Madame Gertrude, um amor de perdição

Tem a literatura como fonte de inspiração, as artes como paixão e o vintage como religião. É uma casa de chá, onde o rancho à moda do Minho e as tábuas de enchidos e queijos vão sempre bem com um copo de vinho. No Porto, a nova anfitrião chama-se Madame Gertrude

Foto
Fernando Veludo/nFactos

Não estamos em Paris nem-tão pouco nos anos loucos, aquele período entre as guerras mundiais durante o qual a capital francesa foi o epicentro das vanguardas artísticas mundiais.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Não estamos em Paris nem-tão pouco nos anos loucos, aquele período entre as guerras mundiais durante o qual a capital francesa foi o epicentro das vanguardas artísticas mundiais.

Estamos no Porto quase um século volvido mas às vezes parece que o fantasma de Gertrude Stein, figura central dessa “ínclita” geração, paira por aqui. Não é inesperado, uma vez que o nome deste “salão de chá” (definição oficial para algo que vai mais além) é uma clara evocação (a puxar para a invocação) dela — Gertrude de nome próprio, madame por convenção (e ambiguidade q.b.) — e todas as suas “aparições” seriam bem-vindas.

Sobretudo se a escritora, poeta e mecenas viesse acompanhada de alguns dos seus companheiros de tertúlias, como Picasso, que ela reivindicava ter descoberto, Hemingway ou F. Scott Fitzgerald, para quem ela cunhou a expressão “geração perdida”, e tantos outros que eram presença constante na sua casa, como Matisse, Braque, Tzara, Ezra Pound, Sinclair Lewis… A lista dos notáveis poderia continuar, porque o apartamento de Gertrude Stein, no mítico número 27 da Rue des Fleurus, era o umbigo do mundo artístico da época — mais do que um salão literário, um salão artístico.

Foto
Fernando Veludo/nFactos

Do Madame Gertrude ninguém espera que surja um movimento artístico que mude o mundo; mas deseja-se que honre o nome da sua inspiradora, sendo um local cheio de conversas, indagações, ousadias — em torno de uma boa mesa (portuguesa, com certeza), pródiga de petiscos e vinho.

Foto
Fernando Veludo/nFactos

Não precisamos de saber o ADN do Madame Gertrude, aberto em Dezembro, para que ele sobressaia na escuridão de um final de tarde de sábado. Diante do mais antigo jardim do Porto, o de São Lázaro, a luz que sai do seu interior é amarela e derrama-se sobre uma pequena mesa de ferro, duas cadeiras e uma vela a completar o conjunto, tutelado por um vaso de flores multicoloridas pendurado na fachada. Só ao perto notamos o lettering que informa que estamos no local certo, dourado e retro, a combinar com o que entrevemos então pela janela-montra ao lado da porta, também ela transparente: há uma atmosfera vintage que vai bem com a luz amarelada que vimos à distância.

Foto
Fernando Veludo/nFactos

É um encontro entre o Porto e Paris algures nos anos de 1920-1930, dizem-nos os proprietários, um casal que não mudou de vida mas alargou os seus interesses. Sandra Santos é a figura-chave, é a Madame Gertrude desta versão, porque é dela a história, que nem é nova: cozinha tão bem que os amigos sempre lhe perguntaram por que não o fazia para fora. Ela dedicava-se ao vintage, numa loja perto da Ribeira, mas acalentava também o desejo de ter uma casa de chá. E assim começou o projecto que agora ocupa o espaço que já foi de uma alfaiataria. Uma casa de chá, primeiro, uma casa de petiscos depois, um espaço de exposições, um espaço multicultural. Uma bola de neve, que nos é explicada de forma torrencial.

Foto
Fernando Veludo/nFactos

Por esta altura já estamos instalados numa das mesas de tampos de mármore que fazem a primeira sala — na única que, na verdade, são duas, estendendo-se no espaço como um balcão. As cadeiras são, claro, desirmanadas e poderiam ter saído da casa de alguma avó — mas chegaram aqui depois da passagem por lojas de mobiliário em segunda mão. Há candeeiros de pé e de mesa em algumas destas, encostadas à parede, há um lustre de rendas e veludos, há um candeeiro de vidro fosco como já não víamos há anos: a luz é importante na criação do ambiente intimista que aqui se vive. E que não deve pouco ao grande móvel que preenche grande parte das paredes, um canto, e que é um móvel das antigas mercearias, cor de ovo, e que faz as vezes de expositor da Le Shop — mantém-se a loja vintage que é agora o cenário deste salão de chá pouco ortodoxo.

Quase tudo à venda

Se escutamos alguém perguntar se tudo está à venda aqui é porque na realidade quase tudo está. Salvo algumas figuras de estimação (como o busto de Camilo Castelo Branco, por exemplo, que esteve quase a emprestar o nome ao espaço — Amor de Perdição, chegou a pensar-se) ou algumas imagens icónicas dos cafés-tascas do Portugal de outrora — para além do balcão alto, tampo de mármore e barra de azulejos art déco, o Santo António (que aparece em várias versões) ou os crucifixos, discretos, é certo, todos unidos a sacralizar um espaço de vocação profana. No bom sentido, claro, já que é a arte de viver que se celebra no Madame Gertrude, na companhia de muita poesia e vinho. A poesia, aqui expressa de forma geral, não está só no nome da “patrona”, está nos livros que abundam no espaço, todos à disposição dos clientes — até para empréstimo, como já aconteceu com E os hipopótamos cozeram nos seus tanques, de dois dos gurus da beat generation, Kerouac e Burroughs, ou para consulta, como uma revista de arquitectura dos anos de 1940, sobre habitação social, que veio de uma banca de alfarrabista parisiense e foi motivo para regressos, com direito a anotações, ao Madame Gertrude. O vinho também não é ortodoxia aqui, embora haja uma clara inclinação para ele — e para o “vinho da casa”, o Quinta do Escudial — que até combina bem com as conservas, correntes e gourmet, que se intrometem na carta da casa.

É que esta casa de chá também serve refeições — um quadro de lousa anuncia as sugestões do dia (entre outros, hoje temos sopa de tomate com tartine de queijo ou rancho à moda do Minho, preços de 3,50€ e 3,80€, respectivamente) — e em breve chega um grupo para jantar, enquanto outros continuam com as suas tábuas de queijos e enchidos de final de tarde.

Nós ficamos pelo cupcake de limão com um dos chás, que, inevitavelmente, constituem uma porção grande da oferta. Ecléctica a carta, como a decoração — já falámos dos “cartazes” (de metal) de filmes? O Grande Ditador, ao lado do Sexo em Brasa, ao lado de A Maldição da Mansão Sombria; dos manequins (alguns porque sim, outros a exibir roupas para venda); das caixas de fruta ou do escarrador — e as ambições culturais (a 21 de Fevereiro é inaugurada a primeira exposição da casa, um desafio dos proprietários a Dagoberto Silva para criar “algo mais ousado, erótico, a fugir para o softcore”).

Na música a abertura é menor e começamos pelos interditos: pop, rock, hip hop, rap… Também há música vintage, afinal, e essa é aqui cristalizada nos standards do jazz e do musical norte-americano interpretado pelas grandes vozes e instrumentistas de génio — mas é Tom Waits que escutamos hoje e poderíamos até ouvir música conceptual. O tabuleiro de damas é para ser usado, há um caderno para ser enchido pelos clientes.

Neste espaço que reflecte a mundividência dos donos, onde tanto se encontram obras sobre design como sobre o Twilight Zone, abrirá em breve um pátio. Madame Stein não desdenharia, atrevemo-nos nós.