Live Low ou o êxodo urbano de Ghuna X
Pedro Augusto despiu a capa de Ghuna X e criou um novo alter-ego, Live Low. Deixou a cidade para imaginar uma vida despojada em territórios distantes, e fê-lo de um modo surpreendente no registo de estreia. Para ouvir hoje no Porto e amanhã em Guimarães.
Conhecido desde 2005 como Ghuna X, na música (na criação em nome próprio e na mistura e produção para outros, como Capicua) mas também nos trabalhos regulares para cinema e artes performativas, o músico e artista portuense lançou em Dezembro o primeiro registo sob o novo alter-ego, Live Low. A cassete, homónima, saiu pela editora Tesla Tapes, dos britânicos Gnod
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Conhecido desde 2005 como Ghuna X, na música (na criação em nome próprio e na mistura e produção para outros, como Capicua) mas também nos trabalhos regulares para cinema e artes performativas, o músico e artista portuense lançou em Dezembro o primeiro registo sob o novo alter-ego, Live Low. A cassete, homónima, saiu pela editora Tesla Tapes, dos britânicos Gnod
Primeiras impressões: onde está a electrónica terrífica, hiperactiva e delirante de Ghuna X? Onde está aquele dubstep do esgoto atravessado por sintetizadores a pingar azeite? Onde estão os gunas, os carros tuning, as ruas escuras e os agarrados do Porto que habitavam as suas produções e as mixtapes do seu colectivo, a Faca Monstro? Estão muito longe daqui. Live Low é o êxodo urbano de Pedro Augusto, idealizado num trabalho de dub desalinhado, com ecos e pulverizações sonoras que circundam estruturas de sons concretos e telúricos, arquitectados de forma a marcarem um ritmo biológico. É música que drena impurezas, que escapa ao frémito urbano – e fá-lo de uma maneira surpreendente.
“Estou a limpar, não quero tanto caos”, diz Pedro Augusto, enquanto explica ao Ípsilon a transição para Live Low num camarim de Serralves, nas vésperas de inaugurar uma instalação criada a propósito da exposição sobre o processo SAAL. “Estava farto de tocar o material de Ghuna X, há muito que não tinha música nova. Se calhar era o sinal de que estava a chegar a um limite. E, na verdade, sempre achei que aquilo não funcionava enquanto concerto. Era bastante cacofónico, não havia uma unidade, uma estrutura.”
Guardou uma semana no Verão do ano passado para “corrigir esses problemas” e fazer um conjunto de músicas novas, pensadas exclusivamente para tocar ao vivo. Quando essa semana chegou ao fim percebeu que tinha muito material, com uma marca identitária forte, e os planos mudaram. Aquilo merecia “uma edição nova, um contexto diferente, um nome novo”. E assim nasceu Live Low, que vai buscar o nome a Live Low To The Earth, In The Iron Age, álbum de tranquilidade ecologista do compositor Eyvind Kang.
“Live Low é sobre uma vida despojada, uma existência frugal”, esclarece Pedro Augusto. É um trabalho com conceito e ideologia, onde se nota uma preocupação com a ecologia e a voragem do capitalismo, uma vontade de largar tudo e viver no meio do nada. Uma das grandes inspirações para este registo, conta, foi Yama No Anata – Para Além das Montanhas, filme de Aya Koretzky (premiado no DocLisboa de 2011) sobre os próprios pais, que fugiram da poluição e das centrais nucleares de Tóquio para se instalarem, com a filha pequena, numa serra perto de Coimbra, dando início a um modo de vida auto-suficiente.
“Não quero ser o gajo da Greenpeace ou fazer disto uma total apologia do zero impacto humano, mas senti necessidade de pensar sobre isto.” Sem lições de moral, até porque “as músicas não são literais”. E continua: “Quero deixar espaço para as pessoas criarem as suas próprias ideias sobre o que estão a ouvir.”
Aceitando o desafio, Live Low puxa pela absorção do ouvinte e promove territórios imaginados, num encadeamento narrativo especialmente bem conseguido. Há um ritmo de caminhada (uma caminhada solitária) que pontua todos os temas: o arranque parece atribulado, com o drone assombrado de In Frugal Existence, como se alguém estivesse a sair da cidade e a entrar no deserto ainda meio atordoado – ouça-se logo depois o esfumar dos ecos e a electrónica circular e enfeitiçada de Decay, que provocam uma espécie de alucinação cognitiva, como se estivéssemos a furar aquelas ondas de calor do deserto, ao pôr-do-sol. Evil Money são os uivos e as criaturas estranhas que se encontram à noite, no faroeste, com guitarra ritualesca e lânguida. O tom vai serenando, com o ritmo cardíaco a tornar-se cada vez mais evidente (At Atomic Pace, molecular e orgânica, ou Echoes I, mantra dub hipnótico), terminando no eflúvio de The Antiplot, com uma melodia entoada pela turca Ece Canli, entre respirações, em jeito de final de percurso.
Dead Combo e Allen Halloween
“Há essa ideia de caminhares no deserto até desapareceres, até ficares sem a sola dos sapatos”, diz Pedro Augusto. “Tem a ver com o [Layne Staley] de Alice in Chains: há o mito de que a última vez que ele foi visto, antes de morrer, foi a caminhar no deserto e a desaparecer”. Esse imaginário vem também dos álbuns que o músico usou como referências para esta nova investida: Lisboa Mulata, dos Dead Combo, e A Árvore Kriminal, do rapper Allen Halloween.
Dois discos que, à primeira vista (e à segunda), não têm nada a ver. “Eu acho que têm tudo a ver, aquele lado western spaghetti, do faroeste. Há um tipo de guitarras parecido com as de Dead Combo em Halloween, se bem que o gajo que toca parece estar todo bêbedo, a fazer tudo ao lado, e é isso que me agrada. Eu nunca gostei de guitarras e estes dois discos mudaram a minha perspectiva sobre elas”. Na cassete só há guitarra em Evil Money, mas nos concertos ela tem presença por inteiro, tocada por Luís K., o novo companheiro de estrada de Pedro Augusto.
Os instrumentos utilizados, a sua selecção e a interacção instintiva com eles durante o processo de gravação foram essenciais para traçar a identidade estética de Live Low: latas, pedaços de madeira, almofadas, ferragens; materiais concretos para ritmos concretos. “Depois usei um sintetizador para fazer as linhas de baixo, e tudo o que eu tenho funciona muito mal, tudo tem ruído”, refere Pedro – daí a constante distorção analógica de fundo, o drone que funciona como o plano horizontal e contínuo. Tudo de acordo, portanto, com a filosofia live low. “Sim, é safares-te com o que tens à frente, usar aquilo um bocado à trolha e ver no que dá”.
E deu coisa certa. Enquanto não sai o longa duração, já no caderno dos planos, há uma série de concertos agendados até Março. Hoje, dia 30, é no Porto (Passos Manuel, cortesia da Lovers & Lollypops), e amanhã, dia 31, é em Guimarães (Convívio, cortesia da Revolve). As duas noites contam ainda com Fujako, o excelente projecto de Jonathan Saldanha (HHY & The Macumbas) e de Nyko Esterle, e com os DJs Lynce e Phantasma.