalmente apanhada desprevenida quando, nesse mesmo período em que trabalhou com música de Nina Hagen, José Sasportes tivesse comparado o seu trabalho ao expressionismo alemão. A correspondência implícita era à linguagem de Pina Bausch; Olga, sem compreender totalmente a alusão, pensou que havia um qualquer outro sentido a escapar-lhe em Hagen. Só tempos depois, ao assistir em vídeo à Sagração da Primavera de Pina, num momento de epifania, é que se tornou clara a referência à dança-teatro da criadora alemã. Só mais tarde ainda, ao assistir a 1980 em Londres, no Saddler’s Wells, percebeu o impacto desestabilizador provocado pela obra de Bausch. “No tempo em que foram apresentados, tínhamos quase todos alguma dificuldade em engolir aqueles espectáculos. Agora é que há aplausos eufóricos – já estamos mais preparados e ainda bem. Mas essa influência foi um pouco tardia em mim. Claro que havia coisas que me diziam muito, como o ponto de vista humano, os homens e as mulheres onde eu sentia a criança e sentia o velho. Havia ali uma estética, uma ética e uma plasticidade que acho muito fascinantes e muito próximas. Era aquilo que eu procurava, mas de uma outra maneira.”
Depois as comparações tornaram-se mais frequentes, a ideia que cabia em Olga Roriz “a nossa Pina”. E aquilo que a coreógrafa foi aceitando de início como carinho começou a chegar, pontualmente, a picos de alguma agressividade. “Chegaram a dizer que plagiei o Pedro e Inês [2003] baseando-me no Vollmond [2006], quando a Pina fez o Vollmond três anos depois. Foram erros chatos para quem os fez, mas para mim também”, desabafa. Às tantas, Pina Bausch tornou-se um fantasma, uma sombra persistente que, apesar da admiração confessa de Olga, já só lhe motivava a resposta “tirem-me a senhora da frente”. “Acabou por se resolver pela amizade com ela”, confidencia. “Eu falei-lhe sobre isso, ela gostou do meu trabalho – não viu muita coisa mas mandei-lhe as Felicitações Madame [2005] e ela adorou –, jantei com família dela, convidou-me a visitá-la e fui percebendo que tínhamos muitas coisas em comum, muitas perspectivas semelhantes sobre a vida. E há vários momentos fortes de espectáculos que vi na minha vida relacionados com ela, assim como com o Jan Fabre e o Wim Wanderbeykus.”
Claro que com Pina a relação seria diferente. Quando o mesmo Teatro São Luiz, onde agora arranca a retrospectiva de Olga Roriz, dedicou em 2009 um ciclo antológico a Pina Bausch, a criadora portuguesa garantiu que ocupava um lugar na primeira fila de 1980. “Não queria ninguém à minha frente e passei o espectáculo a chorar. Porque me lembrava de mim, das minhas memórias, de mim em Londres, dos meus amores, da minha vida naquela altura.” Talvez agora, esse mesmo lastro emocional seja novamente activado.
Leonor Keil, bailarina para quem Roriz criou Bits & Pieces e que agora integra o elenco de PETS, fala ao ÍPSILON em “personagens que vamos reconhecendo de peça para peça, figuras que vão estando inseridas em cenários ou situações diferentes, e com as quais vamos construindo outras histórias, temos outras poesias”. Olga acredita também que voltar à obra de um coreógrafo é como ir visitá-lo a uma casa em que os bailarinos são confirmados como os mesmos amigos, a mesma família que lhe foi conhecendo. Desta vez, a casa e a família serão as suas.