Elena Ferrante: este nome é um mistério
Quem é Elena Ferrante? A pergunta atravessa o mundo literário que procura saber da identidade de uma escritora italiana, de Nápoles, que desafia classificações e se afirma como uma das mais geniais autoras da actualidade. Portugal não é excepção. A Relógio d’Água está a publicar a sua obra completa. Em Maio surge mais um volume.
Nasceu em Nápoles há uns 60 anos. Por vezes, aparece uma data associada: 1943. Será mulher, terá sido mãe? É especulação, como tudo o que ultrapassa a literatura sempre que se fala de Elena Ferrante. Das poucas entrevistas que deu, todas por escrito e sempre intermediadas pelos editores italianos, foi-se sabendo que tem formação em literatura clássica, que gosta de Tchékhov, que viveu na Grécia. Numa dessas entrevistas, perguntaram-lhe porque escolheu não ser uma figura pública. “Talvez por qualquer desejo neurótico de intangibilidade”, respondeu. E ainda que o anonimato lhe permite maior liberdade, livra-a de qualquer espécie de auto-censura. “Escrever sabendo que não vou aparecer produz um espaço de absoluta liberdade criativa.” Talvez esteja aí a génese de uma escrita tão limpa quanto furiosa, “brutalmente honesta”, quase sempre sobre mulheres em situações limite, desapontadas, marcadas por um passado de que não se conseguem livrar, a viver momentos de paixão ou abandono; uma escrita capaz de descrever o asco que tantas vezes faz calar quem o sente e baseada numa premissa: a de que se a realidade permite a mentira, a escrita não.
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Nasceu em Nápoles há uns 60 anos. Por vezes, aparece uma data associada: 1943. Será mulher, terá sido mãe? É especulação, como tudo o que ultrapassa a literatura sempre que se fala de Elena Ferrante. Das poucas entrevistas que deu, todas por escrito e sempre intermediadas pelos editores italianos, foi-se sabendo que tem formação em literatura clássica, que gosta de Tchékhov, que viveu na Grécia. Numa dessas entrevistas, perguntaram-lhe porque escolheu não ser uma figura pública. “Talvez por qualquer desejo neurótico de intangibilidade”, respondeu. E ainda que o anonimato lhe permite maior liberdade, livra-a de qualquer espécie de auto-censura. “Escrever sabendo que não vou aparecer produz um espaço de absoluta liberdade criativa.” Talvez esteja aí a génese de uma escrita tão limpa quanto furiosa, “brutalmente honesta”, quase sempre sobre mulheres em situações limite, desapontadas, marcadas por um passado de que não se conseguem livrar, a viver momentos de paixão ou abandono; uma escrita capaz de descrever o asco que tantas vezes faz calar quem o sente e baseada numa premissa: a de que se a realidade permite a mentira, a escrita não.
A literatura é o compromisso exclusivo de Elena Ferrante. Tudo o resto é uma tentativa de construção de biografia que pertence à esfera do privado e tem como protagonista outro nome. Ao contrário dos grandes eremitas da literatura, Ferrante escolheu esconder-se na sua própria identidade. Não há um rosto, não há um nome. Apenas um pseudónimo que está a conquistar admiradores por todo o mundo depois de ter conseguido o respeito dos italianos desde que publicou o primeiro romance, L’Amore Molesto, em 1991. É desse momento a frase inicial deste texto: “Já fiz o suficiente por esta história. Escrevi-a.” Está numa carta dirigida aos seus editores sobre a promoção do livro que seria adaptado ao cinema por Mario Martone, em 1995. “Não pretendo fazer nada (…) que possa envolver qualquer compromisso público em que eu apareça pessoalmente.”
Vinte e quatro anos depois, com sete romances publicados - o último uma série de que se espera este ano o quinto volume - e uma obra a ser traduzida um pouco por todos os continentes, Ferrante permanece tão privada quanto em 1991. “Não quero aceitar a ideia de uma vida em que o sucesso privado seja medido através do sucesso da página escrita”, lê-se na compilação de entrevistas, cartas e notas recentemente publicada em inglês pela Europa Editions, Fragments, Elena Ferrante on Writing, Readind and Anonimity, pequeno volume que tenta dar o retrato possível de uma autora com reputação em ascendente, com muitas páginas de críticas e artigos elogiosos publicadas nos suplementos literários de maior prestígio mundial. James Wood dedicou-lhe um extenso artigo na New Yorker, em 2013 que tem servido como uma espécie de carta de recomendação não oficial; o inglês The Guardian, além da crítica, tentou traçar-lhe o perfil e desmontar o mistério no final de 2014; na mesma altura, a escritora Lydia Davis escolheu o terceiro volume da série de Napóles como o melhor livro do ano de 2014 publicado nos EUA. O inglês The Independent fez a mesma escolha, como o Telegraph ou o New York Times. São exemplos que ditam muito do que se passa no mercado mundial.
Portugal seguiu o fenómeno. A Relógio d’ Água começou a publicar Ferrante em Maio do ano passado, com Crónicas do Mal de Amor, um volume que reúne três dos seus romances curtos, entre eles o muito aclamado Os Dias do Abandono, original de 2002. Em Novembro foi a vez de A Amiga Genial, primeiro título de uma série centrada em Nápoles, sobre a relação entre duas mulheres desde a infância até ao momento em que uma delas escolheu “apagar o rasto”. Seguir-se-ão os restantes livros de Ferrante, um a cada três ou quatro meses, até que se complete a edição da sua obra em português, conforme disse ao Ípsilon o editor Francisco Vale que comprou os direitos da escrita desta mulher para Portugal. “Acho que é uma mulher pela forma íntima e até biológica como fala do feminino ”, diz sobre uma das possibilidades em aberto, a de Elena Ferrante poder ser o pseudónimo de um homem. O crítico James Wood concorda. O que chama de “honestidade brutal” na escrita de Ferrante encerra, segundo ele, um feminino a que um homem dificilmente chegará. Imaginem Jane Austen zangada, alguém arriscou a comparação.
Francisco Vale descobriu Elena Ferrante em 2004, quando foi pela primeira vez editada em português, uma edição D. Quixote de Os Dias do Abandono, o seu romance mais aclamado, um original de 2002, traduzido por Miguel Serras Pereira, que passou ao lado dos leitores portugueses. Ainda houve outro título no ano seguinte, Um Estranho Amor (tradução de Maria do Carmo Abreu), mas teve sucesso semelhante. O destino de Ferrante fora de Itália só mudou quando em 2012 foi publicada em inglês pela Europa Editions, sempre pela mesma tradutora Ann Golstein. “O mercado inglês tem a capacidade de alterar quase tudo, eles ditam as tendências. Veja o que aconteceu com o norueguês Karl Ove Knausgaard [autor de A Minha Luta, romance autobiográfico em seis volumes; o primeiro foi recentemente publicado em português com o título A Morte do Pai]”, nota Francisco Vale sobre o modo como voltou a Ferrante, “uma das descobertas mais interessantes que fiz recentemente”, sublinha, e a quem tinha admirado desde o primeiro dia “a intensidade narrativa, o despojamento, o modo como descrevia a ruptura de uma relação, falando sem pudores de sentimentos difíceis de admitir numa linguagem que invade todos os sentimentos…” Iria editá-la em Portugal. O texto que Wood escrevera na New Yorker, em 2013, serviria de prefácio a Crónicas do Mal de Amor, que recuperava as traduções anteriores, revistas e a que juntava A Filha Obscura, traduzida por Margarida Periquito, a mesma que iria traduzir A Filha Genial. Em Maio deste ano segue-se o segundo volume da série de Nápoles, o terceiro virá no Outono.
O mapa e a linguagem
Com Elena Ferrante o ponto de partida é quase sempre Nápoles, terra a ditar identidade, conflito ou até a fuga - física ou emocional - como uma quase inevitabilidade. Será essa a paisagem onde tem início a busca por Ferrante. Nasceu por ali, viveu lá até aos 20 anos, terá partido dessa cidade tomada pelo “medo da violência”, uma cidade que lhe serve inda para escrever que a linguagem é indissociável da essência de cada um e que ser de Nápoles e falar um dialecto não é o mesmo que ser de outro sítio em Itália. Marca, como marca o mal da primeira vez que há consciência dele. E disse mais, que “as cidades, como as pessoas sem amor, são perigosas, para si mesmas e para os outros.” É uma das poucas frases da pessoa que assina literariamente Elena Ferrante e que surge com outra formulação em
A Amiga Genial, um livro de formação, sobre uma escritora, Elena Greco, a narradora, e a sua amiga “má”, a sua outra face, Lila Cerullo.
É uma relação tão cúmplice quanto conflituosa entre duas mulheres que se estão sempre a medir, indispensável para traçar o universo feminino que caracteriza a sua escrita. “As mulheres das minhas histórias são ecos de mulheres reais que, por causa do seu sofrimento ou da sua combatividade, influenciaram muito a minha imaginação: a minha mãe, uma amiga de infância, mulheres conhecidas cujas histórias eu sabia”, disse numa entrevista ao New York Times publicada em Dezembro passado. Mais uma possibilidade de acrescentar traços ao retrato que Ferrante vai deixando que se construa de si. Combina essas experiências com as suas próprias e nascem personagens como Delia, Amalia, Leda, Olga, Nina, Elena, Lila… “As minhas mulheres são fortes, educadas, cientes dos seus direitos, mas ao mesmo tempo objecto de rupturas inesperadas, a vários tipos de subserviência”, continua dando outra pista sobre si própria: “Também experimentei essas oscilações. Conheço-as bem e isso afecta o modo como escrevo.”
Mais do que escritora, diz que se vê como uma contadora de histórias, quebrando um pouco a tradição literária italiana, que considera “pobre” nessa área. “O que escrevo está cheio de referências a situações e acontecimentos que são reais e verificáveis, mas organizados e reinventados como se nunca tivesse acontecido”, diz numa entrevista reproduzida em Fragments, sabedora de que andam sempre à procura do nome atrás de Ferrante, mas não dizendo nunca mais do que deve para se revelar. Quando começa uma entrevista perguntado “como está?”, ironiza: “O que espera que eu diga? Se começar a divagar à volta do ‘como’ nunca mais paro.” Desarma, como nos livros, sem de demorar em considerações, e cada personagem sua adquire uma densidade que a torna real a quem a lê.
Elena Greco - “Lenù” - e Lila, as protagonistas de A Amiga Genial, o primeiro dos volumes quem compõe a tal série de Nápoles, têm profundidade suficiente para carregar essa capacidade de contar o mundo como se o mundo fosse íntimo e cada um dos que o lêem se sinta a carregar uma revelação sagrada. Cada um partilha com a narradora - o eu de “Lenú” - o indizível, como já o tinha acontecido, por exemplo, com Olga - outro eu - em Os Dias do Abandono. Estamos perante mulheres que se permitem questionar na maternidade, no sexo ou no amor, desafiando a moral e os escrúpulos mais enraizados. É a tal liberdade do anonimato, a de saber que não terá de sujeitar-se ao efeito espelho, a que procurem numa imagem real sinais de qualquer destas mulheres. A biografia de Ferrante é a que ela quer dar de si. Não há um corpo. É intangível. “A questão em qualquer história é sempre: é esta a história certa para contar o que se cala silenciosamente no mais profundo de mim, essa coisa viva que, se capturada, se espalha por todas as páginas e é capaz de as animar?”, volta a ler-se numa das páginas de Fragments. Ou é a certa ou não vale a pena. Por isso muito do que escreve não vem a público. Há cartas onde fala de livros que não foram entregues. É outra pista para ajudar na biografia que inevitavelmente se procura nas suas personagens. Como quando põe Lenù à procura da escrita, do modo honesto de escrever que a persegue desde que leu Mulherzinhas em criança com a amiga Lila, aparentemente a mais dotada das duas, perfeccionista, multitalentosa, a que “parecia falar através da escrita”. Lenù perseguia essa capacidade de Lila de se fazer ouvir no que escrevia sem deixar qualquer sinal de falta de naturalidade. “Não se sentia o artifício da palavra escrita”. E é como se Ferrante quisesse ser como Lenù quando Lenù quer ser como Lila, “perfeitamente depurada das escórias da linguagem coloquial, da confusão do discurso oral”. Se há uma ordem no discurso, seria aquela, como se tivesse “a felicidade de nascer da cabeça de Zeus”.
As referências aos clássicos são transversais a toda a obra sem que nunca se note qualquer esfoço nesse sentido. “Nunca vi o mundo clássico como um mundo antigo”, confessa na mesma entrevista ao New York Times. Refere que sente uma enorme proximidade com os textos gregos e latinos e que eles a ajudaram a juntar palavras. Praticava nas traduções que ia fazendo enquanto imaginava as sirenes dos barcos na Baia de Nápoles a falar grego, como numa “bela história de Giuseppe Tomasi di Lampedusa”. É o território familiar. “Nápoles é uma cidade onde coexistem muitos mundos. O grego, o latino, o oriente; a Europa moderna, medieval e contemporânea; até os Estados Unidos, estão lado a lado, vizinhos, especialmente no dialecto e na história da estratificação social da cidade”. Isso tudo está também n’A Amiga Genial e em toda a série que dedicou a Nápoles, onde um subúrbio popular, com a sua violência e exclusão, pode ser equiparado a Cartago e haver um Eneias que se apaixona por Dido, uma “paixão de fugitivos”, condenada. Isso é imaginação e é aí que Ferrante se quer situar, num mundo onde não pode ser impostora. Como se notaria essa mentira? Sempre que ficassem visíveis “as costuras entre as frases”.
Que rosto terá Ferrante? A pergunta persegue. O de todas as suas mulheres. Os homens estão nos seus livros para as revelar nos seus medos, fantasmas, alegrias, nas conquistas, na maldição que as persegue. Mas não são livros contra eles. Ferrante já brincou com o facto de lhe atribuírem uma identidade masculina, disse que no princípio queria escrever como um homem porque era deles a escrita não sentimental, a que reunia os aplausos e a admiração, a que lia, sobretudo. Mas seria mentir. Escolheu a verdade. Emenda. Não foi uma escolha. Impôs-se, ao mesmo tempo que sentiu que não iria aparecer. Sente que tem de esclarecer este ponto à medida que lhe vai atribuindo histórias, adensando o enigma até ele quase se sufocar a sua escrita: “Não escolhi ser anónima, os meus livros estão assinados”. É ainda a mesma entrevista o New York Times, talvez aquela onde aparece mais definida. Em vez disso diz que escolheu a “ausência”, um pouco como Lila, a mulher que quis apagar o seu rasto depois de 66 anos. É nesse ponto que começa a história das amigas, quando Rafaella Cerullo, a que Lenù chama Lila, quis volatilizar-se e a amiga se sentou ao computador para escrever tudo o que lhe ficara na memória.
O rosto de Ferrante será então o de todas as suas mulheres, mas sobretudo o de Lenù e Lila, uma o oposto da outra, em luta, nunca pacificadas. “São elas que melhor me capturam”, confessa Ferrante, consciente de que é incapaz de apagar a “polémica”, como lhe chama, ou a atenção dos media para a sua identidade. Não quer que isso ultrapasse o interesse pela literatura, mas é impossível estabelecer fronteiras. O nome Ferrante já traz implícito esse mistério. Outro território ambíguo, o que lhe dá a liberdade criativa, mas atrai os holofotes de que se quer distanciar. O que fazer? “Só me quero distanciar da história acabada”, afirma.