Ó freguesa, venha cá ver as varinas de Lisboa
Exposição “Varinas de Lisboa – Memórias da Cidade” tem imagens e objectos que retratam um dos principais ícones da capital, com raízes em Ovar. E excertos dos relatos de quem andou descalça pelas ruas de Lisboa com a canastra do peixe à cabeça.
A história de Deolinda, e de outras que como ela percorreram descalças as ruas de Lisboa, de canastra à cabeça equilibrando o peso do peixe no corpo ágil e robusto, está a partir deste sábado exposta no Pavilhão Preto do Palácio Pimenta, onde funcionou até agora o Museu da Cidade.
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A história de Deolinda, e de outras que como ela percorreram descalças as ruas de Lisboa, de canastra à cabeça equilibrando o peso do peixe no corpo ágil e robusto, está a partir deste sábado exposta no Pavilhão Preto do Palácio Pimenta, onde funcionou até agora o Museu da Cidade.
Neste espaço, além de fotografias, postais, gravuras, esculturas em cerâmica, literatura e recortes de jornal sobre as varinas, os visitantes vão poder ver e ouvir em vídeo excertos dos testemunhos de cinco peixeiras, com idades próximas dos 80 anos, residentes nos bairros da Madragoa, Alfama e Mouraria. São descendentes das gerações de ovarinas vindas do litoral de Aveiro no início do século XIX, sobretudo do concelho de Ovar, para acompanhar os maridos pescadores. Com o tempo caiu a letra que as ligava às raízes.
“As varinas estão a morrer e o repositório da informação que elas não transmitiram aos filhos estava a perder-se”, observa Sofia Tempero, técnica do Departamento de Património Cultural (DPC) da Câmara de Lisboa. A historiadora é co-comissária da exposição e dedicou o último ano e meio a estudar estas mulheres, as suas rotinas e artimanhas, os pregões e as vestimentas, as privações e as alegrias por que passaram à medida que foram chegando a Lisboa e se estabeleceram nos bairros próximos do Tejo, em condições precárias.
Marotas e cheias de graça
Para isso, os técnicos do DPC reuniram um extenso espólio material relacionado com as varinas, imortalizadas ao longo do tempo por artistas nos mais diversos meios, desde a fotografia à escultura. A varina “foi muitas vezes utilizada para vender a imagem da cidade, apresentada como uma figura elegante, vestida quase como se fosse para a passerelle e não para o trabalho”, diz António Miranda, coordenador do Museu da Cidade. “A varina acaba por ser uma espécie de embaixadora de Lisboa”, acrescenta. Até o físico alemão Albert Einstein admitiu, num diário de viagem, que o que mais o impressionou durante uma curta estadia em Lisboa em 1925, a caminho do Rio de Janeiro, foi o “gesto orgulhoso” e o jeito “maroto” das peixeiras.
A exposição, temporária (até 24 de Maio) e de visita gratuita, é para Sofia Tempero um “encontro entre o passado e o presente”, por incluir os testemunhos de varinas ainda vivas e “cheias da graça e vivacidade que as caracteriza”.
Os técnicos entrevistaram seis mulheres (começaram com sete, mas uma delas morreu entretanto) e gravaram em vídeo o relato de cinco delas. As imagens vão ser incluídas num documentário sobre o tema, com realização de Fernando Carrilho, coordenador da Videoteca Municipal, com estreia marcada para 23 de Maio no Cinema São Jorge e transmissão em Novembro na RTP.
Segundo Sofia Tempero, o documentário vai integrar também entrevistas a um antropólogo e a agentes da polícia no activo em meados do século passado, que se cruzaram com as varinas, e em alguns casos as autuaram por andarem descalças — é como surgem fotografadas até aos anos 1940 do século passado, apesar de um decreto de 1928 proibir esta prática pouco saudável e higiénica.
Ter um par de chinelas era regalia de poucos, pelo que as varinas tentavam contornar a lei como podiam, conta a historiadora. Fugiam às autoridades, levavam as chinelas na canastra e só as calçavam quando avistavam a polícia, partilhavam o calçado entre amigas, ou escondiam os pés sob as saias. No pior dos casos, sem dinheiro para pagar a multa, passavam a noite na esquadra.
O documentário terá imagens de arquivo da RTP nas quais se ouvem os típicos pregões. “Ó freguesa, venha cá que a minha sardinha tem quatro olhos, ainda há meia hora estava a nadar.” E os truques, como os que Doroteia Figueiredo, de 79 anos, contou na entrevista citada na Agenda Cultural de Janeiro da Câmara de Lisboa. Um exemplo? o da barriga inchada: com um fósforo fazia um buraco na barriga do peixe e sopravam para o inchar, parecendo que tinha ovas.
Casamento entre primos
A propósito da investigação, o DPC promoveu um estudo demográfico inédito sobre o bairro da Madragoa, na antiga freguesia de Santos-o-Velho, actual Estrela. A equipa coordenada por Delminda Rijo, historiadora e especialista em demografia histórica, analisou os registos de casamento entre 1800 e 1870 e o rol de confessados de 1981 (lista feita pelo pároco por altura da Quaresma, que inclui informações sobre todos os residentes na paróquia, como o nome, idade, morada e estado civil), pesquisando dados sobre famílias em que pelo menos um dos nubentes era natural de uma freguesia do litoral norte.
Nos primeiros 70 anos do século XIX, foram contabilizados 3779 indivíduos. Vinte anos depois, o rol de confessados dá conta de 7484 pessoas, que viviam em 15 ruas da freguesia, distribuídas por 1648 agregados. Só nesse ano havia 515 peixeiras e 36 peixeiros.
A análise permitiu tirar várias conclusões. Por exemplo, eram relativamente comuns os casamentos entre parentes, como primos e cunhados. Há mesmo registo de um casamento entre um tio e a sobrinha. Por norma, sob o mesmo tecto juntavam-se várias gerações da mesma família, e até hóspedes, o que dava origem a agregados numerosos de 15 e até 18 pessoas. Também por isto, era normal que os futuros noivos vivessem na mesma casa antes do casamento.
Rita Maria, 12 anos, peixeira, a mais nova das 11 que viviam no 1.º andar do número 70 da Rua Vicente Borga, segundo o rol de confessados consultado por Delminda Rijo. Nesta casa, chefiada pela prima de Rita, Maria Luísa da Silva, viúva aos 29 anos, residiam apenas dois homens, vendedores de jornais. “Era uma comunidade muito matriarcal”, nota Sofia Tempero. E todos começavam bem cedo a trabalhar. “Embora raros, há registos de meninas de cinco anos como peixeiras e de rapazes de nove como vendedores de jornais”, explica Delminda Rijo.
As varinas que participaram neste projecto vão estar presentes na inauguração da exposição, às 17h, com o apoio da Junta de Freguesia da Estrela, que se associou a esta ideia. E porque a comunidade de varinas lisboetas descende da população ovarina, a Câmara de Ovar também trará uma comitiva até à capital.
Este intercâmbio é habitual. Segundo Sofia Tempero, todos os anos os elementos da marcha da Madragoa que desfilam nos Santos Populares deslocam-se a Ovar — invariavelmente, eles vestidos de pescadores e elas de varinas, com saias compridas e rodadas, um avental, o corpete de flanela e uma cinta de lã, chapéu redondo de feltro achatado sob um rodilha, na qual assenta a canastra.
A varina de Bordallo
Além do Palácio Pimenta, também o Museu Bordallo Pinheiro no Campo Grande inaugura neste sábado uma exposição inédita dedicada ao tema das varinas na obra de Rafael Bordallo Pinheiro, que fica até 22 de Junho. Organizada em três núcleos — etnografia, humor e ícone — a mostra revela a forma como o artista construiu a sua imagem da varina através da pintura, desenho, gravura e faiança decorativa das Caldas da Rainha.
Intitulada “Vivinha a Saltar”, a exposição divide-se entre as varinas e as sardinhas, ambas emblemas da capital. “Em As novas sardinhas de Bordallo, trazemos a sardinha de Rafael Bordallo até aos nossos dias e juntamos os mais recentes modelos cerâmicos assinados por artistas contemporâneos, a colecção Sardinha by Bordallo, uma colaboração entre EGEAC e a Fábrica Bordallo Pinheiro”, explica a EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural) em comunicado.
Além da de Bordallo, a colecção é composta por 21 sardinhas que foram a imagem das várias campanhas de comunicação das Festas de Lisboa, desde a original criada em 2003, até outras mais recentes apresentadas nos vários anos do Concurso de Sardinhas.
Um museu, cinco núcleos
O Museu da Cidade “desaparece” oficialmente neste sábado, com o nascimento da marca Museu de Lisboa. Esta funciona como uma chancela para cinco núcleos espalhados pela cidade: o Palácio Pimenta (onde funcionava o Museu da Cidade, cujo espólio permanece no mesmo local), o Museu de Santo António, o Teatro Romano, a Casa dos Bicos e o Torreão Poente, do Terreiro do Paço.
Esta reorganização baseia-se num estudo elaborado por António Mega Ferreira sobre os museus municipais de Lisboa, encomendado pela autarquia em 2012, por 19 mil euros – uma contratação que gerou polémica na altura, no seio do executivo. A realização do estudo foi aprovada pela câmara em Junho daquele ano e o documento estava pronto em Outubro, segundo afirmou o escritor e ex-presidente do Centro Cultural de Belém. No entanto, o resultado demorou a ser divulgado.
No estudo, Mega Ferreira considerou que os museus de Lisboa viviam “numa espécie de ‘limbo’ orgânico” e recomendou a criação de uma unidade orgânica autónoma, respondendo perante o director municipal de Cultura.
A vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, anunciou em Maio de 2013 que o Museu da Cidade iria adoptar a designação de Museu de Lisboa, com sede no Torreão Poente e passando a integrar seis núcleos. Afinal, terá cinco núcleos e sede no Palácio Palmela.
Em comunicado, a câmara adianta que o Museu de Lisboa “no seu todo e com as suas partes (os seus 5 núcleos) pretende vir a ser um museu de cidade contemporâneo e uma referência na vida dos lisboetas e de quem nos visita”. Mais do que “espelho da história da cidade de Lisboa”, esta marca “já é, e será mais ainda, um conjunto de espaços museológicos onde se aprende Lisboa, onde se debate Lisboa e as suas vivências e onde se perspectiva o seu futuro”.