"Ter emprego não é uma vacina contra a pobreza"
Carlos Farinha Rodrigues, investigador na área das desigualdades, diz que Portugal recuou uma década em termos sociais.
Se no início da crise já havia sinais de que as desigualdades e a exclusão estavam a aumentar, hoje, à luz de vários anos, é inequívoco que o ciclo de redução da pobreza se inverteu, diz Farinha Rodrigues. “Hoje estamos ao nível dos indicadores de 2003-2004, recuámos uma década em termos sociais”. Os ganhos obtidos na diminuição da taxa da pobreza até 2009 “já estão revertidos”. E não só aumentou a incidência da pobreza como os pobres estão mais longe de deixarem de o ser.
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Se no início da crise já havia sinais de que as desigualdades e a exclusão estavam a aumentar, hoje, à luz de vários anos, é inequívoco que o ciclo de redução da pobreza se inverteu, diz Farinha Rodrigues. “Hoje estamos ao nível dos indicadores de 2003-2004, recuámos uma década em termos sociais”. Os ganhos obtidos na diminuição da taxa da pobreza até 2009 “já estão revertidos”. E não só aumentou a incidência da pobreza como os pobres estão mais longe de deixarem de o ser.
Carlos Farinha Rodrigues é consultor do INE nas áreas de distribuição do rendimento e das estatísticas das famílias. Ao PÚBLICO falou na qualidade de professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).
Como nos últimos anos o rendimento baixou e, com isso, o limiar da pobreza tende a baixar, haverá muitas pessoas de baixos rendimentos que deixam de ser consideradas pobres. É possível ter uma ideia da dimensão que este fenómeno assume?
Os indicadores oficiais de Portugal e da União Europeia foram pensados essencialmente para um contexto de crescimento normal, em que a evolução das condições de vida das famílias era tida em conta com a definição de uma linha de pobreza anual que reflectia as condições de vida nesse ano. O que acontece num período de forte estagnação ou retrocesso económico é que, na prática, os rendimentos baixam (em particular em torno da média e da mediana), o que leva a linha de pobreza para baixo e faz com que pessoas que antes eram pobres, agora, por via da quebra da linha de pobreza, ‘deixam de ser’ pobres, embora as suas condições não tenham melhorado ou até possam ter piorado.
A resposta encontrada foi construir um indicador alternativo que neutralizasse este efeito e mantivesse a linha de pobreza fixa, actualizada em exclusivo com a taxa de inflação — o que o Eurostat designa por linha de pobreza ancorada a determinado ano. O INE escolheu 2009, na minha opinião bem, porque ainda foi um ano de relativo crescimento dos rendimentos reais das famílias — corresponde ao encerramento de um ciclo que vinha desde o início do século, caracterizado pela redução das desigualdades.
A partir de 2010 tudo isso se inverte e há um sucessivo acréscimo de pobreza e de desigualdade. O que é que estes dados têm de relevante? Se considerarmos as estatísticas oficiais, eles são particularmente ilustrativos da tendência que vem desde 2010: há um aumento significativo de todos os indicadores de pobreza. Os dados hoje publicados pelo INE têm essa clareza. Em praticamente todos os sectores sociais e escalões etários, a taxa de pobreza aumenta. Olhando de 2009 até ao presente, é inequívoco que passámos de um ciclo de descida para um ciclo de aumento da pobreza e das desigualdades.
Hoje estamos ao nível dos indicadores de 2003-2004, recuámos uma década em termos sociais. E isto é um aspecto particularmente relevante, na medida em que grande parte dos ganhos obtidos até 2009, em termos de redução da pobreza e da exclusão social, já estão revertidos neste momento. Outro aspecto que os dados mostram é que, mesmo nos períodos de redução da pobreza em Portugal, há um sector onde os resultados são praticamente nulos: a pobreza nas crianças e jovens. Se durante o período de queda das desigualdades os resultados se mantiveram quase iguais, neste período oposto tem aumentado imenso. A taxa de pobreza das crianças já vai nos 25,6%. Este, para mim, é um dos factores de preocupação — hoje, as crianças e os jovens são dos sectores em maior fragilidade social, temos um quarto das nossas crianças e jovens em situação de pobreza.
Há ainda outro aspecto relevante, embora muitas vezes os media não lhe confiram muita importância, que é o indicador de intensidade da pobreza — no fundo, uma medida de quanto pobres são os pobres, que nos diz qual é a percentagem de recursos que faltam aos pobres para deixarem de ser pobres. Pela primeira vez este ano, ultrapassámos os 30%. É o valor mais elevado desde que esta série do INE existe. O que é que isto significa? Que não só estamos a agravar fortemente a taxa de pobreza — a incidência de pobreza da população —, como estamos a [deixar que] os pobres tenham piores condições. Toda esta análise baseia-se nas estatísticas oficiais. Se sobre isto considerar, como seria mais correcto, a linha de pobreza, a taxa de pobreza passa para 25,9% e a das crianças é superior a 30%.
No contexto de crise, que significado podemos atribuir ao facto de 47,8% da população ser considerada em risco de pobreza se não houvesse as transferências sociais?
Em relação ao indicador antes das transferências sociais e pensões, temos de o ler com atenção, porque as pensões de tipo contributivo são uma forma de rendimento efectivo de grande parte da população. Isto serve essencialmente para termos um indicador da eficácia das políticas sociais da pobreza. O que temos é indicadores que traduzem a fragilização progressiva das políticas sociais que vêm desde 2010. Quando olhamos do ponto de vista quase histórico para aquilo que aconteceu até 2009, vemos que grande parte da redução da pobreza se deveu às políticas sociais, em particular as que foram dirigidas à pobreza e à exclusão social — o Complemento Solidário para Idosos (CSI), o Rendimento Social de Inserção (RSI), as pensões sociais, etc. A pretexto da crise e da necessidade de contenção orçamental, houve uma forte neutralização dessas políticas: reduziu-se o número de beneficiários do RSI para mais de metade, diminui-se fortemente o número de beneficiários do CSI, os valores das prestações diminuíram, o abono de família foi fortemente reduzido. Há aqui uma tentativa de reduzir a eficácia destas políticas e, de alguma forma, isso também explica, juntamente com as questões do desemprego, este aumento das fragilidades sociais.
Os números vêm contrariar a argumentação de que houve uma distribuição equitativa dos sacrifícios na austeridade?
Sim. Claro que isto é sempre relativo se compararmos estes indicadores, por exemplo, entre Portugal e a Grécia — a crise grega tem características mais acentuadas do que a nossa. Agora, um dos argumentos que tem sido utilizado [pelo Governo] é que os cortes nas pensões, nos salários, geralmente isentaram as famílias mais desprotegidas. Ora, isto só é verdade parcialmente. Se é certo que os cortes nos salários isentaram pessoas abaixo de um certo montante, também é verdade que essas pessoas são fortemente afectadas não tanto por esses cortes, mas essencialmente pela brutal redução das prestações sociais e pelo desemprego. Se olharmos para as famílias do primeiro decil — as 10% mais pobres —, uma parte muito significativa dessas famílias está fortemente dependente do montante dos subsídios que recebia.
Podemos constatar que, apesar desse argumento, isso não impede que 10,7% dos indivíduos empregues em Portugal estejam em situação de pobreza, o que não deixa de ser esclarecedor do nível de baixos salários que temos em Portugal. E mostra, claramente, que o ter emprego não é uma vacina contra a pobreza.
Tendo em conta estes dados, é expectável que haja alterações na posição relativa de Portugal face aos outros países da União Europeia?
A evolução de um conjunto de países da União Europeia tem traços muito semelhantes à nossa. As políticas de austeridade podem ter um destaque nacional, mas correspondem a uma ideia muito generalizada na Europa. A forma como o ranking de Portugal nos países mais pobres se vai alterando é capaz de não se alterar muito significativamente, porque aqueles que estão mais perto de nós não têm tido comportamentos melhores. Possivelmente, a nossa posição não se vai alterar significativamente — pelas más razões.