Proteger as crianças ou torná-las independentes?

A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura.

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Ainda bem que não vivo em Montgomery County, no Maryland. Senão, aparentemente, teria a polícia à porta. Apareceram na casa de Danielle e Alexander Meitiv, em Silver Spring, em Dezembro, acompanhados por funcionários dos serviços de protecção de menores. E estes voltaram a aparecer recentemente. E também na escola das crianças.

O seu crime? Os Meitivs deixaram os filhos de dez e seis anos voltar sozinhos, a pé, de um parque na Baixa da cidade para casa. Agora estão a ser investigados por negligência.

O caso representa um daqueles fossos culturais que se abatem sobre os pais de hoje. Num lado, há os pais que quando eram pequenos andavam pelo bairro de um lado para o outro com a chave de casa pendurada ao pescoço e que querem que os seus filhos vivam da mesma maneira. Do outro, os pais hipervigilantes que não conseguem sequer imaginar os filhos a irem a pé para a escola, ou que façam qualquer outra coisa, sem supervisão parental.

A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura.

“Não sabe quão perigoso o mundo é?”, perguntou um dos quatro polícias que apareceram em casa dos Meitiv a 20 de Dezembro, depois de terem recebido um telefonema a avisar que duas crianças caminhavam sozinhas pela Baixa de Silver Spring. A polícia apareceu e apanhou-os numa rua movimentada, a meio da sua caminhada de 1,5 quilómetros do parque até casa. Um quilómetro e meio? Sim, também me fez parar.

O meu grande momento de rédea solta foi quando deixei os meus dois filhos rapazes, de dez e sete anos, andarem metade disso até à mercearia da esquina em Capitol Hill. Levaram o cão e o telemóvel. E admito que passei todo o tempo em sobressalto. Por isso, a ideia de os dois caminharem pela cidade parece tão corajosa e improvável como aqueles tipos que saltam de uma montanha para a outra com fato de morcego.

Eu não conseguiria. Mas os Meitivs têm estado a trabalhar nesta coisa da independência há muito mais tempo do que eu. São pessoas com mentes científicas. Ele é médico no Instituto Nacional de Saúde; ela é consultora de Ciência Climática do Banco Mundial. Olham para as decisões parentais com base na ciência.

“Qualquer decisão parental envolve gestão de riscos”, disse-me Danielle Meitiv, enquanto Rafi, o seu filho de dez anos, praticava trompete por trás. “A verdade é que os sequestros de crianças por estranhos são tão raros como sequestros por aliens. Bom, talvez não tanto. Mas são muito mais raros do que os acidentes de carro. Pôr um filho dentro do carro é a coisa mais perigosa que podemos fazer todos os dias.”

É verdade. Cerca de 300 crianças por dia sofrem acidentes rodoviários [nos Estados Unidos]. Em média, morrem três crianças por dia numa viagem de carro. Argumentaríamos que isso é negligência infantil, porque os pais deveriam conhecer os riscos que existem na estrada?

Provavelmente não. Mas tendo em conta as estatísticas, Meitiv não achou que seria um risco terrível deixar os filhos brincarem sozinhos na rua. “Estamos dispostos a correr o risco porque sabemos quais são as probabilidades”, diz ela.

Depois, os filhos começaram a andar pelo quarteirão, no pacato bairro de Silver Spring, perto do campus da Universidade Montgomery. “Oh, já nem me lembro da primeira vez. Simplesmente não era nada de especial”, disse-me Meitiv quando comecei a contar histórias de pais nervosos.

Já há uns dois anos que eles brincam sozinhos no parque infantil do outro lado da rua e no quintal de casa. Por isso, a caminhada de 1,5 quilómetros não era um grande esticão.

Quando se pega em cada peça da história — um cidadão preocupado que vê dois miúdos sozinhos na rua na azáfama de Silver Spring e chama a polícia; a polícia receber o aviso e levá-lo a sério (imaginem as histórias que estaríamos a escrever agora se os miúdos tivessem estado aflitos e os polícias não lhes tivessem ligado); e leis que exigem uma investigação à Comissão da Protecção de Menores sempre que há um relato de negligência — cada uma das acções fazem algum sentido.

Os responsáveis de Montgomery afirmam que não podem comentar este caso em particular, mas adiantaram que existe uma lei contra deixar crianças sozinhas em casa sem supervisão de alguém que tenha pelo menos 13 anos. A lei, argumentam os Meitivs, não refere nada em relação às crianças estarem sozinhas no exterior.

Também é curioso que as escolas do condado garantam transporte, segundo o website, a crianças do 1.º ciclo que vivam “a mais de 1,5 quilómetros” da escola, ou que estejam sujeitas a alguma circunstância extraordinária. Então, significa isto que as escolas estão tranquilas que crianças da primária andem 1,5 quilómetros para chegar às aulas?

Desde o incidente, a Comissão de Protecção de Menores voltou para levar os pais a assinar um “plano de segurança”, no qual prometem não deixar os filhos sem supervisão. Entrevistaram os miúdos na escola e pediram para inspeccionar a casa da família, procurando outros sinais de negligência.

Tem existido um padrão nacional de atemorizar os pais que não andam de vigia em cima dos filhos. No Verão, ouvimos falar de uma mãe da Florida que foi presa por deixar a filha de sete anos ir ao parque local e de outra mãe detida porque a sua criança de nove estava a brincar no parque do bairro, na Carolina do Sul.

Não só estamos a fazer exigências irrazoáveis aos pais para que estejam com os seus filhos 24 horas por dia, como estamos a bloquear o desenvolvimento de seres humanos independentes.

O mundo de hoje é diferente, diríamos? Ah, sim, é. Desde 1993, o número de crianças com menos de 14 anos que foram assassinadas desceu 36%. Entre as crianças entre os 14 e 17 anos, os homicídios desceram 60%. Pouco mais de 1% das crianças desaparecidas são sequestradas por estranhos ou sequer conhecidos pouco próximos, segundo o Centro Nacional para as Crianças Desaparecidas e Exploradas.

Só parece mais assustador porque temos muito mais informação. São-nos oferecidas diariamente histórias de crianças desaparecidas em todo o país. Antigamente, parecia muito mais seguro porque as histórias trágicas ficavam pelos jornais e emissoras locais.

As estatísticas baixaram por sermos muito mais cautelosos? Talvez sim. Mas provavelmente não, dado o elevado número de ataques contra crianças que no passado ficavam por reportar devido ao estigma social que comportavam.

Os Meitivs deverão voltar a encontrar-se novamente com funcionários da comissão, a quem esperam fazer entender que as suas decisões têm que ver com uma filosofia de educação e não com negligência.

“Todo este medo está mal situado. O maior medo que a nossa sociedade deveria ter é o de estarmos a educar crianças que não saberão ser independentes”, comenta Danielle Metiv. “Acham que a criança independente vai aparecer como o génio saído da garrafa? É preciso tempo.”

Ela está certa. Não, nem todos os pais deixarão os filhos caminhar um quilómetro sozinhos numa rua cheia de trânsito. É um bocadinho extremo. Mas deixá-los dar pequenos passos é uma experiência humana que tem de acompanhar o nosso regresso ao bom senso.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post