O capitalismo rentista e o Portugal 2020

Para quem já passou a fase infantil ou não pretenda fazer de idiota útil, está claro que o sector do “capital rentista” vai beneficiar pelo menos de 50% dos fundos comunitários para os ditos “sistemas de distribuição inteligente”.

Esta opção política levou ao surgimento em Portugal dum modelo de “capitalismo rentista” sem precedente, no qual o risco fica quase todo do lado do contraente público, ou seja, dos contribuintes.

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Esta opção política levou ao surgimento em Portugal dum modelo de “capitalismo rentista” sem precedente, no qual o risco fica quase todo do lado do contraente público, ou seja, dos contribuintes.

Nunca foram publicados os reais valores das taxas de disponibilidade e taxas de rentabilidade pagas pelo Estado em cada uma das concessões e parcerias. Mas há a convicção que são desconformes com a realidade dos restantes sectores “não rentistas”, como sejam a indústria, a distribuição ou a exportação.

Existe, hoje, em Portugal uma sociedade dual a todos os níveis: os funcionários públicos têm o emprego protegido, ainda que sejam excedentários ou inaptos no respectivo serviço, faltando depois dinheiro para admitir os funcionários que são efectivamente necessários noutras valências. Os trabalhadores do sector privado, esses, têm o emprego dependente do êxito ou do fracasso das empresas onde trabalham.

Nos empresários existe a mesma sociedade dual. Os empresários “não rentistas” têm o lucro dependente do sucesso dos seus investimentos e opções. Ao invés, o “empresariado rentista” tem o rendimento assegurado pelas taxas fixas contratadas com o Estado e pelos mecanismos do reequilíbrio financeiro.

Neste contexto, foram publicados os programas operacionais que integram o novo QREN, agora designado Portugal 2020. Estamos a falar da tal “pipa de massa”, anunciada pelo anterior presidente da Comissão Europeia. Resta saber para quem irá. E as preocupações começam a ser muitas.

Quando lemos, por exemplo, o PO SEUR (Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos), no capítulo referente a “Desenvolvimento e Implantação de Sistemas de Distribuição Inteligente” de energia, encontramos o seguinte: “Os investimentos serão efectuados pelo operador da rede de distribuição de energia elétrica, [não podendo a] recuperação ser inferior a 50% do apoio comunitário. A ERSE (entidade reguladora) assegura que os benefícios decorrentes da utilização dos fundos serão refletidos nos consumidores finais.” (Pag. 58, do PO SEUR.)

Convenhamos que isto não parece mal, para quem acredite no Pai Natal… Para quem já passou a fase infantil ou não pretenda fazer de idiota útil, está claro que o sector do “capital rentista” vai beneficiar pelo menos de 50% dos fundos comunitários para os ditos “sistemas de distribuição inteligente”. Se os consumidores ficarem à espera da ERSE, para lhes fazer chegar algum benefício de mais esta “boda comunitária”, é bom que esperem sentados…

A medida mais eficaz, para evitar a repetição destas situações escandalosas – que este Governo disse que não iria permitir –, é legislar no seguinte sentido: todos os grupos económicos – incluindo nisto todas as empresas do seu universo empresarial que consolidem contas – que recebem actualmente qualquer tipo de rendas do Estado só poderão beneficiar de fundos não reembolsáveis no âmbito do Portugal 2020 na medida em que no mesmo quantitativo diminuam as taxas de disponibilidade e taxas de rentabilidade de quaisquer parcerias ou contratos que tenham com o Estado. Isto, ainda que tais rendas se refiram a actividade diversa dos fundos a que se candidatarem. É o mínimo que se deve fazer, querendo manter alguma dignidade institucional.

Dirão alguns que assim os “rentistas” não quererão investir. É possível. E daí? Não há outros investidores do capital “não rentista” prontos a investir? É política e socialmente sustentável que estas empresas remunerem os seus accionistas com lucros derivados, ao fim ao cabo, dos impostos dos contribuintes? Porque é mesmo isso que se está a passar.

Jurista